29.1.10

ainda o governo de Assembleia



O Professor Carlos Blanco de Morais, consultor de assuntos constitucionais do Presidente da República, publicou no último número do Expresso (último em data, claro) um artigo intitulado “O poder legislativo de um governo minoritário”. O artigo, apresentando-se como uma reflexão acerca da geometria variável de um sistema semipresidencialista como o nosso, acabava por ser uma espécie de grito de revolta contra o uso da expressão “governo de Assembleia”. A expressão tem sido usada pelos sectores pró-governamentais para caracterizar o comportamento recente do nosso Parlamento, em actos considerados hostis à aplicação do programa do governo legítimo, embora minoritário, que temos. Dada a insistência com que “gente de Belém” tem interferido no debate político-partidário, ao mesmo tempo que Cavaco Silva mantém o estilo de se pretender acima da política (atitude que em democracia devia ser considerada pornográfica), o artigo merece-nos aqui (apesar de não sermos constitucionalistas, nem sequer juristas, nem tão-pouco politólogos) breves reflexões.
Primeiro, o artigo do consultor de Cavaco foge de elaborar mais solidamente sobre as responsabilidades presidenciais na situação visada (governo sem apoio parlamentar maioritário). É estranha essa fuga, uma vez que se começa por anunciar uma reflexão sobre o semipresidencialismo. Como já defendi aquando do governo de Santana Lopes que Sampaio empossou, às vezes o PR não tem grande escolha, outras vezes tem. Quando tem escolha, torna-se o PR mais directamente co-responsável pelo governo que resulta dessa escolha. Parece-me isto incontornável na actual situação. Cavaco devia assumir que a sua escolha (permitir ao PS formar governo minoritário, sem tentar qualquer outra solução) exige um certo comportamento do PR apenas para manter o regular funcionamento das instituições. O PR podia ter tentado outra solução: não o tentou, ele lá sabe porquê, mas deve assumir as suas opções. Era difícil? Era, mas os titulares não estão lá só para as facilidades. O artigo, nesta questão, encolhe-se todo: parece que não é vinha que interesse a esta vindima. Para reflexão sobre o semipresidencialismo de geometria variável, parece curto por causa dessa omissão.
Segundo, o artigo paira por cima de um problema que não ataca: a distinção entre o legislativo e o executivo. Em certos países essa distinção está muito marcada, em Portugal não está. Já ouve anteriormente recursos para o Tribunal Constitucional acerca da "invasão" dos poderes do executivo pelo legislativo (não sei citar os casos concretos) e o TC não acolheu as pretensões acerca da ilegitimidade da suposta invasão. Deu sopa, disse que não havia problema nenhum. A mim parece-me que esse é mais um dos aspectos em que o constituinte foi demasiado optimista: os constituintes desenharam um sistema que só funciona "calmamente" com maioria absoluta, quando ela é difícil de alcançar.
Lateralmente, em terceiro lugar, o constitucionalista-consultor-de-Cavaco concede, sem pejo, que o Parlamento é, quando haja maioria absoluta, uma câmara de ressonância do PM. E parece que acha isso normal. Ora, eu vejo nisso, precisamente, um problema maior. Por mim nunca daria isso como um pressuposto não problemático. O que, talvez obviamente, um consultor de Cavaco tende a achar normal, é algo que eu tendo a ver como uma doença crónica do sistema.
Por último, um ponto mais filosófico, mas de pouco alcance político imediato: a mistura de escalas temporais entre o legislativo e o executivo tem como consequência, se o legislativo se mistura em decisões de curto prazo, que a Assembleia perde a grande vantagem da representação. Os representantes podem pensar no médio (e até no longo) prazo, não têm de responder de imediato pelas suas escolhas, o que é necessário porque nem todas as decisões são avaliáveis no curto prazo. Uma democracia directa só seria capaz de tomar decisões com efeitos positivos visíveis a curto prazo e a democracia representativa ajuda a corrigir isso. Mas não num "governo de assembleia". Mas isso é uma categoria de problemas que não seriam, de qualquer modo, chamados à colação num artigo de combate político do PR por interposta pessoa. Como, em minha opinião, é o caso.

28.1.10

as inúmeras versões...


... da teoria da irrelevância da distinção entre a direita e a esquerda, como dizer?, pululam.
Quem julga o que é enquistamento e o que não é? Quem dita o que é ser formatado ou não? A autoridade ideológica, ou politicamente correcta, do momento? Ou a descoberta recente do altar da honestidade intelectual, como se essa coisa fosse um objecto novo ao cimo da Terra?
Por qual razão há-de haver sempre um relativista de serviço, sendo que os relativistas se caracterizam sistematicamente por acharem que eles é que estão a topar o mundo enquanto o resto da maralha está distraída? Os relativismos sempre foram grandes autoritários, esse é o meu problema com os relativismos. Há muitos anos. Décadas mesmo.

2 em 1

A Cidade, teatro

Prólogo. A Cidade, a partir de textos de Aristófanes, pelo Teatro da Cornucópia, no Teatro Municipal São Luiz em Lisboa, teatro na cidade. Fomos ontem. Luís Miguel Cintra, a encenar, surpreendeu-nos: o seu teatro metafísico, a arrancar as tripas agarradas ao cérebro, deu agora lugar a uma mistura de efeitos do teatro grego com a revista à portuguesa. Engana-nos: faz a coisa parecer mais ligeira. E torna-se, verdadeiramente, comestível em alto grau. Até pela ousada tradução. E pela linguagem que toda a gente pode ser levada a pensar que compreende.


Primeiro quadro. Defeito. Este espectáculo de teatro tem um defeito: é demasiado longo, desnecessariamente. Três horas e meia, mais intervalo. Sendo construído a partir de pedaços de textos vários, constando de vários quadros pouco mais do que justapostos, podia ter sido marginalmente podado. Exige resistência física. Está dito, vamos ao que interessa.

Segundo quadro. Sinopse.

«Diz-se que foi na Grécia Antiga que nasceu a Civilização Ocidental e que foi em Atenas, vários séculos antes de Cristo, que nasceu a Democracia. Nas comédias de Aristófanes, por sinal um conservador, no violento e insurrecto humor com que nelas retrata a vida daquela cidade ‘perfeita’, nestes textos escritos há 2.500 anos, fomos encontrar o material para a composição do guião deste espectáculo. É com as confusões e as dificuldades da vida numa sociedade que se quer democrática, a corrupção da sua política, o seu desejo de paz, as suas saudades do campo, a maneira como convive com os seus ‘poetas’, as peripécias sexuais e conjugais que se geram na coexistência do público e do privado, em suma, com a vida da polis, e através das mais que inevitáveis semelhanças com os contratempos dos nossos dias, que este espectáculo quer brincar. Uma grotesca metáfora de todas as Cidades, construída por um grande grupo de actores no palco do São Luiz, teatro da cidade de Lisboa.»
Luis Miguel Cintra

Terceiro quadro. Interpretação.
Há por ali muita gente que não mora no Bairro Alto, na casa da Cornucópia. E isso nota-se, mesmo quando são caras conhecidas do grande público. E alguns dos intérpretes habituais da metafísica soturna de Cintra não chegam a ter espaço para a sua alma. O conjunto funciona, mesmo assim.



Quarto quadro. Um destaque. O último quadro, intitulado "A fuga para o céu", retirado de "As Aves", do Aristófanes de que aqui a coisa se alimenta, é notável. O texto sugere uma crítica social radical mas ingénua, com os olhos de um anarquismo bondoso e poético. O elemento central deste quadro é a personagem Poupa (o pássaro), aqui desempenhado pela actriz Luísa Cruz, magnificamente caracterizada como um grande pássaro. Ora, a Poupa diz o texto tão magnificamente que muitas vezes parece um pássaro a falar, um gorjeio, um trinado. Ao mesmo tempo, o movimento do corpo, nas pequenas subtilezas do agitar das asas, do mover a cabeça, do posicionar o bico, compõe uma ave de um efeito notável. Não sei até que ponto o texto terá sido burilado a pensar nesse efeito (ignorâncias minhas), mas a sua interpretação é um tempo de encantamento puro. Apetece-me voltar só para ver dois ou três quadros - e um deles seria claramente este.



Epílogo. Até 14 de Fevereiro. No São Luiz. Pelo Teatro da Cornucópia. Eu sou suspeito, mas mesmo assim aconselho: a não perder. Como perder um espectáculo que Cintra confessa que foi querido como uma brincadeira?
(As fotos são do sítio do Teatro do Bairro Alto.)


uma ópera que não é como as outras

17:28
The Knife, in collaboration with Mt. Sims and Planningtorock, are to release the studio version of the opera 'Tomorrow, In A Year', on the 1st March 2010. Free download for all mailing list subscribers.




Commissioned by Danish performance group Hotel Pro Forma to write the music for their opera based on Charles Darwin and his book ‘On the Origin of the Species’, The Knife decided to make this a collaborative process, working with artists Mt. Sims and Planningtorock for the first time, to capture the huge width of the Darwin and evolution theme. They extensively researched Darwin related literature and articles, with Olof attending a field recording workshop in the Amazon to find inspiration and to record sounds.
Ler mais aqui. E seguir as marcas para ouvir o que há a ouvir.


uma despedida

as redes sociais e a sociabilidade



Há um certo número de pessoas (e, além de pessoas propriamente ditas, há também comentadores encartados, que pertencem a uma espécie diferente, com outras necessidades) a defender a magna teoria de que as "redes sociais" são um perigo para as relações sociais verdadeiras entre pessoas reais. Que as pessoas se escondem nas redes sociais (ou na blogosfera) por não terem relações humanas ricas com pessoas de carne e osso. Ou, então, que a dedicação às redes sociais faz passar aquelas relações a quente para segundo plano.
Isso faz-me lembrar o tempo em que se dizia que os miúdos que liam muito tinham problemas de sociabilidade.



27.1.10

"amor pela passiva" e "amor pela activa"



Estando já a preparar corpo e mente para ir hoje ao teatro, atacamos a (des)propósito com Filodemo, de Luís de Camões. Auto. Comédia. Tragicomédia. Que vimos pela Cornucópia. Como hoje veremos a Cornucópia, mas desta feita fora do Bairro Alto.
Tomamos, pois, um exemplo do contraste entre amor platónico ("amor pela passiva") e amor fisicamente expresso ("amor pela activa"):

FILODEMO - (...) é necessário que primeiro alimpeis como marmelo e que ajunteis pera um canto da estrebaria todos esses maus pensamentos vossos, porque, segundo estais, mal avinhado, danareis tudo o que agora em vós deitar. O caso é este. Já vos dei conta da pouca que tenho com toda a outra que não é servir a senhora Dionisa; e ainda que a desigualdade dos estados o não consinta, eu não pretendo daqui outra senão não pretender cousa nenhua. O que lhe quero, consigo mesma se paga. É este meu amor como ave fénix, que de si só nasce e não de nenhum outro interesse.(...)
DORIANO - Eu vo-lo direi: porque todos vós outros, que amais pola passiva, dizeis que o amador fino como melão que não há de querer mais de sua dama que amá-la viva. E virá logo o vosso Petro Bembo, Petrarca e outros trinta Platões (mais safados destes hipócritas que uas luvas dum pajem d'arte) mostrando-nos rezões verisemelhantes pera homem não querer mais de sua dama que ver, até falar. E ainda houve outros inquisidores d'amor, mais especulativos, que defenderam a vista por não emprenhar o desejo. E eu faço voto a Deos, se a qualquer destes lh'entregarem sua dama entre dous pratos, tosada e aparelhada, que não fique pedra sobre pedra nem lugar sagrado em que se possa dizer missa daí a mil anos, nem lugar tão preveligiado em que a fúria da justiça não buscasse até os caminhos escaninos. De mim vos sei dizer que os meus amores hão de ser activos. E eu hei de ser a pessoa agente e ela a paciente. E esta é a verdade. Mas tornando a nosso prepósito... Vá vossa mercê com sua história avante.


25.1.10

ismos


(...)
Realmente: o menos que se pode pedir a uma Pintura de Imaginação, é que nos apareça individuada (não é dizer: ausente de conceito) e, neste sentido, os assuntos da Arte são os da condição surrealista. Em palavras maiores: não conheço ninguém chamado Ismo, nem Ismo que sustente filhos fora de casa.
(...)

Mário Cesariny, As Mãos na Água a Cabeça no Mar

conselhos práticos

16:50


levar o cão à rua...


(Cartoon de Marc S.)

24.1.10

da boa imprensa / e do Expresso também

17:06


O Expresso de ontem trazia estas duas notícia na primeira página. O consultor de um órgão de soberania (PR) critica outro órgão de soberania (Governo); o assessor de um titular de um órgão de soberania (Governo) ataca um assessor de outro órgão de soberania (PR). Sem entrar nas matérias em apreço nessas críticas e ataques, observo dois pormenores.
Primeiro, o destaque dado a notícias tão paralelas na forma acaba por ser bastante diferenciado quanto à ocupação da mancha. O assessor de Sócrates merece um título a letras mais gordas, numa zona mais nobre da página. O consultor de Cavaco é colocado numa posição mais discreta.
Segundo, o consultor de Cavaco é pessoa cordata e só faz críticas, coisa normal em democracia, como é bom de ver. Já o assessor de Sócrates deve ser um animal: ele atacou Fernando Lima. O homem de Belém falou; o homem de S. Bento certamente deu caneladas, murros, estaladas no tal Lima. Se calhar até o mordeu.
Aliás, deve ter sido esse ataque, certamente brutal, que justificou o maior realce dado a esta notícia. Já que um assessor de Cavaco entre na disputa partidária contra o Governo, isso é coisa de apreciar como acto normal: a liberdade de criticar em democracia.
Ou será coisa outra o que aqui se vê?

22.1.10

o que eu tenho tentado apanhar um defeito neste blogue

18:33

direitos humanos / olhares / oportunidades

18:05

as causas dos terremotos

17:19
«E eis-nos chegados ao momento de dizer algo acerca das causas dos terramotos.
Não é difícil para um investigador da Natureza simular os seus fenómenos. Peguemos em vinte e cinco libras de limalha de ferro, noutras tantas de enxofre, e misturemo-las com água vulgar. Em seguida, enterremos esta massa a um pé ou pé e meio de profundidade e calquemos bem a terra que a cobre. Decorridas algumas horas, poderemos observar a libertação de um fumo espesso, a terra estremecerá e chamas irromperão do solo. Não há que duvidar que as duas primeiras matérias se encontram frequentemente no interior da terra e a água que se infiltra pelas fendas e frinchas das rochas pode pô-las em fermentação.»

Immanuel Kant, Escritos sobre o Terramoto de Lisboa, Coimbra, Almedina, 2005, p. 47 (primeiro artigo, datado de 1756, neste particular seguindo as teorias de vários cientistas, entre os quais o químico Lémery)





Earthquake House. US Patent Issued In 1995.
De Totally Absurd Inventions.

(Publicado anteriormente neste blogue a 25-09-07)

página 613

15:36

Vendo Settembrini aproximar-se, Naphta continuou:
-(...)
Quando, na nossa função de educadores, suscitamos a dúvida, uma dúvida mais profunda do que jamais sonhou a vossa modesta civilização, sabemos perfeitamente o que fazemos. Só do cepticismo extremo, do caos moral, nasce o absoluto, o terror sagrado de que carece o nosso tempo. Digo-lhe isso para justificar-me e para seu governo, o resto decidir-se-á depois. Receberá notícias minhas.


Thomas Mann, A Montanha Mágica


Web 2.0 suicide machine



Tired of your Social Network?
Liberate your newbie friends with a Web2.0 suicide! This machine lets you delete all your energy sucking social-networking profiles, kill your fake virtual friends, and completely do away with your Web2.0 alterego. The machine is just a metaphor for the website which moddr_ is hosting; the belly of the beast where the web2.0 suicide scripts are maintained. Our service currently runs with Facebook, Myspace, Twitter and LinkedIn! Commit NOW!


Haiti e Lisboa, perguntas diferentes

09:00

O terremoto, seguido de maremoto, de Lisboa, em 1755, desencadeou uma crise tremenda no pensamento teológico e filosófico da época. A questão estava na dificuldade de compreender como pode acontecer o mal num mundo bem ordenado criado por Deus. Como pode Deus deixar que aconteçam coisas más? Como pode Deus, ainda por cima, deixar que sejam vítimas dessas coisas más aqueles que são bons, tais como as criancinhas e demais inocentes? Se Deus é benevolente, se Deus é todo-poderoso, como poder haver todo este mal no mundo?

Não foi fácil, nesse tempo, identificar onde estava o defeito do raciocínio. Ou pelo menos admitir onde tinha obrigatoriamente de levar a resposta: ou Deus não existia, ou não era todo-poderoso, ou não era benevolente. Resolver o problema passava por considerar outros factores que não o "culpado óbvio" com os poderes "óbvios" e a psicologia "óbvia".

Para lá do sofrimento humano que o Haiti representa e lembra, podemos ajuizar quanto o mundo mudou, pelo menos intelectualmente, por não nos ocorrerem já, a propósito do tremer da Terra no Haiti, as mesmas perguntas que atormentaram o mundo culto europeu sobre o terremoto e maremoto de Lisboa. As perguntas, hoje, haveriam de ser talvez mais acerca da prudência humana e da sabedoria colectiva. Ou da sua falta.





21.1.10

perguntem ao titular

14:46

«O texto de Fernando Lima, A minha verdade, repete a atitude de soberba irresponsabilidade do actual Presidente da República».
Esta frase de Valupi no Aspirina B, diz algo essencial: não é aos criados que se deve pedir contas; é aos titulares. É uma vergonha quando os eleitos se escondem atrás de biombos.

pérolas naturais / jornais / i i i i i

14:33



Maria João Pires, no jugular:
«Em cinco décadas, o número de crianças no pré-escolar cresceu 40 vezes, a taxa de escolaridade no ensino secundário escalou de 1,3% para 60% e o acesso das raparigas ao ensino subiu 15%. Este é o retrato do ensino português publicado nos "50 Anos de Estatísticas da Educação", que ontem o Instituto Nacional de Estatísticas (INE) divulgou. Os dados mostram que o país deu um salto gigante entre 1960 e 2008 mas, para os especialistas, essa evolução significa que Portugal está exactamente no mesmo ponto de partida de há 50 anos. "Fartámos de correr, mas não conseguimos ainda apanhar o pelotão da frente", avisa o sociólogo do Instituto de Ciências Sociais Manuel Villaverde Cabral. (...) Ora bem, perante esta descrição, (...) que título decidiu o jornal i dar à notícia? Ensino. Portugal está no mesmo ponto de partida de há 50 anos, perfeito, QED!»
Ler o mais: Pérolas do jornalismo português.

(imagem do filme Blindness / Ensaio sobre a cegueira, de Fernando Meirelles)

notícia: jornalista da RTP está consciente

14:21

ler

13:43

os pequenos leões

11:04


Sá Pinto já não é director desportivo do Sporting.
«Ricardo Sá Pinto terá abandonado já esta manhã o cargo de director desportivo do Sporting, na sequência dos desentendimentos com o avançado Liedson no balneário de Alvalade, logo após o jogo com o Mafra.» Alguns falam de murros, em lugar de desentendimentos.

Quem provou uma vez o sangue não lhe esquece o gosto.

novo mapa da europa

09:09




(recebido por email)

20.1.10

Pedro Santana Lopes



Parece que já está a acalmar o vozeirão por causa de uma medalha que Cavaco deu a PSL. Não vejo o ponto. PSL foi mesmo primeiro-ministro deste país, podem convencer-se disso. E, disso, a culpa não foi só dele. E os demais com parte na coisa estão bem. Em altos cargos.
Lá que o primeiro magistrado da nação tenha andado à espera que PSL morresse para a política para o condecorar, descobrindo agora que isso só acontecerá em caso de verdadeira morte física do homem, é outra coisa. Quanto ao resto, só vejo em tanta excitação o habitual querer que os culpados das nossas tolices colectivas sejam bodes expiatórios na forma particular deste ou daquele indivíduo.


página 514

19:30

– Bem, um jogo da natureza! – disse Hans Castorp. – Mas não é apenas isso, não é apenas uma ilusão. Porque desde que esses homens são actores, devem ter talento, e o talento é superior à estupidez e à inteligência, constitui, ele mesmo, um valor vital. Também Mynheer Peeperkorn tem talento, por mais que o senhor proteste e, graças ao seu talento, mete-nos a todos num chinelo. Coloque o Sr. Naphta num canto da sala e deixe-o fazer uma conferência do mais alto interesse sobre Gregório Magno e a Cidade de Deus. No outro canto, encontra-se Peeperkorn com sua boca estranha, erguendo as rugas da testa e que diz apenas: “Absolutamente! Permita-me... Basta!” O senhor vai ver que as pessoas se reunirão em torno de Peeperkorn, todas, sem excepção, e que Naphta ficará sozinho com a sua inteligência e a sua Cidade de Deus, ainda que se exprima com tanta clareza que nos penetre até a medula.


Thomas Mann, A Montanha Mágica


Merci! (contágios bons)

aprender a ler

16:20


Com José Ames:
Hoje li em "O Público" a crónica dum médico psiquiatra que observa, como outros já o fizeram antes, uma certa infantilização na nossa sociedade, pelo facto de, nas últimas décadas, só ouvirmos falar em direitos e nunca da outra face dos direitos que são os deveres e as obrigações. "E, mesmo que sejam dadas todas as oportunidades, se porventura houver alguém que não alcança uma aspiração, isso raramente é atribuído a um fracasso pessoal, mas a uma discriminação, mesmo que muitas vezes nem sequer tenha havido qualquer esforço para se obter sucesso." O resultado é uma "baixa tolerância à frustração".

Para ler tudo, Renúncia.


poema repetitivo


Ana Paula Sena Belo escreveu, para nosso proveito que lemos. Chama-lhe "poema repetitivo". E vale a pena ler. Começa assim:

As mãos de vidro fino
no ar translúcido indolente e raro
prendem o tempo nas palavras ditas
e nisso movem-se subtis
pois quando dizem escrevem
e é só no papel que são gentis

Deve ler-se na íntegra, aqui.

19.1.10

«Of Wolf And Man»


by Metallica and San Francisco Symphony Orchestra



figuras



Laureano Gisca, El Elegido, 2009
(na Arte Lisboa, 2009)



página 476 (*)

17:33

É, portanto, à imagem destes sonhos alienados que a narração pode proceder com o tempo; é à sua semelhança que ela pode tratá-lo. Mas se ela o pode então “tratar”, é óbvio que o tempo, como elemento da narração, também se pode converter em seu objecto. E se soa exagerado afirmar que se pode “narrar o tempo”, não parecerá, contudo, uma perfeita loucura, como se nos afigurava de início, querer narrar acerca do tempo, de modo que o epíteto de “romance do tempo” se pode revestir de um duplo sentido, singular e mágico. Na realidade, levantámos a questão acerca da narração do tempo com o único propósito de confessar que era isso precisamente que tínhamos em mente com a história que aqui apresentamos (…) Este é um aspecto que faz parte do (…) romance [de Hans Castorp], que é um romance sobre o tempo, independentemente do ponto que vista que adoptemos.

Thomas Mann, A Montanha Mágica

(*) As citações que anteriormente fizemos desta obra, bem como as demais que se seguirão, são retiradas da tradução feita para a edição do Círculo de Leitores, Lisboa, 1981 (tradução brasileira de Herbert Caro, revista para português de Portugal por Maria Manuela Couto e Maria Helena Morbey). Essa edição, esgotada há muito tempo, tem agora uma sucessora, na D. Quixote, 2009, com tradução directamente do alemão a cargo de Gilda Lopes Encarnação. A presente citação é retirada desta tradução mais recente, aparecendo nas páginas 612-613; o texto correspondente na outra edição aparece à página 476.

14.1.10

A Mãe, de Brecht, no Teatro Municipal de Almada

09:00



O russo Máximo Gorki escreveu o romance (1906), Bertolt Brecht (em equipa com alguns outros) adaptou para uma peça de teatro em tom alemão (1932), o objecto deu a volta ao mundo e aterra agora no Teatro Municipal de Almada, encenada por Joaquim Benite. Falamos de A Mãe.
Nas palavras do TMA, "o dramaturgo alemão deixa que Vlassova, sinuosa e progressivamente, aprenda a interpretar a luta de seu filho, que acabará por morrer, contra a iniquidade czarista. De dona de casa timorata e apaziguadora, Pelagea Vlassova transformar-se-á em revolucionária activa, porta-estandarte de uma utopia nova, capaz até de identificar a ignorância, o medo e o desânimo como os principais filtros entorpecedores de que se servem os totalitarismos (Brecht pensava no capitalismo selvagem, mas especialmente, no nazismo, que subiria ao poder em 1933)."
O texto teatral é explícito: trata-se d’O Partido. Não é uma luta qualquer. Não terá sido por acaso que Brecht recebeu, em 1955, o Prémio Internacional Stalin para o Fortalecimento da Paz entre os Povos, concedido pela URSS. Se o que está em causa é a tomada de consciência, e se “é no seio de uma luta de operários (…) que é possível ganhar uma consciência” (Benite), a entidade mediadora desse processo é “O Partido”. Depois de tudo o que se passou no mundo – depois de todas as utopias liberticidas – o texto não passa facilmente por todas as gargantas.
Laura Bradley, ao escrever sobre “Bertolt Brecht e as encenações de A Mãe”, afirma: “Ao rever liberalmente e reinterpretar as suas peças, Brecht demonstrava um flagrante menosprezo pelo Werktreue, o conceito de fidelidade à obra original, que os conservadores têm invocado em defesa das interpretações literárias dominantes e dos modos tradicionais de representação.” A mera menção desta possibilidade de reinterpretação legitima que nos questionemos quando vemos este texto levado à cena, actualmente, na sua integralidade. Sem reinterpretação, arriscamos dizer. Benite explica: “acho que tenho responsabilidades culturais que ultrapassam a mera criação artística; se faço uma peça de Brecht, que as pessoas nunca viram ou de que apenas ouviram falar, é natural que a procure mostrar na sua integralidade”. É uma explicação razoável.
Por outro lado, como diz ainda Benite: “Não é por acaso que a peça se detém em 1917. (…) Aqui fala-se do Comunismo de um modo geral, como sonho e aspiração, não se querendo abordar as sequelas da Revolução de 17 em toda a complexidade que elas assumiram.” Pois, se calhar é aí que está a encruzilhada: pode ser que o espectáculo só funcione para quem consiga abstrair das “complexas sequelas”. É que, embora Teresa Gafeira, no papel de Mãe, seja convincente quanto à transformação lenta e interior daquela mulher, outros aspectos do aparato cénico puxam mais para o lado do panfleto, o que dificulta uma distanciação crítica suficientemente confortável para espíritos menos esperançosos no tal Amanhã que Canta.
Mas nada melhor do que ir ver para aferir. Vale a pena.






Todas as referências são para textos incluídos seja no número dos Cadernos de Almada dedicado a este espectáculo, seja no número de Janeiro de 2010 do informativo “MaisTMA”. Saber mais na página da companhia. Daqui são provenientes as fotos do espectáculo.

[também aqui]

13.1.10

prazeres improváveis



O pecadilho é este: nunca tinha ouvido Jacinta ao vivo. Aconteceu. No "Concerto por ocasião da apresentação de cumprimentos de Ano Novo do Corpo Diplomático a Sua Excelência o Presidente da República. Palácio Nacional da Ajuda, 12 de Janeiro de 2010." Prazeres prováveis em circunstâncias improváveis. Digo eu.
(O meu colega de gabinete, um holandês com um olho clínico para os hábitos sociais dos portugueses, pergunta-me: "but... why Senhor... Senhor Porfírio Silva?!"...)



os green echo no chapitô

19:39

amanhã, quinta-feira, 14 de Janeiro de 2010, às 22:00, entrada livre

Dizem eles:
Green echo release their ideias and emotions comunicating and expressing themselves through art, creating an explosion of feelings in the audience. Green echo jam and improvise trying to make their sound the echo of the present moment. Their music is a fusion of electronic and acoustic sound that reaches a spacy and natural sound at the same time. Each musical moment is unique and is created through fusion of perceptions that each elemet has from the world. This creates the energy for rebellion, for reflection... We seek the sound of change.




não tentem de novo a infantilização dos professores

19:03

Lídia Jorge escreveu no Público, ao lado de outros, sobre o recente acordo entre o ME e representantes dos professores, algo de que retiro o seguinte:
«É por isso que este acordo histórico ainda não terminou. Ele só ficará selado quando Isabel Alçada verificar a que professores, durante estes dois anos, foram atribuídas as notas de excelente, e tirar daí as suas conclusões. Talvez resolva anular os seus efeitos. É que os professores duma escola constituem uma família. Experimentem criar um escalão de avaliação entre os membros duma mesma família que se autovigia. Sobre os métodos de avaliação desejo a Isabel Alçada e aos sindicatos muitas noites de boa maratona.»
Já a 9 de Janeiro 2009, no mesmo Público, a escritora e ex-professora, num artigo intitulado “Educação: os critérios da excelência”, dava curso a esta forma ("os professores duma escola constituem uma família") de encarar a classe profissional professores.
Na altura escrevi - e agora repito:
«Quanto à avaliação de desempenho, Lídia Jorge (...) centra-se num argumento de infantilização dos professores, o qual aliás não é novo. Daniel Sampaio já escreveu que “a avaliação fomenta problemas interpessoais entre professores” (Pública, 16/11/08), como se eles fossem incapazes de fazer da avaliação um exercício profissional (como fazem tantos outros profissionais altamente qualificados) e só pudessem cair na armadilha de fazer da avaliação profissional uma questão de conflito pessoal. Lídia Jorge vai por caminho idêntico, acusando este modelo de avaliação de ser “um sistema que transforma cada profissional num polícia de todos os seus gestos, e dos gestos de todos os outros”. A confusão perniciosa entre relações profissionais e relações pessoais, misturada com uma concepção paternalista das relações de trabalho, alimenta o medo da avaliação rigorosa. Estamos no mesmo: os professores, apesar de constituírem uma classe altamente qualificada, e uma das que mais estão preparadas para avaliar, são ditos incapazes de uma cultura colectiva de avaliação exigente. O que me parece um insuportável atestado de menoridade aos professores.»(O racionalismo da acção enganou a humanista?)
O mínimo que podemos dizer é que Lídia Jorge não se desmente.

(Acrescento: ler A escola dos murmúrios, por Valupi.)

página 397

18:45

O doente é justamente um doente, com a natureza particular e o modo de sentir modificado que a doença acarreta. Esta prepara a sua vítima com o fim de adaptá-la a si própria. Há diminuições de sensibilidade, desfalecimentos, narcoses providenciais, toda a espécie de subterfúgios e expedientes morais e espirituais, fenômenos que o homem são, na sua ingenuidade, se esquece de ter em conta. (…)
Que se lembrassem das doenças mentais, das alucinações, por exemplo. Se um dos seus interlocutores – o engenheiro ou o Sr. Wehsal – descobrisse nessa noite, à hora do crepúsculo, num canto do quarto, o seu falecido pai, que o olhasse e lhe dirigisse a palavra, seria isso, para a pessoa em apreço, uma experiência muitíssimo emocionante e perturbadora, que a faria duvidar dos seus sentidos e da sua razão e a induziria a sair imediatamente do quarto e a consultar um psiquiatra. Não era verdade? Mas o engraçado consistia precisamente no facto de essas coisas não poderem acontecer a nenhum deles, porque tinham o espírito são. Se, porventura, lhes ocorressem, já não estariam sãos, mas doentes, e não reagiriam como um homem sadio, quer dizer, espantando-se e fugindo, mas aceitariam o fenómeno como se ele fosse perfeitamente normal, entabulando uma conversa com o espectro, como os alucinados costumavam fazer. E acreditar que a alucinação constituía para estes um motivo de espanto saudável era justamente o erro de imaginação que cometiam aqueles que não estavam doentes.


Thomas Mann, A Montanha Mágica


marcelo, a rtp e os saneamentos


Outro país seria o nosso se todos pudessem, para preservar os seus empregos, ocupações e outras formas de ganha-pão, desencadear guerras mediáticas com ingredientes políticos. «Daqui ninguém me tira - senão eu berro.»

estás certo ?





A «Nova» Europa




A «Nova» Europa


Por exemplo, as jovens estónias,
Para quem o futuro foi um conceito ilegal,
Têm pressa, pressa de tudo.
Para elas, o tempo é, de facto,
Uma relatividade do espaço,
Que bebem em longos tragos -
Hoje, Paris, amanhã, o Nepal,
Depois de amanhã, a Austrália.
Não se querem enredar em nada,
Nem Deus, nem amor, nem casas.
Aprendem a exprimir sentimentos em francês
Servidos por um escanção,
Mas gostam de dizer que não têm alma,
Nunca tiveram - proibida durante décadas,
Acabou por definhar, desistir
Destes corpos altos, esguios,
Produto de um qualquer pacto com o diabo.
Embora tão bálticas, não são por isso menos gregas:
Cépticas, custa-lhes a crer que o sol italiano
Seja tão incondicional na sua graça,
Que o céu possa ser tão sem censura.
Foram amamentadas a convicções profundas
E agora não acreditam em nada,
Não acreditam sequer na sua vida passada.



Nuno Rocha Morais, Últimos Poemas, Quasi, 2009



12.1.10

meteorologia laranja

ouvida a sra. Ashton


A audição da sra. Catherine Ashton no Parlamento Europeu (PE) parece que não foi brilhante. «“Falta de visão” foi o veredicto emitido por vários deputados do PE.» Nada de surpreendente.
O assunto é mais picante do que parece à primeira vista. O PE pode rejeitar indigitados Comissários (já o fez aquando da Comissão Barroso I). Pode, portanto, "vetar" a sra. Catherine Ashton como membro da Comissão. Mas, enquanto Alta Representante da União para os Negócios Estrangeiros e a Política de Segurança, a sra. Ashton é mais do que um membro da Comissão - embora tenha de ser também membro da Comissão, exerce um cargo igualmente ligado ao Conselho (órgão de influência dos governos na UE). Se o PE mandar embora a sra. Ashton, estará a tomar para si um braço institucional mais longo do que era suposto.
O PE, de há alguns anos para cá, tem vindo a ganhar o seu peso político de forma pragmática: não deixa nunca de exercitar qualquer poder que conquiste, mesmo que o faça moderadamente. Este momento, em que se experimentam os novos equilíbrios resultantes do Tratado de Lisboa, será oportunidade a não perder. Se tentar vetar a sra. Ashton, o PE estará apenas a consolidar a sua estratégia - ou estará a preparar a primeira grande crise político-institucional da nova arquitectura da UE?
Assunto a seguir, até por os britânicos não quererem, por nada deste mundo, perder um instrumento de controlo da nova janela europeia para o mundo.

[Produto A Regra do Jogo]

o caminho de ohrid




do alto das muralhas de ohrid onde
acorrera aos gritos desvairados dos vigias,
o rei samuel avistou o seu exército desfigurado,
arrastando-se entre as montanhas da macedónia.

aos catorze mil homens tinham sido
arrancados os olhos por ordem do imperador
e a um em cada cem mandara ele, basílio II,
fosse poupado um olho para conduzirem o regresso

dessa manada cega. depois de atravessarem altas neves
vinham-se agora despenhando para o lago,
tropeçando, agarrados uns aos outros,
a tortura espelhada nas contorções das faces,

o sangue a empapar-lhes os andrajos. e o rei,
tomado pela angústia, deu um grito de dor e morreu
no alto da muralha sobre a colina e os seus bosques e pomares
que o lago placidamente reflectia.

nesse instante compreendeu como era ambígua
a força cega do destino e em nenhum mosteiro
podia a iconostase explicar-lhe esse cruel mistério:
os santos, com feições dos retratos do fayoum,

entre as chamas trémulas emudeciam
nos seus frescos e as vozes dos jovens monges,
no seu canto austero e imperturbado,
elevavam uma grave primavera na penumbra.



Vasco Graça Moura, in Laocoonte, rimas várias, andamentos graves, Quetzal, 2005



(foto de Tim Walker)


observação participante

11.1.10

Coimbra (matar saudades / viver os vivos que contam)



Órgão da igreja de Santa Cruz de Coimbra



Grafito coimbrão



Pormenor de um dos painéis do claustro de Santa Cruz de Coimbra



Pormenor de um dos painéis do claustro de Santa Cruz de Coimbra



Ara (parte superior de uma mesa de pedra onde se ofereciam libações aos deuses). Séc. II. No criptopórtico de Aeminium. Museu Nacional de Machado de Castro.



Génio da basílica: pequeno altar dedicado ao Génio protector da basílica, encontrado no entulho do criptopórtico de Aeminium. Finais do séc. II a meados do séc. III. Museu Nacional de Machado de Castro.



D. Inês de Castro, estátua de João Cutileiro, na Quinta das Lágrimas, Coimbra.

Fotos do Editor.

aquecimento global




The IPCC betting is that 2010 will be the hottest year on record!
(Cartoon by Marc S.)

[Medo]

 clicar no

[Medo]




de Maurice Sendak, Where the Wild Things Are

página 396

14:40

E antes que Settembrini pudesse chamá-lo à ordem, Naphta começou a falar de piedosos excessos de caridade que a Idade Média conhecera, de casos assombrosos de fanatismo e fervor nos cuidados prestados aos doentes: as filhas de reis haviam beijado as chagas malcheirosas dos leprosos, expondo-se voluntariamente ao contágio da lepra e chamando rosas às úlceras assim contraídas; haviam bebido a água na qual acabavam de banhar-se enfermos purulentos e declarado que nada no mundo lhes sabia melhor.
Settembrini fez menção de ter vontade de vomitar. (...) E a todos aqueles horrores opôs a higiene, a reforma social e os grandes feitos da ciência médica.
Mas essas coisas honrosas e burguesas, replicou Naphta, teriam sido de pouca utilidade para os séculos a que acabava de referir-se; teriam servido de bem pouco, tanto aos doentes e miseráveis como aos saudáveis e felizes que se tivessem mostrado caridosos menos por piedade que pela salvação da alma. Porque uma reforma social coroada de êxito teria privado os afortunados do meio mais importante de que dispunham para justificar-se, e os outros, do seu estado sagrado. A manutenção constante da pobreza e da enfermidade realizara-se, portanto, no interesse de ambos os partidos e esse conceito continuaria sustentável enquanto fosse possível defender o ponto de vista puramente religioso.

Thomas Mann, A Montanha Mágica

não, não é uma campanha eleitoral

8.1.10

acabou o circo (os cristãos comeram os leões)

16:23


Rubens, Daniel na cova dos leões

«Acordo de Princípios para a Revisão do Estatuto da Carreira Docente e do Modelo de Avaliação dos Professores dos Ensinos Básico e Secundário e dos Educadores de Infância.» (versão integral, em pdf)

Agora já não se vê ninguém a brandir umas folhas de papel que supostamente mostram o carácter burocrático do modelo de avaliação. O que realmente interessava ficou agora mais claro. (Para quem, antes, não o tivesse vislumbrado.) Vale a pena ler o acordo (embora não seja fácil entendê-lo, devo admitir).


um abraço, tão só

14:34


Casamento entre pessoas do mesmo sexo aprovado pelo Parlamento.

Sobre este assunto tenho mantido, no essencial, o silêncio. Por achar que o debate público tem misturado, sem cuidado, coisas diferentes. Por pensar que se criou um clima de "politicamente correcto" que não permite debater sem acantonamentos. Por sentir que está errada a colagem destas questões às divisões esquerda/direita e religiosos/incréus. Por detestar o "legalismo" de certos debates e a tentativa, mais uma vez, de reduzir ao partidarismo um debate que é de civilização.
Não quero deixar, de qualquer modo, de enviar daqui um abraço a todos quantos sintam que este passo será para si uma libertação. Mesmo que, nesta questão, eu me sinta mais próximo de Cesariny do que de qualquer outro, quero reflectir-me na alegria das pessoas concretas que possam sentir que hoje é o primeiro dia do resto das suas vidas.

página 395

12:31


Mas o que os mundos de Naphta e de Joachim tinham em comum, sobretudo, era o seu sentimento em relação ao sangue derramado e o axioma de que não se devia impedir a mão de derramá-lo; nisso, sobretudo, concordavam estritamente, como mundos, como ordens e como estados e a um amigo da paz parecia notável o que Naphta contava dos monges-guerreiros da Idade Média, que, ascetas até ao esgotamento e, no entanto, ávidos de conquistas espirituais, não haviam poupado sangue no seu esforço de estabelecer a Cidade de Deus e o reino do sobrenatural; falava dos belicosos templários que julgavam mais meritório morrer na luta contra os infiéis do que morrer na cama e para os quais matar ou ser morto por amor a Jesus não era crime, mas a glória suprema. Ainda bem que Settembrini não estava presente quando Naphta expôs essas ideias!

Thomas Mann, A Montanha Mágica

a grande coligação (negativa)

11:15


Ainda não parecem muito claras as informações acerca do conteúdo do acordo entre Isabel Alçada e uma parte dos representantes dos professores. Contudo, se está correcto o que leio na imprensa, a coligação negativa é agora uma grande coligação que inclui o ME no leque dos que se dão as mãos para destruir o legado do anterior governo. A grande novidade da última ronda parece ter sido o recurso a reuniões simultâneas entre o ministério e diferentes organizações de professores. Especialistas em estratégia negocial identificam o recurso como um clássico. Só se esquecem de dizer que isso assinala que saiu de cena, entretanto, aquele que devia ser o principal interlocutor do ministério: o país. O interesse do país, que tem de ser tratado falando olhos nos olhos com o país, andou aos retalhos de sala em sala para compor a manta.
Se o que serve para a função pública não serve para os professores (quotas para as classificações de mérito); se a progressão na carreira não depende das necessidades do sistema educativo e do país (contingentação de vagas), como se já tivéssemos alcançado o socialismo utópico; se ser excelente ou muito bom deixou de ser assim tão importante para progredir na carreira e basta uma notinha mais ou menos (“bom”, apenas o terceiro nível na classificação, dá para fechar a carreira em general) – então, tenho dificuldade em compreender como serão efectivados os princípios básicos de premiar o mérito, de uma avaliação com reais consequências na carreira, de colocar acima de tudo as necessidades do país.
Vivemos na ilusão de que o país se resolve só com consensos. E, aparentemente, não estamos preparados para pagar o preço que custam as rupturas necessárias. Contrariamente ao que muitos julgam, isto não mostra que Maria de Lurdes Rodrigues estava errada, por ser possível um acordo. O que isto mostra é que MLR, apesar dos erros que cometeu, estava correcta no essencial: o que “a classe” queria não era desburocratizar a avaliação, mas sim vencer o Estado, derrotar um Ministério da Educação que pensasse no país e nas gerações futuras. “A classe” conseguiu.


(Permito-me lembrar o que escrevi a 17 de Novembro de 2008: 10 teses sobre a crise da avaliação docente.)

[Um produto A Regra do Jogo]

7.1.10

Pacheco / arquivo / vivo, digo eu

17:46






ir lá, ir lá. clicando, clicando.






não te incomodes; há coisas que não valem a pena



consensos e opções (entre o velho do Restelo e o Adamastor)



Ricardo Paes Mamede, no Ladrões de Bicicletas, publica hoje uma posta intitulada Não queremos consensos, queremos clareza nas opções. Devo anotar que discordo da alternativa: precisamos de consensos, tanto como precisamos de opções claras. Os consensos em algumas matérias limpam o terreno para que nos possamos focar nas diferenças relevantes, clarificando-as, depurando-as, dando-lhes o sentido que deve ter a política como arte de viver em comum: fazer escolhas colectivas. O que os consensos têm de ser é tão claros como as opções, em vez de nuvens de fumo para nos não vermos uns aos outros.
Contudo, descontada esta divergência, quero assinalar o interesse do texto de Paes Mamede. Para abrir o apetite:
O Governo deveria ser transparente e convincente na sua opção pelas grandes obras (TGV, aeroporto, auto-estradas) – incluindo no esclarecimento da aparente discrepância entre a defesa que tem feito do investimento público e os níveis de execução previstos a este nível. A oposição de Direita deveria deixar claro, justificando devidamente as suas posições, (1) se discorda que o investimento público é indispensável nesta fase, (2) se considera que os grandes investimentos previstos pelo governo deveriam ser cancelados (o que nunca se atreveu a fazer) e (3) se defende que a situação orçamental é tão crítica que exige um programa de ajustamento (não obstante as implicações dessa opção em termos de desemprego) e qual a natureza desse ajustamento. A oposição de Esquerda, que tem deixado clara a defesa do reforço do investimento público na fase actual, deveria esclarecer se se revê ou não nalgum programa de exigência no que toca às despesas e receitas do Estado (reconhecendo que as más decisões nestes domínios contribuem para acelerar a destruição de um Estado capaz de intervir no padrão de desenvolvimento económico e social).

Ler tudo em Não queremos consensos, queremos clareza nas opções.

página 256

09:00

«Hans Castorp foi ver o defunto. Fê-lo por antipatizar com o sistema estabelecido, que consistia em ocultar tais acontecimentos, porque desprezava o desejo egoísta de ignorar, não ver e não ouvir essas coisas e desejava contrariá-lo activamente. À mesa fizera uma tentativa no sentido de mencionar o óbito, mas houvera em face do assunto uma repulsa tão unânime e tão obstinada que Hans Castorp sentira vergonha e indignação. A srª Stohr mostrara-se até agressiva. Que ideia era essa de falar daquelas coisas? – perguntara. Que espécie de educação recebera ele? O regulamento da casa protegia cuidadosamente os hóspedes contra o contacto com tais histórias e agora vinha um novato e metia-se a falar disso em voz alta, justamente na hora do assado e ainda em presença do Dr. Blumenkohl, que, de um dia para o outro, podia ter a mesma sorte (isto acrescentado em voz baixa). Se isso se repetisse, queixar-se-ia.»

Thomas Mann, A Montanha Mágica

6.1.10

Homens que são como lugares mal situados

22:53


Catherine Woskow, Head Series - 1, 2009


Homens que são como lugares mal situados
Homens que são como casas saqueadas
Que são como sítios fora dos mapas
Como pedras fora do chão
Como crianças orfãs
Homens sem fuso horário
Homens agitados sem bússola onde repousem

Homens que são como fronteiras invadidas
Que são como caminhos barricados
Homens que querem passar pelos atalhos sufocados
Homens sulfatados por todos os destinos
Desempregados das suas vidas

Homens que são como a negação das estratégias
Que são como os esconderijos dos contrabandistas
Homens encarcerados abrindo-se com facas

Homens que são como danos irreparáveis
Homens que são sobreviventes vivos
Homens que são como sítios desviados
Do lugar


Daniel Faria (1971-1999)


Córtex Frontal

Albergue Espanhol



Os blogues valem pelo que lá se escreve (ou mostra, ou dá a ouvir). Do novíssimo Albergue Espanhol (que, diga-se de passagem, está com uma apresentação cativante) respigo uma posta de António Figueira, O Menino falou de mais:
A recente vaga de panos vermelhos com um retrato barroco do Menino Jesus que se abateu sobre as janelas de meia Lisboa (e imagino que outras localidades do país) teve um efeito perverso...
O resto, mais os comentários, por lá se encontram. Vale a visita.

anúncio

11:23



Para saberem ao que vão, uma amostra:



inventário


Aquelas lojas que anunciam que estão fechadas para inventário - estão a inventar o quê?


Et l'homme créa dieu






5.1.10

o drama da enxada no Homem do Farol

16:50

Viram o filme Torre Bela, de Thomas Harlan, que se passa no já longínquo país que é o Portugal de 1975? A nota de divulgação, aquando da reposição (salvo erro em 2007), rezava assim: «Documento único e extraordinário sobre a ocupação da Herdade da Torre Bela no Ribatejo no pós-25 de Abril. A 23 de Abril de 1975, cinco semanas depois do 11 de Março e dois dias antes do aniversário da revolução dos cravos, ex-trabalhadores agrícolas, prisioneiros políticos libertados e rufias invadem a herdade, propriedade do duque de Lafões, numa acção rara por decorrer no Ribatejo (quando a maioria das ocupações se passavam no Alentejo e o Ribatejo permanecia refúgio da Direita) e por não estar, ao contrário das outras, ligada ao Partido Comunista. Realizado por Thomas Harlan e produzido por Paulo Branco, é um acutilante olhar político sobre uma época, uma utopia e as suas contradições.»

Ora, esse filme tem um diálogo de antologia, que parece ser acerca da propriedade de uma pequena ferramenta agrícola, mas que é afinal sobre os mais complicados recantos da mente humana, da luta entre o que sonhamos ser e o que tememos que o mundo realmente seja. Um diálogo entre utopia e realismo. (Abaixo fica um excerto.)

Agora, o Homem do Farol está a dar o episódio em novela ilustrada. Começa aqui. Vamos vendo.




missiva


O ministro dos Assuntos Parlamentares enviou hoje uma carta aos partidos para aferir da sua disponibilidade para dialogar previamente com o Governo sobre a proposta de Orçamento de Estado para 2010.

Caro Ministro,

A fim de considerarmos a possibilidade de aceitação de alguma proposta sua, mas não querendo precipitar-nos na mera colocação da hipótese de essa possibilidade ter algum sentido, gostaríamos de saber se está a ponderar o cenário de vir a fazer-nos alguma proposta propriamente dita. Não está em causa, de momento, o conteúdo de qualquer avanço: o procedimento para uma eventual aproximação dessa fase superior da batalha não está sequer ainda à vista no nosso horizonte. Tão-só desejamos saber se fará sentido da nossa parte declarar uma disposição de princípio favorável a ouvir o que tem para nos dizer, já que não podemos, sem perder a face, declarar uma disposição para ouvir quem não tenha explicitado uma intenção de falar. Imagino que, da sua parte, Senhor Ministro, também existirá alguma relutância em se dispor a falar para quem de todo não admita querer ouvir. Para que isto não caia num impasse, sugerimos que o Senhor Ministro declare que, ao nível de um pensamento estratégico ainda apenas informal (que não informe), concebe a possibilidade de vir a falar com quer queira ouvir, desde que quem quer ouvir admita, ainda que num estado inicial de apreciação da questão, que não é de todo surdo. Isto seria, e digo isto apenas como ilustração, assim como aquela cena do "Vexa sabe que eu sei que Vexa sabe que eu sei". (A vantagem desta ilustração é que há já vários partidos que dispõem dos recursos humanos capazes de a interpretar, uma vez que os pertinentes "recursos humanos" viajam assiduamente de candidatura para candidatura.)
Em alternativa, Senhor Ministro, se isto lhe parecer muito complicado, poderia simplesmente cada um dizer ao que vem e depois falarmos.
Seu,
(assinatura ilegível)

Da Literatura



Caro Eduardo Pitta,

Chego sempre atrasado às festas. Às festas dos dias 1 de Janeiro de cada ano, mais do que atrasado: meio entorpecido. Não pela excitação do réveillon, que não tem sobre mim esse poder, mas meio entorpecido precisamente pela estranheza de não perceber bem onde está a magia do momento (Thomas Mann põe muito bem no pensamento de Hans Castorp a imagem de que o ponteiro dos segundos avança sem por qualquer modo distinguir quaisquer marcas especiais no mostrador) e de nunca ter dominado aquela técnica de combinar doze passas com doze badaladas. Em suma, o atraso às festas de 1 de Janeiro é um atraso gordo, sempre.
Neste caso, chego atrasado à festa dos cinco anos do Da Literatura, o blogue que agora é só para lavoura das tuas mãos e artes, um blogue colectivo de um conjunto de um só elemento (pouca matemática basta para saber que isto é correcto, independentemente de ser ou não politicamente correcto, coisa que não te importará muito), um blogue que não podemos facilmente guardar numa gaveta definida. Um blogue desintoxicante. O órgão pouco oficial de (terás de que desligar esta expressão do título do livro, porque não quero aqui misturar nenhuma hermenêutica) - dizia eu, o órgão pouco oficial de um exército de um homem só. (Não é o homem que é só; é o exército que é de um homem só.)
Chego atrasado à festa, mas não perco a festa. A festa continua. No Da Literatura. Agora, oficialmente, "o blogue de Eduardo Pitta".
Um abraço, também de parabéns, Caro Eduardo.



constitucionalistas de emergência

10:31

Segundo Rui Crull Tabosa, no Corta-Fitas, «o referendo não é apenas um instrumento de democracia directa, mas sim a mais nobre e autêntica manifestação da soberania popular no processo de formação da vontade política nacional a respeito de um determinado assunto concreto».
Pelos vistos, a democracia representativa deve ser para "assuntos não-concretos". Assuntos abstractos, provavelmente. O resto devia ser por referendo.
A conversa ali é sobre casamentos gay. Mas não está, para mim, em causa a diversidade de opiniões acerca dessa matéria concreta. O que me interessa aqui é a capacidade para torcer toda a argumentação, qualquer argumentação, em nome de qualquer interesse de momento. Falar do referendo como resposta universal aos problemas da formação de decisões colectivas numa democracia representativa, deixando de fora apenas os "assuntos abstractos", seria facilmente entendido como uma piada de café, nunca como uma proposta reflectida - não fora o espírito do "vale tudo, incluindo arrancar olhos, para defender o nosso ponto de vista". Espírito que, infelizmente, se tornou muito popular. Ou popularucho?

4.1.10

monstros antigos

19:11

Cunhal e Camus, ou o século XX que teima em persistir



A 3 de Janeiro de 1960, Álvaro Cunhal e outros presos políticos fugiram de Peniche, ridicularizando o salazarismo e devolvendo à militância anti-ditadura vários "quadros" de valor. Passaram ontem 50 anos. Como lembrou Irene Pimentel, no Jugular, neste post.

A 4 de Janeiro de 1960, Albert Camus morreu vítima de um desastre de automóvel, um homem que «defendeu, acima de tudo, a liberdade contra todas as formas de totalitarismo», como escreve o incansável camusiano Eduardo Graça, no Absorto, neste post e em outros que se lhe seguem.

Parte importante da tragédia do século XX, o confuso cruzar de cruzadas liberticidas que se reclamavam de libertadoras, viria ao de cima na forma de uma peça dramática se Álvaro Cunhal se pudesse ter cruzado com Camus no dia a seguir ao da fuga de um e dia da morte do outro. Para ajudar a lembrar o enredo, é útil esta cronologia de Camus, que agradecemos ao Eduardo Graça.

Útil para actualizar as nossas perplexidades.

3.1.10

Ágora, o filme

23:52

aqui escrevemos anteriormente sobre o filme Ágora, que está nas salas agora. O trailer é fácil de encontrar por aí. Aduzimos hoje mais um incentivo a ir ver: uma entrevista com o realizador, Alejandro Amenábar, num excerto legendado em português.



Podendo entender espanhol, vale a pena ver a peça mais completa, em três partes a seguir.









a morte da literatura


Ensaio literário de M. S. Lourenço, em Os Degraus do Parnaso(*)

A MORTE DA LITERATURA

A reflexão sobre a cultura está conspicuamente a tomar a forma de uma necrofilia. Esta já tem uma tradição centenária, se pensarmos que a primeira morte foi anunciada há um século quando Zarathustra anunciou então a morte de Deus e nos anunciou a visão do homem do futuro, o super-homem para além do bem e do mal, o qual representa uma transcendência ao mesmo tempo do humano e do divino.

A segunda morte teve lugar já no nosso século [XX], após a Segunda Guerra Mundial, ao ser anunciada a morte do homem e, eo ipso, a inexequibilidade do projecto do super-homem. Estas duas mortes estão entre si relacionadas, uma vez que a morte de Deus foi causada pela ciência e a morte do homem foi causada por um produto da ciência, a máquina. Assim, enquanto a ciência levou à eliminação da percepção mágica do mundo, a máquina eliminou o comportamento mágico do homem e transformou-o num autómato.

Somos contemporâneos da terceira morte, a morte da Literatura, tal como ela é anunciada no ensaio de Hans Magnus Enzensberger com o depressivo título Mediocridade e Loucura. Os algozes da Literatura não são uma entidade abstracta, como a ciência, ou um objecto material, como máquina, eles são antes os consumidores dos meios de comunicação de massas, para os quais Hans Magnus Enzensberger adopta a designação hierárquica de «analfabetos secundários». Estes distinguem-se dos analfabetos primários sobretudo pelo facto de, além de saberem ler e escrever (com erros), estarem limitados a imitar a linguagem dos meios de comunicação de massas.

Assim, enquanto a contradição entre a magia e a ciência dá origem à morte de Deus, e a contradição entre a alma e a máquina dá origem à morte do homem, agora a contradição entre a linguagem da imaginação e a dos meios de comunicação de massas dá origem à morte da Literatura.

Mas a morte da Literatura não pode ser exclusivamente imputada aos analfabetos secundários, e a injustiça desta imputação torna-se mais óbvia se considerarmos os géneros literários tradicionais.

O fim da poesia épica tem de ser atribuído a causas alheias à cultura da audiência a quem o poeta épico se dirige. O sentido do poema épico consiste essencialmente em apoiar a configuração de uma concepção de Estado, já realizada ou a realizar. Mas como os fins que os Estados actualmente propõem aos seus súbditos não podem ser sublimados, porque são manifestamente imorais ou porque são simplesmente mercenários, a degradação da figura do Estado arrasta consigo a obsolescência da poesia épica.

A morte da poesia trágica é também independente da incultura das massas. Ao contrário, é um produto da cultura que está na origem do desaparecimento do género trágico. Este produto da cultura é a doutrina ética conhecida pelo nome de «voluntarismo», uma doutrina segundo a qual a vontade precede e determina a acção. Mas é óbvio que num mundo onde eu só faço aquilo que quero, deixo também de ter qualquer experiência trágica.

Enfim, no que diz respeito à poesia lírica, os temas do sujeito lírico e da sua união com a natureza são inconciliáveis com a catástrofe ecológica. Para o poeta lírico, o mundo não só deixou de ser mágico como se tornou repugnante: os rios, as florestas e a lua já o são, em breve seguem-se os planetas do sistema solar e o espaço cósmico em geral.

É preciso tornar cristalinamente óbvio em que é que consiste a minha diferença em relação às teses de Enzensberger. Sem dúvida que a constituição de uma plebe audiovisual, com um número sempre crescente de participantes, torna a Poesia impossível, uma vez que deixa de haver interlocutor para a asserção poética. Simplesmente a plebe audiovisual, que representa a negação da cultura, está paradoxalmente associada com alguns produtos da cultura, os quais também podem ser vistos como a causa eficiente da morte da Literatura.

Deixando agora de lado os factores de carácter político e económico que estão na origem da decadência da poesia épica e da poesia lírica, voltemo-nos uma vez mais para os factores endógenos da cultura. Além do voluntarismo, a que já aludi acima como responsável pela obsolescência da tragédia, a doutrina de estética literária conhecida pelo nome de «funcionalismo» produz efeitos em tudo idênticos aos do analfabetismo secundário.

Para o escritor funcionalista, o fim da obra literária é a comunicação de uma ideia. E tal como numa comunicação telefónica a forma está subordinada à informação a transmitir, assim também na obra de arte literária a forma é função da mensagem. Nestas circunstâncias, o valor de uma obra de arte literária é o valor da ideia nela representada. Enquanto para Auerbach a narrativa do Novo Testamento é responsável pela queda da doutrina clássica dos estilos, em virtude de uma mesma pessoa ser ao mesmo tempo uma reencarnação do sublime e do vulgar, agora estamos perante uma doutrina para a qual o estilo e a forma deixam de ser o fim da obra de arte literária.

Não é assim de surpreender que ao funcionalismo se viesse juntar aquela forma de cepticismo estético que é representada pelo relativismo, o ponto de vista da estética literária segundo o qual tudo tem igualmente o mesmo valor: não há fronteiras entre o literário e o não-literário, e é indiferente se se lê uma crónica da Bolsa ou uma página de Proust. Mas evidentemente se tudo é igual a tudo, então também não vale a pena dizer nada, e é esta genuinamente a morte da Literatura.

A consequência prática desta doutrina é a abolição da diferença entre o escritor e o analfabeto secundário, caminhando ambos para uma legitimação recíproca e sem conflitos. Os escritores legitimam a plebe audiovisual escrevendo sem estilo e sem forma, sem exigências para consigo ou para com o seu público, o qual, por sua vez, legitima o escritor não fazendo perguntas, porque nem autor nem leitor sabem o que é o ramo de Eneias, o que é que Ariana faz na ilha de Naxos.

Entretanto, cem anos de perplexidade chegaram para mostrar que Deus não morreu, uma vez que a todo o momento os deuses ressuscitam. A segunda prognose também ainda não se realizou e, embora pendurado à beira de um abismo, o homem ainda não morreu. Ambos, Deus e o homem, são uma criação da Literatura, do Logos, que é o princípio por meio do qual as coisas passam a ser. Assim a morte da Literatura é o Apocalipse.


(*) A primeira edição d' Os Degraus do Parnaso é de 1991, por O Independente. A segunda edição, integral, coube à Assírio & Alvim, em 2002. Foi republicada em O Caminho dos Pisões, em 2009, pela Assírio & Alvim, que assim nos dá acesso à obra poético-literária reunida de M.S. Lourenço.
M.S. Lourenço, filósofo, ensaísta e poeta, morreu a 1 de Agosto de 2009, aos 73 anos. É um Professor de que tenho saudade; devia ter aprendido mais com ele, mas é preciso saber muito para aprender com os grandes.

Página de M.S. Lourenço como filósofo da matemática.