11.9.24

O DEBATE. Trump vs Kamala, claro.

10:04



Para um ser racional, capaz de distinguir entre factos e alucinações e capaz de pesar a qualidade dos argumentos, Kamala venceu claramente o debate. Trump fartou-se de mentir e, mais do que isso, de inventar completos disparates. A questão é saber se isso serve de muito. De alguma coisa serve: se Kamala tivesse mostrado impreparação, ou se tivesse descambado em assuntos melindrosos para a sua base de apoio potencial (como a situação em Israel e em Gaza), o seu eleitorado desmobilizaria em alguma medida. Mas este tipo de debate, com aquele eleitorado neste contexto, não é decisivo. Para distinguir entre um facto e uma bizarria, é preciso ter algum conhecimento dos factos. Para distinguir entre um bom argumento e um pseudo-argumento sem lógica nenhuma, é preciso ter um certo grau de racionalidade em operação. Mais: para ter uma avaliação democrática é preciso ser um democrata: os que continuam a aplaudir a recusa de Trump em aceitar o resultado das anteriores eleições não se chocam nada com a insistência nessa loucura. A questão é que o eleitorado de Trump tem mais disto do que o eleitorado de Kamala (nenhum dos eleitorados é homogéneo, nenhum é puro e santo, nem nos EUA nem em lado nenhum, é uma questão de proporção). Não vale a pena rasgarmos as vestes, contudo. No imediato, porque Kamala pode perfeitamente vencer, até com o apoio dos republicanos racionais e democratas que percebem o perigo para a democracia e vêm no trumpismo a destruição do Partido Republicano tradicional. O debate contribuiu para esse caminho. Por outro lado, porque, embora em graus diferentes, esta fragilidade é característica das democracias representativas tal como elas realmente existem: a falta de mecanismos para os cidadãos terem maior poder real na decisão política, mais quotidianamente e não apenas de quatro em quatro anos, promove o desconhecimento dos factos e das consequências das políticas seguidas. Por não terem considerado devidamente o problema do afastamento entre representantes e representados, as chamadas "democracias ocidentais" ficaram mais vulneráveis à demagogia e à manipulação. É melhor viver nestas democracias imperfeitas do que em sociedades esmagadas por ditaduras, como acontece na Rússia, na China, na Arábia Saudita, ... (a lista é imensa). Mas corremos o risco de perder essa vantagem se não corrigirmos os nossos defeitos fundamentais. Que a "democracia representativa real" não acabe como o "socialismo real"...


Porfírio Silva, 11 de setembro de 2024
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3.9.24

OE 2025: falar claro sobre o país




Deixo aqui, para registo, o editorial do Acção Socialista, publicado na edição de 2 de setembro, da minha responsabilidade como diretor desse órgão de informação do PS.

***

OE 2025: falar claro sobre o país

Há quem pense que negociar o Orçamento de Estado, neste caso o OE para 2025, é apenas uma questão de conversa leve para entreter as audiências. E, pior, há quem ache que pode forçar os deputados do PS a votar sob chantagem e sem que o governo da AD faça minimamente o seu trabalho para encontrar os votos parlamentares que o povo não lhes deu. E também há, na esquerda da esquerda, quem ache que pode dizer ao PS como assumirmos as nossas responsabilidades e quem acredite que não somos capazes de pensar pela nossa cabeça acerca do interesse nacional e do interesse da maioria do povo português que vive do seu trabalho.


A posição do PS é que estamos a tratar de um assunto sério (embora não seja a única matéria a merecer debate político) e que, por isso, o país pode continuar a contar com a nossa responsabilidade e com o nosso compromisso com as propostas e com os valores com que nos apresentámos ao eleitorado.
Foi essa responsabilidade e verticalidade, com clareza e transparência, que, ontem, mais uma vez, em Tomar, assumiu o Secretário-Geral do PS. Disse, na ocasião, várias coisas muitíssimo acertadas:

(1) O PS só pode começar a negociar o OE quando receber a informação necessária para avaliar a situação do país. Evidente: o contrário seria irresponsabilidade.

(2) O PS não aceitará um OE que tenha implícitos os regimes IRS e IRC que a AD propôs na AR. Claro: se têm uma pequeníssima maioria e querem impor a sua visão unilateral, é porque não querem aprovar o OE nem estão a ser sérios com o PS.

(3) Se as autorizações legislativas relativas aos regimes fiscais forem aprovadas com a IL e o CH, é com esses partidos que o governo tem de aprovar o OE. Claro: a AD não pode querer fazer governação séria com a técnica das duas caras, que consiste em pedir ao PS os votos para fazer a política dos radicais de direita.

(4) Cumpridas as três condições anteriores, então apresentaremos as nossas propostas para o OE. Certo: continuamos a ter uma posição construtiva, como temos tido desde que se iniciou esta legislatura. Coisa de que, pelo contrário, a AD não tem dado quaisquer mostras.

Acresce: a AD, com esta maioria frágil, só pode querer aprovar o OE com cedências relevantes ao partido de oposição com que quase empatou. Certo: a democracia é esse pluralismo, não é ganhar por uma unha negra e querer governar sem ter em conta os outros eleitos pelo voto do povo - de cujos votos, aliás, precisam.

Pedro Nuno Santos posicionou o PS neste debate de forma clara, correcta, construtiva e responsável. Não fez nenhuma exigência maximalista. Não bloqueou nenhuma possibilidade. Deixou caminho aberto para que Luís Montenegro se deixe de jogos florais e assuma as suas responsabilidades.


(A publicação original pode ser encontrada aqui: EDITORIAL. OE 2025: Falar claro sobre o país )


Porfírio Silva, 3 de setembro de 2024
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18.7.24

Senhor PM, a tática da má-fé prejudica a democracia

09:55

A propósito do debate do estado da nação, ontem, no Parlamento, publiquei ontem este editorial no Acção Socialista, que aqui deixo para registo.

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SENHOR PM, A TÁTICA DA MÁ-FÉ PREJUDICA A DEMOCRACIA

Ninguém critica o Governo Montenegro por não ter feito tudo em 100 dias. Tal como ninguém critica que o governo da direita aproveite um certo grau de convergência interpartidária registada na última campanha eleitoral para as legislativas em torno de certas matérias para as fazer avançar. Como aconteceu com as reivindicações dos professores relativas à sua carreira, que teriam registado avanços qualquer que fosse o resultado das legislativas. Não será o PS a cometer esse erro, até porque temos consciência de que não conseguimos fazer tudo o que planeámos, num ciclo político que enfrentou uma crise sanitária sem precedentes, uma guerra na Europa e uma crise inflacionária com uma dimensão desconhecida para muitos. Não será o PS a cometer esse erro, porque sabe que há muito por fazer, como sempre dissemos, apesar de o seu ciclo de governação ter sido interrompido de forma extemporânea e artificial.

 

O que se critica ao Governo é que seja mais um departamento de propaganda do que um executivo nacional. Que tente enganar o país e fazer passar por suas medidas que herdou, legisladas e em execução: como foi o caso com a descida do IRS. Que não se importe de arriscar a credibilidade internacional do país por pura tática política: como foi o caso com a tentativa de denegrir o estado das finanças públicas, no que só recuou depois de desmentido pela Comissão Europeia. O que se critica ao Governo é a tomada de medidas que agravam as desigualdades em prejuízo dos que mais precisam, como é o caso da operação fiscal justificada como política para os jovens. O que se critica é a arrogância da incompetência, como tem sido demonstrado na área governativa da Saúde, com tantos casos que seria difícil ter aqui espaço para elencar todos. O que se critica ao Governo é que se esforce mais para parecer que governa do que para governar.

 

Se não se critica o Governo por não ter feito tudo em 100 dias, tem de criticar-se o Governo por se esgotar na guerrilha política e mostrar completo alheamento face à responsabilidade, que é sua, de trabalhar pela estabilidade da governação que propõe ao país.

 

Se um governo minoritário, liderado por um primeiro-ministro cujo partido tem apenas uma bancada parlamentar da mesma dimensão da bancada do maior partido da oposição, claramente insuficiente para governar sozinho, aproveita o momento solene do debate parlamentar do estado da nação para atacar em puro “politiquês” o principal partido da oposição, mostra o nível da sua (fraca) ambição. Luís Montenegro não procura tempo e apoio para desenvolver políticas públicas que continuem o esforço de desenvolvimento do país, porque se o quisesse apresentaria ao Parlamento as suas ideias para construir as soluções que o permitissem. Luís Montenegro não procura construir convergências a partir da pluralidade, que é o esforço normal e necessário em democracias onde a representação popular é ela mesma plural – e até, cada vez mais, fragmentada –, continuando, ao contrário, num espírito de desforra que não pode ser bom conselheiro: como exibiu hoje, de novo, no parlamento, classificando como “usurpação” a constituição, em 2015, de uma maioria das esquerdas para interromper a governação “além da troika” (esquecido, talvez, daqueles que, no seu campo político, tinham já anteriormente teorizado a razoabilidade de explorar todos os mecanismos constitucionais para criar uma maioria política, mesmo contra a força que chegasse em primeiro lugar).

 

Se não se critica o Governo por não ter feito tudo em 100 dias, o mesmo tem de ser criticado por querer ser o Governo dos 300 dias. Quando o PS oferece disponibilidade para discutir, sem linhas vermelhas, as grandes opções contidas no orçamento de Estado, o Governo procura saturar a paciência dos socialistas com agressividade verbal e puro desdém. O Governo não quer ter condições para governar. O Governo quer, apenas, poder continuar em campanha eleitoral – e, para isso, procura umas eleições rápidas. Quem conduz politicamente este Governo quer repetir a tática do “deixem-nos trabalhar” e das “forças de bloqueio”, esquecendo que, passados todos estes anos depois da primeira volta dessa tática, a instabilidade política tem um preço exorbitante, que é a progressão do extremismo populista. A escolha da agressão constante ao maior partido da oposição, tentando que se torne para os socialistas insuportável negociar com quem assim se comporta, exibe uma má-fé política de quem, depois, proclama uma abertura retórica nunca concretizada para “consensos”.

 

A democracia não precisa de falsos consensos. A democracia não precisa de que estejamos todos de acordo; precisa que as forças democráticas sejam capazes de trabalhar por compromissos razoáveis e equilibrados, compromissos que não ignorem as diferenças políticas e não impliquem a renúncia aos valores fundamentais de cada um dos interlocutores. Pretender que, em democracia, a vontade do Governo prevalece “porque sim”, mesmo sem apoio maioritário, desconsiderando a representação cidadã que foi confiada também a outros partidos, é negar a própria democracia. Usar retoricamente a necessidade de compromissos e, depois, fazer tudo para afastar quem está disposto a discutir peças tão decisivas como o orçamento de Estado, é usar de má-fé. É preciso que o senhor primeiro-ministro compreenda que a má-fé no debate democrático vai contra a própria essência deliberativa da democracia – e vai de par com a sua tendência para desvalorizar o parlamento. A má-fé, a retórica do diálogo usada como mero ingrediente de uma estratégia de confrontação e rutura, com meros intuitos eleitoralistas, é deslealdade à própria democracia. Senhor Primeiro-Ministro, essa tática da má-fé prejudica a democracia – e a vida da democracia, estando difícil por todo o lado, bem dispensa que se ofereçam mais oportunidades aos que engordam na instabilidade e no clima de confrontação extremada.


Porfírio Silva, 18 de julho de 2024
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9.7.24

Contributo para compreender a política em França nos próximos dias

A primeira reação face aos resultados das eleições legislativas antecipadas de 7 de julho em França foi de alívio: a "barragem republicana" impediu a extrema-direita de chegar ao poder, Já escrevi sobre isso, na segunda-feira a seguir aos factos, um editorial no Acção Socialista: Derrotar a extrema-direita, não apenas por agora, mas duradouramente. A vitória da coligação pré-eleitoral de esquerda, a Nova Frente Popular, na qual o Partido Socialista Francês toma parte, é motivo de esperança - mas também de atenção e reflexão.

Contudo, para refletir precisamos de alguma informação de base. E, dadas as complexidades do sistema político francês, e das próprias minudências do sistema eleitoral, às vezes isso não é fácil (ainda menos para quem não consegue recolher informação na língua dos franceses). Essa é a motivação para deixar aqui alguma informação e alguns elementos de problematização:
- um olhar sobre os resultados das legislativas 2024;
- a composição interna dos três grandes blocos;
- alguns tópicos que podem ser úteis para interpretar o que virá nos próximos dias ou nas próximas semanas.
  



O ESSENCIAL DOS RESULTADOS ELEITORAIS



Para começar, os dados quantitativos: mapa da França com os eleitos por círculo (só os círculos dos residentes em território continental europeu):




                 





A NFP (Nova Frente Popular) ficou em primeiro lugar; o Ensemble, que junta os centristas em torno de Macron, ficou em segundo lugar; o Rassemblemente National (RN, extrema-direita), com o apoio de uma parte do LR (Os Republicanos, que costumavam ser direita tradicional) ficou em terceiro lugar; LR (entre Os Republicanos, aqueles que recusaram juntar-se à extrema-direita) ficou em quarto lugar. 

Sendo a Assembleia Nacional composta por 577 deputados, faz-se maioria absoluta com 289 deputados. Note-se que o governo que agora deverá cessar funções, da cor do Presidente Macron, não dispunha de maioria absoluta no parlamento, governando com recurso cada vez mais frequente a um mecanismo constitucional que permite ao governo fazer passar leis sem as submeter a voto parlamentar normal (nessa circunstância, a única maneira de travar essa lei é apresentar e fazer aprovar uma moção de censura ao governo, derrubando-o).

Onde ganhou a Nova Frente Popular:






Onde ganhou o Ensemble:





Onde ganhou a extrema-direita (RN e Republicanos que a apoiaram):




Uma nota de precaução sobre os resultados: se é certo que já se sabe quem foi eleito e quem não foi eleito (os nomes dos deputados eleitos), ainda não se sabe exatamente a distribuição por grupos políticos. Os números acima não são, por isso, absolutamente certos, havendo dissonância entre várias fontes consultadas (em princípio, não afetando a correlação de forças global).  A que se deve essa estranha situação? Designadamente, e especialmente, ao facto de estarem em curso algumas dissidências dos Insubmissos - devidas, nomeadamente, à forma sectária como Mélenchon elaborou as listas, "purgando" alguns dos seus camaradas que o haviam criticado, nomeadamente tentando afastar deputados do seu partido com mandato na anterior Assembleia Nacional. Deu-se, inclusivamente, o caso de um candidato excluído dos Insubmissos ter mantido a sua candidatura contra um (outro) candidato dos Insubmissos (integrado na NFP) e ter ganho a eleição. Os números acima são os que podíamos ler no Le Monde ao fim do dia de segunda-feira.




SOBRE A COMPOSIÇÃO INTERNA DOS TRÊS GRANDES BLOCOS



Importa conhecer a composição de cada um dos grandes grupos, na medida em que eles estão longe de ser homogéneos e muito do que pode acontecer nos próximos tempos pode passar por reconfigurações que ponham em causa as formas apresentadas aos eleitores.

Esta informação não foi fácil de obter, a maior parte dos órgãos de comunicação social não tinha esta informação durante a elaboração deste texto e, finalmente, usamos a informação da FranceInfo em linha (obrigado, Maria João Pires). Os dados globais não correspondem à informação anterior, mas dão uma distribuição que, mesmo que seja aproximada, dá uma boa visão global da distribuição de forças dentro de cada um dos três grandes blocos.



Distribuição dos assentos dentro da Nova Frente Popular:

LFI (Insubmissos, liderados por Mélenchon): 71 deputados

Socialistas (que incluem o Partido Socialista Francês, mas onde este não é sequer hegemónico): 64  deputados

Ecologistas: 33 deputados

Partido Comunista Francês: 9 deputados

Outros: 3 deputados

Há deputados eleitos por outras (pequenas) formações, regionalistas, dissidentes dos Insubmissos que conseguiram ser eleitos contra o candidato oficial, socialistas eleitos fora das listas do NFP, etc., que podem vir a alinhar com a estratégia da NFP, apesar de não lhe pertencerem formalmente.







Distribuição dos assentos dentro do Ensemble: 

Renascimentos (Macron): 98 deputados

MoDem: 34 deputados

Horizons: 26 deputados 

União dos Democratas e Independentes: 1 deputado

Outros: 4 deputados







Distribuição dos assentos na extrema-direita e aliados:

Rassemblemente national (RN): 126 deputados

RN e Republicanos: 17 deputados







CHAVES PARA O FUTURO



Como disse na noite eleitoral (na TF1) um alto dirigente do Partido Socialista Francês, acabou o bipartidarismo. É verdade que esse bipartidarismo já há muito que era um "bi-bloquismo", porque o enfrentamento era entre dois blocos, de composição complexa cada um deles, e não entre dois partidos, mas, agora, temos uma situação qualitativamente nova: estão em campo, não dois, mas três grandes blocos políticos, eventualmente em curso de recomposição (por exemplo, é interessante saber o que farão no futuro Os Republicanos da ala histórica, que, sendo bastante conservadores, não alinharam com a extrema-direita e, de momento, parecem pouco inclinados a ceder ao namoro dos Macronistas, escaldados com o tratamento que o Presidente lhes deu no passado. E têm, com um conjunto de aliados próximos, cerca de 60 deputados.) De qualquer modo, a situação é nova e poderá evoluir mais ou menos rapidamente nos próximos tempos.

Nenhuma grande força política em França estará, agora, apenas a pensar no futuro imediato. Todos deverão estar conscientes de que uma solução imediata que rapidamente se revele fraca e incapaz de responder à gravidade da situação provocará, daqui a um ou dois anos, uma crise ainda maior e, então, uma vitória mais provável da extrema-direita. Na realidade, o cenário é confuso. Todos estarão, pois, a jogar em vários tabuleiros ao mesmo tempo.


Os Macronistas foram os principais beneficiários da "barragem republicana" à extrema-direita


Desde logo, não é fácil interpretar os resultados da segunda volta destas eleições: qual é o peso real de cada bloco? O partido de Le Pen, tendo, graças à “frente republicana”, ficado em terceiro lugar em número de assentos na Assembleia Nacional, recolheu cerca de 32% do voto popular, contra um pouco mais de 25% da Nova Frente Popular e um pouco mais de 23% das forças centristas mobilizadas por Macron. Contudo, essa vantagem tem de ser relativizada de dois modos. Por um lado, a frente de esquerda e o bloco centrista não concorreram em todos os círculos. Mais precisamente, a NFP desistiu (principalmente a favor dos centristas) em cerca de 130 círculos e os centristas desistiram (principalmente a favor da NFP) em cerca de 80 círculos. Nos círculos onde desistiram tiveram zero votos - mas os seus eleitores não desaparecera, embora não sejam contabilizados. Quem perdeu mais, nessa dimensão, foi a NFP, que desistiu em mais 50 círculos do que os centristas: afinal, foram, talvez, os Macronistas os que mais ganharam com a estratégia proposta pela esquerda frentista. Este efeito é reforçado pelo facto de a NFP ter sido afastada na primeira volta em mais círculos do que a extrema-direita (a extrema-direita foi eliminada em 92 círculos na primeira volta, a NFP foi eliminada em 131 círculos). Noutro sentido, há que contar com os candidatos que, tendo sido eleitos à primeira volta... não tiveram votos na segunda volta: a extrema-direita elegeu 39 na primeira volta, a NFP 31, e foram os únicos a eleger um número significativo na primeira volta - e, portanto, os únicos prejudicados na fotografia em percentagem da segunda volta. No conjunto, enquanto o resultado "natural" da primeira volta dava 306 triangulares, finalmente só aconteceram 89, o que mostra o grau de distorção da percentagem da segunda volta.


A aprendizagem por fazer

Em países como a Alemanha ou os Países Baixos, e outros onde os resultados eleitorais levam os partidos a procurar constituir maiorias para poderem governar, sem a ilusão de durarem muito governos minoritários, o que estaria em perspectiva, agora, em França, seria alguma espécie de entendimento entre a NFP e os centristas reunidos em torno de Macron. Não parece, contudo, que isso seja fácil. Macron, com o seu egocentrismo, tornou-se um símbolo odiado da arrogância política. É difícil que a esquerda, no seu conjunto, aceite colaborar ostensivamente com ele. Simetricamente, a componente Mélenchon da NFP é tóxica, não apenas para os adversários da direita e do centro, mas igualmente para outras forças de esquerda, para quem o desbragamento verbal e o sectarismo do líder dos Insubmissos é inaceitável - tal como já é inaceitável mesmo para alguns dirigentes dos Insubmissos. Mas Mélenchon é o líder dos Insubmissos e, portanto, da componente maioritária da NFP - embora muitos tenham dito e redito, durante a campanha eleitoral, que ele não seria o seu candidato a primeiro-ministro. 
Haverá, em algumas componentes da NFP, a tentação de romper e aceitar alguma forma de cooperação com os Macronistas - mas é muito duvidoso que seja aceitável romper, assim, sem mais nem menos, uma proposta que se apresentou aos eleitores e cujo programa foi sufragado em questões muito concretas (como a idade da reforma). Não seria um bom princípio enganar assim os eleitores - e seria, mais tarde, um peso difícil de carregar em novo confronto eleitoral.
Os Macronistas, por seu lado, tentarão, provavelmente, juntar forças com uma parte da direita tradicional, designadamente os Republicanos e seus aliados, para tentarem compor um bloco mais numeroso que a NFP, mas é duvidoso que sejam, assim, recompensados, por estes anos em que Macron andou a tentar desgraçar todos os partidos de esquerda e todos os partidos de direita a favor da sua estratégia de hegemonia. 


Entre o curto e o médio prazo

Durante um ano, a Assembleia Nacional não pode ser dissolvida. O atual governo, Macronista, não tem maioria no parlamento e governou nos últimos dois anos com recurso frequente a um mecanismos constitucional que permite ao governo "impor" uma determinada lei fazendo com que ela só possa ser travada pela aprovação de uma moção de censura e consequente derrube do governo. Assim sendo, não é de descartar que Macron, aproveitando da vantagem de ser Presidente, queria nomear um governo e esperar que ele resista ao parlamento por essa via. Não seria, contudo, fácil continuar mais tempo a viver desse expediente.
E seria democraticamente triste que Macron tratasse de ignorar olimpicamente que a NFP foi, politicamente, a principal vencedora destas eleições.
Entretanto, alguns dirigentes da NFP querem ter a oportunidade de governar com o mesmo expediente que o governo de Macron tem usado, considerando que podem viver com uma maioria relativa na Assembleia Nacional, sem necessidade de negociar com os centristas ou com a direita. É expectável, com umas eleições presidenciais no horizonte, que nenhum dos outros blocos queira dar essa oportunidade à esquerda.
Haverá, designadamente na esquerda francesa, quem julgue que é preciso uma reforma profunda do sistema político - designadamente do sistema eleitoral, que alguns consideram que só será democrático se for proporcional - , estando, por isso, dispostos a qualquer solução entre "união republicana" e "governo de tecnocratas" para aguentar um ano, enquanto se fazem essas reformas, para depois voltar a dar a voz ao povo.

Em jeito de resmungo pessoal, eu diria o seguinte: (1) as nossas democracias estão a demorar a aprender que os parlamentos são o lugar da pluralidade e, portanto, devem ser o lugar da concertação e do compromisso - e, enquanto não aprendermos isso, estaremos sempre na tentação de termos poder suficiente para não precisarmos de mais ninguém, com a direita extrema sempre à espreita para parasitar a instabilidade e a incapacidade de compromisso dos partidos democráticos; (2) os debates daquilo que, por cá, eu chamei "esquerda plural", são, no essencial, os debates que a esquerda francesa vai ter de fazer para sair de pé deste desafio - e, aí, não tenho dúvidas de que um dos principais pontos de torção será o posicionamento face à União Europeia, onde as divergências ideológicas de fundo têm mais implicações em decisões políticas muito concretas.



Porfírio Silva, 9 de julho de 2024
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8.7.24

Derrotar a extrema-direita, não apenas por agora, mas duradouramente





Ontem, 7 de julho, foi a segunda volta das eleições legislativas antecipadas de 2024 em França e hoje, na minha responsabilidade de diretor do órgão informativo do Partido Socialista, entendi dever escrever o editorial do Acção Socialista. Reproduzo-o aqui, para registo.

***

DERROTAR A EXTREMA-DIREITA,

NÃO APENAS POR AGORA, MAS DURADOURAMENTE


Ontem, festejámos uma realização importante: os franceses travaram a extrema-direita! A Nova Frente Popular, juntando uma pluralidade de forças de esquerda – entre as quais, o Partido Socialista Francês –, num acordo político e eleitoral concretizado em pouquíssimos dias, elegeu mais deputados do que qualquer outra candidatura. O Ensemble, reunindo várias forças que se movem na influência do Presidente Macron, ficou em segundo lugar. Em terceiro lugar, em número de deputados, ficou o partido de extrema-direita animado por Marine Le Pen.


Numa semana em que tivemos duas eleições legislativas importantes no espaço europeu, Reino Unido e França, os socialistas têm muita coisa a festejar. O Partido Trabalhista britânico conquistou uma larguíssima maioria absoluta, acabando com mais de uma década de trapalhadas dos conservadores e permitindo a esperança de uma governação mais decente naquele país (por exemplo, acabando com o projeto de entrega de refugiados a países terceiros, ao arrepio das garantias com que os países civilizados se comprometem face à lei internacional). Pelo seu lado, o Partido Socialista Francês integrou a vasta reunião de forças de esquerda que trabalhou para impedir o acesso da extrema-direita ao poder – tendo conseguido concretizar esse desiderato. São, pois, duas realizações positivas de partidos com quem o PS mantém estreitas e cordiais relações, baseadas em valores e compromissos progressistas.


Convém, no entanto, continuar com os pés bem assentes na terra e sermos capazes de medir os desafios que temos perante nós. No Reino Unido, o Reform UK, o partido extremista liderado por Nigel Farage (o Trump inglês), só conseguiu eleger quatro deputados para a Câmara dos Comuns (o que compara com mais de quatrocentos eleitos pelo Labour), mas isso deveu-se ao sistema eleitoral vigente (uninominal maioritário a uma volta, em que, em cada círculo, “o vencedor leva tudo”). Em votos, esse partido extremista colheu mais de 14%. Ficou, pois, em terceiro lugar (os Trabalhistas venceram com mais de 33% e os Conservadores ficaram com mais de 23%). Em França, o partido extremista, que tenta apresentar uma imagem adocicada para melhor enganar os incautos, e que vai navegando em sucessivas gerações Le Pen, tendo, graças à “frente republicana”, ficado em terceiro lugar em número de assentos na Assembleia Nacional, recolheu cerca de 32% do voto popular, contra um pouco mais de 25% da Nova Frente Popular e um pouco mais de 23% das forças centristas mobilizadas por Macron. Era com este sistema que a extrema-direita ambicionava chegar à maioria absoluta, chegando o seu candidato a primeiro-ministro a dizer que só formaria governo nessas condições, pelo que não devemos dar qualquer crédito aos seus protestos pelo funcionamento do sistema depois de conhecerem os resultados das urnas – mas a questão merece reflexão.


O que estes números nos dizem é que, mais do que derrotar a extrema-direita hoje, é preciso derrotar a extrema-direita duradouramente. Agir nas raízes, não apenas na copa das árvores. É preciso eliminar as causas sociais e políticas do avanço da extrema-direita, única maneira de evitar que ela volte, mais forte a cada nova perturbação, até derrotar a democracia.


Para derrotar as causas sociais do avanço da extrema-direita é preciso ultrapassar a insensibilidade social que, por vezes, impede os partidos democráticos de atentar mais cuidadosamente na vida concreta das pessoas e dos territórios – e de lhes dar respostas substantivas. Em França, essa insensibilidade social apresentou-se, nos últimos anos, desde logo, no topo do Estado, com a atitude do Presidente Macron, tornando-se a marca dessa forma de centrismo equilibrista e com uma ideia de progresso excessivamente abstrata e desligada das realidades sociais.


Para derrotar as causas políticas do avanço da extrema-direita é preciso insuflar vida nas instituições democráticas, permitindo que a discussão real e concreta da vida quotidiana de todos os cidadãos e de todos os territórios se torne o centro da vida política – e criando espaços de verdadeira deliberação democrática, de tal modo que se torne visível que aquilo de que os políticos falam é mesmo acerca dos melhores caminhos para conseguirmos, todos, uma vida melhor. Uma democracia deliberativa é uma democracia que não se esgota na prevalência dos que têm mais votos: é uma democracia que se exerce escutando efetivamente os argumentos dos outros e integrando todos os contributos positivos num processo de ir continuando a tentar fazer melhor.


Para derrotar as causas políticas do avanço da extrema-direita é preciso que a esquerda não renuncie a ser alternativa: em vez de querer apenas rodar no poder com a direita, a esquerda deve trabalhar para oferecer soluções melhores, mais justas e mais sustentáveis, para a vida das pessoas e do país. Por isso, no caso da França, é importante que a Nova Frente Popular seja capaz de se manter unida a trabalhar por uma visão alternativa para a governação do país, com o programa comum que as diferentes forças de esquerda apresentaram em conjunto ao país, capaz de ultrapassar a insensibilidade social que o bloco centrista liderado por Macron tem protagonizado. E, ao mesmo tempo, para garantir que a derrota da extrema-direita não é momentânea, mas duradoura e profunda, é preciso que a esquerda vencedora, a Nova Frente Popular, seja capaz de trabalhar com as demais forças democráticas para criar o espaço social necessário para tratar das feridas e ir em frente: se foram capazes de se eleger mutuamente, apesar das diferenças, deverão ser capazes de recusar à extrema-direita a instabilidade e a crispação de que ela se alimenta.


Numa democracia representativa, onde o parlamento é o lugar central de deliberação, não faz sentido continuar com a ficção de que basta chegar à frente numa eleição para poder governar sozinho. Ninguém pode nunca governar sozinho, mesmo que tenha maioria absoluta no parlamento, porque, felizmente, a sociedade conta – e conta cada vez mais. Mais claro se torna que, ficando em primeiro lugar, mas com maioria relativa, é preciso trabalhar num horizonte mais amplo. E, claro, a esquerda só pode escolher trabalhar com os democratas, com os outros democratas. Com os democratas que não hesitam em defender a República face à ameaça da extrema-direita, porque só esses são democratas com que se pode contar. Numa palavra: em tempos difíceis, em democracias complexas, o sectarismo é suicídio. Em França como alhures. Quer isto dizer que a esquerda deve perder de vista a sua diferença, o seu contributo próprio? Não. Quer dizer que a esquerda relevante é a esquerda que, antes de mais, é a força democrática por excelência, a força determinante para que prevaleça a democracia contra o fechamento das sociedades e contra as tentações totalitárias.

 

(Para ler na publicação original, clicar aqui: https://accaosocialista.pt/#/1538/derrotar-a-extrema-direita-nao-apenas-por-agora-mas-duradouramente )



Porfírio Silva, 8 de julho de 2024
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