30.6.25

Entre a Democracia e a Oligarquia

14:35


No número mais recente da revista FINISTERRA (nº 96), fundada por Eduardo Lourenço, atualmente dirigida por Fernando Pereira Marques e publicada pela Fundação Res Publica, no âmbito de um dossier sobre os EUA nesta era Trump, tive oportunidade de publicar um artigo intitulado "Entre a Democracia e a Oligarquia". Para registo, deixo aqui o texto correspondente.

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ENTRE A DEMOCRACIA E A OLIGARQUIA




O PIB anual de países como a França ou o Reino Unido tem um valor inferior ao valor de mercado da Microsoft. Aliás, se a Microsoft fosse um país, estaria entre as quatro maiores economias do mundo, apenas atrás dos EUA, da China e do Japão. Pela mesma comparação, países como o Brasil ou a Itália estão atrás da Amazon, a Rússia ou a Coreia do Sul atrás da Google (Alphabet), a Espanha ou o México atrás do Facebook (Meta), a Irlanda ou a África do Sul atrás da Tesla e a Islândia ou o Chipre atrás da “pequena” X (ex-Twitter). Se compararmos, já não com o valor em bolsa das empresas, mas com as fortunas pessoais dos seus fundadores ou principais líderes, temos que o PIB anual de países como a Hungria ou Angola é inferior à fortuna pessoal de Bill Gates (Microsoft), que o PIB anual de Portugal é similar à fortuna pessoal de Jeff Bezos (Amazon) e que a Suécia ou a Bélgica estão na mesma ordem de grandeza da fortuna pessoal de Elon Musk (Tesla, SpaceX e X). [1]

De qualquer modo, os patrões das grandes tecnológicas não são – não são sempre – os mais ricos dos ricos nestas classificações. A questão mais relevante, aqui, não é a riqueza em si mesma, mas o poder numa determinada configuração. A jornalista francesa autora de “Mais Poderosos do que Estados”, obra recentemente traduzida para português, Christine Kerdellant, ao focar-se na questão do poder sistémico, escolhe seis figuras e respetivas empresas: Elon Musk (Tesla, SpaceX, X), Jeff Bezos (Amazon), Mark Zuckerberg (Meta/Facebook), Bill Gates (Microsoft), Sergey Brin e Larry Page (Google) [2] . A Apple não consta, porque não está numa situação de monopólio e, portanto, não teria esse poder sistémico. 

Logo no início do livro, os indicadores de “poder sistémico” (capacidades que estão nas mãos destas empresas e destes empresários e que os Estados não têm, ou nunca tiveram, e que permitem contornar, suplantar ou derrotar as escolhas dos países – sejam as escolhas democráticas dos países onde isso é possível ou as escolhas de “ditaduras esclarecidas”) são mencionados.

Escapam aos impostos, em prejuízo dos países onde operam.

Usam toda a sua influência para levar o enquadramento legislativo para longe das suas atividades: os fundadores da Google tiveram o projeto de instalar a empresa numa plataforma ao largo da costa americana para funcionar numa espécie de extraterritorialidade.

Dominam sectores onde a sua presença mina a soberania estatal tradicional, por exemplo na defesa e no espaço: Musk detém uma parte muito significativa dos satélites de comunicações que estão em órbita da Terra; os seus satélites Starlink, às centenas, e as estações com que operam, são essenciais à Ucrânia para conseguir comandar as suas forças e meios na guerra que se segue à invasão russa – e, em contrapartida, tem livre acesso a todos os dados dos cidadãos ucranianos.

Transformam instituições públicas em instrumentos dos seus projetos próprios. O fundador da Microsoft é o segundo maior doador da Organização Mundial de Saúde e sem o seu financiamento – e sem a capacidade de influenciar a forma como se gastam as suas doações – a luta contra a poliomielite e o paludismo em África não teria os sucessos que tem tido: mas vale a pena pensar se é normal que um financiador privado determine e imponha a uma organização como a OMS qual é a vacina mais urgente, em que país é que se vai aplicar, como se selecionam as crianças a vacinar, sem ter de deliberar com ninguém acerca dos seus planos e critérios, apenas porque é ele que financia e escolhe para onde vão as suas doações. Parece mais estar a usar a estrutura da OMS para os seus planos do que a financiar a OMS, mas só se poderia evitar essa situação se os Estados dessem à OMS os meios necessários para as suas missões. É essa mesma “liberdade do doador” que justifica que os fundadores da Google prefiram tentar “matar a velhice e a morte” (prolongar a vida ao absurdo) e não se interessarem por investir nos tratamentos contra o cancro.

Roubam a privacidade e vendem-na sem respeito. O patrão do Facebook e do Instagram detém dados pessoais sobre um terço dos habitantes do planeta (aproximadamente, o terço com mais poder de compra) e usa essa informação para moldar as massas, como mostrou o caso Cambridge Analytica como operação de manipulação eleitoral e de boicote aos mecanismos democráticos (como participar na tentativa de deslegitimar o resultado de uma eleição democrática).

Minam ferramentas essenciais de uma sociedade aberta. As “redes sociais” tratam de destruir a comunicação social tradicional, cujos critérios deontológicos lhe asseguravam um lugar essencial no ecossistema democrático – ao mesmo tempo que tratam com negligência os efeitos massivamente nocivos sobre a saúde mental de crianças e adolescentes.

E os Estados, voluntariamente ou tentando apaziguar o monstro, hesitam e dão sinais de contemporização: em 2017, a Dinamarca nomeou um “embaixador” junto dos gigantes do Silicon Valley…

Tomar o Estado por dentro e minar a sociedade são processos que vão par a par.

Os bilionários criticam muito o Estado, mas usam-no intensamente para fazer avançar os seus negócios. No domínio das tecnológicas, em particular, os negócios mais gigantescos assentam diretamente em inovações criadas com base em intenso investimento público em investigação científica. Não é por ignorarem isso que os bilionários criticam o Estado: criticam-no como parte da sua operação ideológica. A prova de que não ignoram a realidade é que continuam a procurar e a obter fundos públicos. Recentemente, o Washington Post tornou pública a saga de Elon Musk para, ao longo de vinte anos, por meio de mais de 400 contratos com a Administração federal, 90 subvenções federais e locais, 20 créditos fiscais ou reduções de impostos sobre a propriedade, e seis empréstimos, extrair dinheiro público a todos os níveis do Estado: “Elon Musk business empire is built on $38 billion on government funding. Government infusions at key moments helped Tesla and SpaceX flourish, boosting Musk’s wealth”  [3].

Os satélites em órbita baixa, onde Musk tem uma presença crescente – não pediu licença a ninguém, simplesmente lançou-os –, proporcionam um nível de controlo das comunicações e dos dados ao nível planetário que constitui uma ferramenta de domínio global, ameaçando a soberania mesmo de uma potência como os EUA. O que está em causa são sistemas que permitem fornecer internet rápida, mesmo em áreas remotas sem infraestrutura alternativa, com maior eficiência do que os satélites geoestacionários (posicionados a muito maior altitude), com latência muito mais favorável (estando mais baixo, mais perto, os dados demoram muito menos tempo a ir e voltar); que servem propósitos de vigilância e reconhecimento (desastres naturais, movimentações militares, atividades ilegais transfronteiriças, apoio à navegação) e respostas de emergência face a catástrofes onde as redes terrestres se tornaram inoperacionais; e que são tipicamente mais baratos, requerem menos energia e são mais fáceis de lançar e substituir.

Mesmo que as modalidades de recurso de Musk ao dinheiro dos contribuintes possam parecer, em certos casos, tortuosas, é sabido que a conjugação de esforços entre o público e o privado faz parte de uma estratégia vencedora para as economias – mas a hipocrisia ideológica, que parece inata nestes atores, essa não contribui em nada para o desenvolvimento das sociedades. Por outro lado, há, também, uma responsabilidade do Estado em não entregar aos privados vetores estratégicos de controlo que podem capturar o futuro. A NASA e o governo americano entregaram-se nas mãos da SpaceX e de Musk para atividades espaciais – mas a União Europeia também recorreu à SpaceX para lançar satélites do sistema Galileo, concorrente do americano GPS.

De qualquer modo, não se trata só de dinheiro. Há também a legislação. O Tratado sobre o Espaço Exterior, de 1967, celebrado no quadro da ONU, proíbe a apropriação territorial sobre corpos celestes. Mas, o legislador americano, através do Space Act (U.S. Commercial Space Launch Competitiveness Act), de 2015 (Administração Obama), abre uma via para contornar esse tratado, a proveito das empresas privadas, na medida em que as autoriza a explorarem e lucrarem com recursos obtidos no espaço, como minérios de asteroides ou água em corpos celestes. O argumento é que não se trata de apropriação territorial, mas de apropriação, pelas empresas, de recursos extraídos. É por esta porta que entram empresas como a SpaceX, a Blue Origin, a Planet Labs ou a Amazon, no lançamento de satélites e no desenvolvimento de tecnologias espaciais. O desafio ao resto do mundo é do tipo de conquista do faroeste: quem chegar primeiro…

Outro exemplo de como o legislador americano pode ajudar as gigantes tecnológicas a estenderem os seus braços à volta do planeta tem a ver com a economia da nuvem (cloud) e é o Cloud Act, de 2018. De sua designação completa Clarifying Lawful Overseas Use of Data Act, esta é uma lei segundo a qual todas as entidades ou pessoas que, em qualquer lugar do mundo, usem os serviços de empresas americanas de “cloud computing”, estarão obrigadas a dar acesso aos seus dados às autoridades dos EUA quando estas o exijam segundo os procedimentos legais americanos, mesmo que esses dados estejam localizados em servidores fora dos Estados Unidos (por exemplo, na Europa). Isto é, qualquer cliente da “nuvem” de uma empresa americana, usando serviços de armazenamento e processamento de dados à distância, aceita efetivamente a extraterritorialidade do direito americano, isto é, a aplicação do direito americano fora do seu território. O poder das tecnológicas vai a par com o poder político dos EUA, também neste caso. Num certo sentido, o Cloud Act facilitou a relação entre jurisdições nacionais diferentes quanto ao acesso a dados, mas o envolvimento de atores globais nesse campo, dominado pelos EUA, confere outra dimensão a essa cooperação que devia ser mutuamente benéfica para os diferentes Estados envolvidos [4].

Nada disto impede estes bilionários de continuarem a fazer discursos ideológicos contra o Estado. Clamar contra o Estado não é incompatível com a tentativa de usar esse mesmo Estado para fins particulares. Agora, como governante ao lado de Donald Trump, Elon Musk usa o seu poder no DOGE (Department of Government Efficiency) para perseguir agências e departamentos estatais que regularam ou investigaram as suas atividades. O Los Angeles Times denuncia esta situação e dá uma lista de exemplos de altos funcionários do serviço público que estão na mira desta equipa [5] . No mesmo sentido, a Public Citizen, um grupo de defesa dos consumidores, publicou recentemente um relatório sobre “como Trump está a suspender a aplicação da lei contra os infratores empresariais” [6] . A mistura entre o poder económico e o poder político está a ser promovida no topo do Estado, sendo que, nestas manobras, o poder político está a ignorar totalmente o bem comum e a tratar apenas dos interesses dos seus aliados.

Áreas sensíveis do funcionamento das sociedades podem ser perturbadas pelas atividades destes gigantes, afetando diretamente os direitos de muitos milhões de pessoas comuns. Jeff Bezos (Amazon) tem vindo a tentar penetrar massivamente no sector da saúde, no qual o acesso aos dados dos utilizadores os expõe a riscos elevados. Se as companhias de seguros tiverem acesso aos dados de saúde das pessoas (num sentido lato, permitindo traçar perfis a partir de dados sobre doenças crónicas, antecedentes familiares, consumos, hábitos, …) e puderem selecionar quem seguram e quem não seguram – ou puderem diferenciar os preços em função desse conhecimento muito aprofundado dos fatores de risco; se as empresas puderem comprar informação desse tipo acerca dos candidatos aos seus postos de trabalho; se as escolas dispuserem dessa informação quando procedem à seleção dos seus estudantes – a oportunidade de aumentar os lucros das empresas desses sectores económicos à custa de um tsunami de discriminação será um risco real.



Por trás da Grande Barreira de Fogo


A China também tem as suas big techs [7]: Baidu (buscas online, carros autónomos, IA), Alibaba (comércio eletrónico, pagamentos digitais, cloud) e as suas subsidiárias (Taobao, Tmall, Alipay, Alibaba Cloud), Tencent (redes sociais, jogos online, fintech), Xiaomi (smartphones, Internet das Coisas, eletrónica de consumo), … Só que, no Império do Meio, a política prevalece sobre a economia, o que, na prática daquele regime, implica que os multimilionários não podem ser mais poderosos do que o Estado (ou o Partido).

A dimensão da China faz com que seja compatível fechar a sua internet dentro das fronteiras nacionais sem perder a dimensão necessária para desenvolver as suas grandes empresas e sem deixar de ter acesso a dados em quantidade suficiente para competir com os gigantes ocidentais (por exemplo, para treinar os Large Language Models que estão no centro da IA Generativa). A China não deixa de ter interesse pelos mercados globais (a Alibaba entrou em Wall Street em 2014, acabando o primeiro dia de capitalização bolsista acima do Facebook e da Amazon), mas fechará as portas que tiver de fechar para preservar o que considera ser a sua segurança nacional. A “Grande Barreira de Fogo” (Great Firewall), a lembrar a Grande Muralha da China, é uma combinação de legislação, tecnologia e vigilância estatal, que monitoriza os fornecedores de acesso à internet e filtra a entrada e saída de dados, bloqueando conteúdos que o governo considera sensíveis, impede o acesso a sites estrangeiros de grande utilização no Ocidente,  impede buscas ou mensagens com termos como "Tiananmen", "Taiwan independente", ou "Falun Gong", vigia publicações e mensagens online, obriga as empresas a colaborar com esta “barreira” e promove as alternativas chinesas aos serviços mais populares em outras regiões do mundo [8].

O caso do criador da Alibaba serve como paradigma daquilo que a China pode fazer para travar os gigantes tecnológicos. Jack Ma veio de longe e de baixo e chegou ao topo. A Alibaba é, originalmente (para encurtar razões) uma espécie de Amazon chinesa, mas vai incorporar outras empresas e diversificar o negócio, designadamente: a Alipay (uma espécie de PayPal), a Taobao (tipo eBay) ou a Tmall (venda de produtos de luxo). A aplicação de pagamentos móveis Alipay terá um papel fulcral na evolução do projeto. A Alipay era usada por mais de mil milhões de chineses para pequenos pagamentos, compras a crédito e constituir poupanças. Os dados dos seus clientes eram vendidos para lhes serem propostos produtos financeiros, minando o mercado de depósitos da banca oficial, enquanto outra plataforma os usava para conceder massivamente créditos de consumo em montantes superiores ao rendimento mensal médio na maioria das províncias do país. 

Em outubro de 2020, no fórum financeiro de Xangai, num discurso escrito (portanto, que não foi um erro de improvisação), Jack Ma atacou o sistema financeiro chinês, completamente estatal, considerado pelo poder como um vetor da segurança nacional, descrevendo-o como ultrapassado, conservador, anacrónico, cujo excesso de controlo asfixiaria a própria economia. Dias depois, o grupo de Jack Ma, o Ant Group, deveria estrear-se simultaneamente na bolsa de Hong Kong e na de Xangai. O valor estimado para a capitalização inicial era de 37 mil milhões de dólares. Mas Xi Jinping mandou proibir a operação. 

Jack Ma foi chamado às autoridades financeiras e começou um processo de “retificação”: separação das atividades do grupo, combinação de controlo privado com controlo público das várias empresas, em formatos variáveis consoante o segmento, sujeição das atividades a licenciamento – e silenciamento pessoal (mediático) do empresário, acompanhado de reclusão não oficial e não legal (um método repressivo que Xi Jinping fez usar muitas vezes, tanto para adversários políticos como para empresários inconvenientes). 

Depois de dominado Jack Ma e o seu império, e de se ter aplicado o mesmo remédio a várias dezenas de outros empresários (incluindo a inclusão nos conselhos de administração de representantes das autoridades), e depois de Xi Jinping ter anunciado (em março de 2021) que, entre as suas prioridades, estavam (1) a necessidade de acabar com o abuso de posição dominante e das práticas anticoncorrenciais que prejudicavam os consumidores e as pequenas empresas e (2) controlar a exploração abusiva dos dados pessoais, o processo de controlo das grandes tecnológicas chinesas tornou-se sistemático. O controlo e utilização abusiva dos dados pessoais passou a ser assegurado pelo Estado, de acordo com os interesses do partido único, com uma vigilância brutal dos cidadãos com recurso a meios tecnológicos sofisticados [9] . Isto não significa que o governo chinês prescinda de criar um “ambiente de negócios” dinâmico [10] , mesmo por detrás de uma “Grande Barreira de Fogo”, tirando partido da dimensão humana da China, que viabiliza uma escala indispensável para vencer neste domínio.

Na via americana – poder político desviado para servir o poder económico – a democracia pode permanecer na forma, mas perde a sua substância. E, assim enfraquecida, fica mais permeável aos que possam querer dinamitar mesmo os seus procedimentos básicos, acabando por perder a forma e a substância (o Estado de direito depende muito da forma, apesar da cegueira dos que falam da “democracia meramente formal”).

Na via chinesa – rígido controlo autoritário da sociedade e esmagamento dos direitos dos cidadãos, reforçados com a utilização das novas tecnologias – o controlo político do poder económico fecha, do mesmo passo, qualquer caminho à democracia. É suposto o aumento do rendimento comprar e anular o desejo de liberdade.

No essencial, este problema não é novo, embora tenha novas roupagens e novos instrumentos – agudizando-se passo a passo. Os alertas não têm faltado, mas questionamo-nos se os nossos processos de decisão coletiva são capazes de lidar com estes desafios. Vejamos…

No seu discurso de despedida, no termo do seu mandato de Presidente dos EUA, pronunciado a 15 de janeiro de 2025, a partir da Sala Oval, Joe Biden deixou a seguinte mensagem: 

“Quero alertar o país para algumas coisas que me preocupam muito. Trata-se da perigosa concentração de poder nas mãos de um número muito reduzido de pessoas muito ricas e das consequências perigosas se o seu abuso de poder não for contrariado. Atualmente, está a tomar forma na América uma oligarquia de extrema riqueza, poder e influência que ameaça literalmente toda a nossa democracia, os nossos direitos e liberdades básicos e uma oportunidade justa para todos progredirem.”  [11]

Muitos, escutando-o, ter-se-ão recordado do discurso de despedida do Presidente Dwight Eisenhower, no mesmo local e circunstância similar, a 17 de janeiro de 1961. Nessa altura, quem esperava que o chefe militar e herói da Segunda Guerra Mundial pronunciasse um discurso de despedida nostálgico, ficou surpreendido com o alerta vigoroso que o Presidente de saída fez acerca do “complexo militar-industrial”, nestes termos:

“Esta combinação de um imenso estabelecimento militar e de uma grande indústria de armamento é nova na experiência americana. No entanto, não podemos deixar de compreender as suas graves implicações. Nos conselhos de governo, devemos precaver-nos contra a aquisição de influência injustificada, procurada ou não, pelo complexo militar-industrial. O potencial para a ascensão desastrosa de um poder mal colocado existe e persistirá.” [12]

Dois discursos de dois presidentes, enunciando riscos sistémicos para a democracia americana, pronunciados depois de terem exercido o poder durante anos… e mostrando que tais problemas não puderam por eles ser resolvidos, nem mesmo a partir do topo do poder executivo. O discurso de Eisenhower, lido na íntegra, equaciona a complexidade do problema, ciente do que explicava a evolução registada, mas sem deixar de assinalar os riscos. 

É nessa ciência da complexidade do problema que a Europa tem de colocar-se, procurando uma resposta própria, que não seja nem a via americana nem a via chinesa. Para isso temos de, face ao mundo em que vivemos, saber colocar-nos face às nossas forças e às nossas fraquezas em função dos nossos valores – se os queremos preservar.


A Europa tem de escolher um caminho


Lenine, o líder soviético original, dizia em 1920: “O comunismo é o Poder Soviético mais a eletrificação de todo o país” [13]. 

Vladimir Putin, em 2017, avisou: o país que liderar no domínio da IA governará o mundo [14].

Xi Jinping poderia, por seu lado, declarar: “O capitalismo de Estado é o Partido Comunista mais a inteligência artificial” – mas não costuma ser imprudente.

Em todo o caso, o que importa é que diferentes regiões do mundo estão a preparar-se para o impacto de mais uma possível vaga de mudança social proporcionada por inovações tecnológicas. A IA é mais uma das “tecnologias de uso geral” (tecnologias que transformam o conjunto da vida doméstica e a forma como trabalham as empresas) que têm marcado as ondas de mudança tecnológica desde o século XIX, sendo quatro as mais importantes:  a máquina a vapor, a eletricidade, as tecnologias da informação (TI) e a inteligência artificial (IA). De acordo com Indermit Gill , estudando as lições das anteriores vagas de “tecnologias de uso geral” e as tendências dos últimos anos, o receio dominante (de que a IA substituirá os trabalhadores por máquinas inteligentes) deveria dar lugar a outra preocupação mais realista: a de que a distribuição do rendimento se desequilibre, outra vez, ainda e cada vez mais em favor do capital e em detrimento do trabalho. Assim, o alerta é este: “Isto significa que os países que dispõem de mecanismos eficazes para resolver os problemas de distribuição têm uma vantagem sobre os que não dispõem.”

Este analista da The Brookings Institution avançava uma comparação entre as forças e as fraquezas dos grandes blocos quanto à tecnologia da IA: “A liderança tecnológica exigirá grandes investimentos digitais, uma rápida inovação dos processos empresariais e sistemas fiscais e de transferências eficientes. A China parece estar em vantagem no primeiro domínio, os EUA no segundo e a Europa Ocidental no terceiro. Um destes três fatores apenas não será suficiente, e mesmo dois dos três não serão suficientes; quem fizer melhor nos três dominará os restantes.” [15]  No mesmo texto, olhando, já não do lado das forças comparadas, mas das fraquezas relativas, identificava-as assim: a China tem de incentivar o empreendedorismo e reduzir as grandes disparidades em termos de educação e de riqueza; a Europa precisa de mobilizar grandes quantidades de dinheiro e atrair investimento em inovação; os EUA precisam de rapidamente restabelecer a concorrência nos sectores da tecnologia, das finanças, da saúde e da educação pública, para evitar a sobrecarga dos seus sistemas de redistribuição. (Aqui, a Europa está melhor do que os EUA e isso pode ser importante para enfrentar as consequências desta nova vaga de inovação.) 

Uma outra análise das abordagens à Inteligência Artificial que são características de diferentes atores na cena mundial [16] apontou o seguinte cenário: 

- EUA, a liderança pela inovação e o investimento: é expetável que os EUA continuem a liderar em termos tecnológicos, contando com as empresas mais influentes a nível mundial (incluindo a Google, a Microsoft e a OpenAI) para concretizar a inovação, atraindo talento de todos os cantos do planeta (embora seja preciso esperar para ver os efeitos dos ataques às instituições académicas e de investigação que a segunda Administração Trump tem lançado), com o governo a aumentar o investimento público, convicto da importância estratégica do sector, na linha de uma tradição onde a capacidade de segurança e defesa está interligada com o investimento em ciência;

- China, a superpotência em ascensão, visão estratégica e apoio governamental: a China anunciou a ambição de se tornar líder mundial em IA até 2030 e o governo definiu um roteiro para essa meta, incluindo investimentos maciços em investigação, educação e infraestruturas; as gigantes tecnológicas do país são a guarda avançada dessa estratégia e têm demonstrado capacidade para serem competitivas nos seus domínios, contando com a sua vasta população e um ambiente rico em dados como vantagem decisiva quando toca ao treino de modelos de IA; a China conseguirá o que estiver ao alcance da sua abordagem nitidamente centralizada e do empenhamento claro do poder político – e o que for compatível com o seu modelo político, como exemplifica o desenvolvimento da tecnologia de reconhecimento facial, muito apropriada para as suas políticas de vigilância e controlo social; 

- União Europeia, equilíbrio entre inovação e ética, o desafio da regulação: enquanto os EUA e a China se posicionam pela tecnologia, a UE adotou uma abordagem proactiva à regulamentação da IA, focada na transparência, na responsabilidade e nos direitos humanos, que já vinha do Regulamento Geral sobre a Proteção de Dados (RGPD) e que continua com a Lei da IA, de julho de 2024; alguns críticos, adeptos do “devemos fazer tudo o que conseguirmos fazer”, defendem que a regulação prejudicará a inovação, mas, de momento, mesmo que com hesitações, a UE é a única região do mundo que pretende apostar em liderar no estabelecimento de normas globais para a IA que não sacrifiquem a ética à rapidez do avanço tecnológico, na esperança de que, quando aumentar a consciência cidadã acerca do que está em causa, esta linha de preservação da ética pela regulação seja uma vantagem comparativa;

- Rússia, prioridade à defesa, a IA como ativo militar estratégico: focada na importância da IA na guerra moderna, a Rússia encara-a no contexto da sua estratégia militar; o investimento em I&D é percecionado como necessário para manter competitivas as suas capacidades militares, incluindo o desenvolvimento de sistemas de armas autónomos e de veículos não tripulados (como drones e tanques autónomos) e de ferramentas de ciberguerra baseadas em IA; a IA é entendida como uma possibilidade de remodelar a dinâmica do poder militar global, onde a Rússia acredita que tem caminho a recuperar.

Estas avaliações comparativas, assim a grosso ou refinadas, podem alimentar uma reflexão verdadeiramente orientada para o futuro. Mas qual futuro? Qual o futuro que queremos? Queremos o futuro americano? Queremos o futuro russo? Queremos o futuro chinês? Parece urgente um debate ao nível da União Europeia, desassombrado, que faça do projeto de prosperidade partilhada, o cerne do sonho europeu, a grande alavanca das nossas forças próprias, por uma região europeia que não desista do seu contributo civilizacional para este mundo em mutação. O modelo social europeu, revisitado para o ressuscitar dos escombros para que foi atirado pelo neoliberalismo dominante há demasiado tempo, pode ser um vetor da necessária construção de uma resposta propriamente europeia ao avanço dos inimigos da democracia, venham eles pelo lado da política ou pelo lado da economia.


A política, não o determinismo tecnológico

Em relação com as questões que temos vindo a refletir, autores de várias tendências, mas muitos deles empenhados na teorização do fim do capitalismo, falam agora de um “feudalismo” em novos moldes ou de um “tecnofeudalismo” [17] . 

Argumentam, em geral, considerando a posição privilegiada dos atores do sector tecnológico na economia global. Alguns consideram que a chave dos lucros desse sector está numa nova forma de extração de rendas (designadamente, as rendas da cloud), derivada do controlo monopolista das plataformas digitais, cujo produto já não é o tradicional “lucro” [18] . Outros vêm como uma nova classe dominante, entre os próprios capitalistas, não os que detêm a terra ou as fábricas, mas os que detêm os vetores através dos quais a informação é canalizada e utilizada [19]. 

Outros ainda, numa perspetiva mais cultural, falam de um poder neomedieval (dos senhores feudais digitais) sustentado, já não na força bruta, mas principalmente na persuasão e na dependência, quer económica quer emocional, onde os “servos” participam alegremente (feudalismo participativo e persuasivo). Viveríamos numa espécie de nova aldeia medieval, saturada de superstições, de uma vigilância social distribuída (vigilância mútua generalizada) e onde funcionam pelourinhos virtuais (onde a vergonha serve o controlo social e o respetivo castigo reputacional) [20] .

Stone e Kuttner falam de neofeudalismo ainda noutro sentido [21] . Quando a banca minou o sistema de regulação financeira que o New Deal criara para proteger os pequenos aforradores, os investidores, os credores hipotecários – e para proteger o interesse público; quando o sector financeiro criou terrenos de ação privados, escondidos da regulação pública, onde montantes massivos de transações estavam longe de quaisquer regras e onde cada pequeno agente só contava com o seu próprio conhecimento e a sua própria prudência para perceber a intrincada maquinaria de títulos derivados que tinha sido montada precisamente para que ele não percebesse o esquema; quando o legislador protegeu esse mundo de opacidade, substituindo a regulação pública por regulação privada a cargo dos próprios interessados, dita autorregulação, também no domínio das normas contabilísticas, também no domínio do registo de propriedade (onde foi montado um sistema paralelo sem qualquer base legal que resultou em inúmeros abusos contra envolvidos em hipotecas); quando a arbitragem obrigatória, em domínios como as relações laborais e os direitos do consumidor, serve para criar verdadeiros condomínios fechados de direito privado, onde se reduz a transparência processual e se limitam os direitos da parte mais fraca de cada relação, por exemplo tratando de impedir ações coletivas, cerceando o direito de recurso, impondo cláusulas de confidencialidade que impedem a partilha de provas – tudo isto, escrevem Stone e Kuttner, mostra a ascensão de novos “feudos” de direito privado, o que explica que falem de um neofeudalismo.

Embora estas reflexões contribuam, em muitos casos, para uma compreensão mais fina do que está realmente a mudar no terreno (talvez independentemente do valor das teorizações de alto nível que lhes estão associadas), corremos o risco, no caso dos muitos que insistem no “tecnofeudalismo”, de cairmos num determinismo tecnológico – na ideia, falsa, de que as tecnologias nos impõem determinadas formas de organização da sociedade.

Nem sempre vale a pena procurar explicações mais sofisticadas, para certos posicionamentos dos magnatas, para além do seu próprio interesse particular. Em 2014, o poderoso bilionário da tecnologia norte-americano Peter Thiel defendia que “o capitalismo e a concorrência são opostos”. Dario Amodei, CEO da Anthropic, defendeu, recentemente, mais sanções à China, maior controlo das exportações tecnológicas com esse destino, impedindo-os de obter semicondutores avançados – como caminho para “um mundo unipolar, onde só os Estados Unidos e os seus aliados tenham esses modelos”. Atenção: a referência ao “mundo unipolar” era uma expressão de preferência, era uma defesa desse tipo de mundo [22].

É claro que o susto do DeepSeek, o susto do sistema chinês que parecia fazer melhor do que os sistemas americanos de IA Generativa, com muito menos dispêndio de energia para o respetivo treino, fez soar muitos alarmes. Contudo, o que há a sublinhar é a necessidade democrática de não reduzir as considerações e as condicionantes políticas e sociais às condicionantes tecnológicas. Estamos em presença de uma batalha pela democracia, é tão cru e tão direto como isto. Robert Reich escrevia há pouco tempo [23]: “A maior divisão na América de hoje não é entre ‘direita’ e ‘esquerda’, ou entre Republicanos e Democratas. É entre a democracia e a oligarquia. Os velhos rótulos – ‘direita’ e ‘esquerda’ - impedem que a maioria das pessoas se aperceba de que estão a ser enganadas.” Não será preciso esquecer as diferenças entre direita e esquerda, até porque as direitas não são todas iguais, nem as esquerdas são todas iguais. Felizmente. Será preciso, contudo, ter noção das prioridades. Por alguma razão os socialistas democráticos seguimos a máxima: pode haver democracia sem socialismo, não pode é haver socialismo sem democracia. E isso marca as prioridades. Derrotar a oligarquia é prioritário. E a oligarquia, hoje, em lugares importantes do mundo, é, antes de mais, oligarquia dos donos das empresas tecnológicas.

A nova vaga de promessas da Inteligência Artificial – que, há décadas, geração após geração, promete o que não pode dar, sem prejuízo dos sucessos que tem obtido – apressa a necessidade de decisões políticas fundamentadas quanto ao papel destas tecnologias nas nossas sociedades.

Uma democracia não continuará a ser uma democracia se ficar dependente, ou puder ser facilmente manipulada, por meia dúzia de agentes económicos, tornando irrelevantes os mecanismos de deliberação livre próprios de uma sociedade onde o povo é soberano. E “o povo” não são indivíduos isolados, fechados em casa ou fechados em bolhas de concordância consigo mesmos em redes “sociais”, à distância de um ecrã. Só há povo para uma democracia se as pessoas se puderem juntar, conhecer os problemas, debater as soluções imaginadas e deliberar acerca do que fazer – e ter meios para concretizar, mesmo que imperfeitamente, o que se deliberou. No mesmo sentido, também não haverá democracia, nem liberdades, se o Estado se substituir aos oligarcas da tecnologia no comando de meios eletrónicos invasivos da privacidade e da autonomia dos indivíduos.

As escolhas de sociedade não são determinadas pelas tecnologias. Quando novas tecnologias viabilizam novos comportamentos ou formas de organização social, podemos não estar imediatamente preparados para avaliar os fatores em presença e deliberar quanto aos caminhos a seguir. Por exemplo, alguns aspetos da influência das redes “sociais” no comportamento de crianças e adolescentes, e no funcionamento das famílias, e até nas dinâmicas de agrupamentos sociais mais complexos, como as escolas, levam tempo a compreender, a estudar, a avaliar. Mas temos de construir saídas. Talvez transformar as escolas de ensino não superior em espaços livres de ecrãs, como resposta às inúmeras disfunções do convívio social que tais ecrãs potenciam, não seja uma decisão fácil: nunca poderá descurar os matizes de aplicação face a cada realidade concreta. Mas temos de agir. Não se trata de des-inventar as máquinas, mas de regular os espaços de sociabilidade em função dos valores centrais da nossa civilidade e não das máquinas que aterraram nos pátios das nossas escolas. Isso significa assumir as nossas responsabilidades, entre todos, sem ceder às ilusões do determinismo tecnológico. O que pode, e deve, ir a par com o combate pela democracia e contra a oligarquia tecnológica.


NOTAS

[1] Estes dados variam, mais rapidamente quando dizem respeito às empresas do que quando dizem respeito a países. Os dados sobre a economia dos países podem ser pesquisados, por exemplo, em https://datosmacro.expansion.com/ . Os dados sobre as empresas podem ser pesquisados, por exemplo, em https://finance.yahoo.com/ , em https://www.bloomberg.com/ ou em https://companiesmarketcap.com/ . Os dados sobre as grandes fortunas (que podem variar devido a variações de metodologia) podem ser consultados, por exemplo, em https://www.forbes.com/billionaires/ ou, para variações em tempo curto, em https://www.forbes.com/real-time-billionaires/ .


[2] Christine Kerdellant, Mais Poderosos do que Estados, Coimbra, Edições 70, 2025


[3] É necessária subscrição, mas pode ser lido aqui: https://www.washingtonpost.com/technology/interactive/2025/elon-musk-business-government-contracts-funding/ . Por cá, Bárbara Reis chamou a atenção para este trabalho, no Público:  https://www.publico.pt/2025/03/01/opiniao/opiniao/musk-estado-historia-bela-amizade-2124348


[4] Informação sobre o Cloud Act no sítio do Departamento de Justiça dos EUA: https://www.justice.gov/criminal/cloud-act-resources . Do lado europeu, pode consultar-se a informação sobre o Cloud Act no sítio do Eurojust: https://www.eurojust.europa.eu/publication/cloud-act 



[7] Para dados básicos sobre os gigantes tecnológicos chineses: https://www.registrationchina.com/articles/top-10-technology-companies-in-china/ . Para informação e análise, vale a pena ter em conta o sítio do projeto Mapping China’s Tech Giants, em https://chinatechmap.aspi.org.au/ 


[8] Para saber mais sobre o funcionamento desta “barreira”, cf. “Como contornar a Grande Firewall na China” em https://pt.proxyscrape.com/blog/how-to-bypass-the-great-firewall-in-china ou “ A Grande Muralha de Fogo da China controla a Internet, e os chineses pouco se importam” em https://revistaopera.operamundi.uol.com.br/2018/10/21/a-grande-muralha-de-fogo-da-china-controla-a-internet-e-os-chineses-pouco-se-importam/


[9] Cf. o capítulo 6 de Mais Poderosos do que Estados




[11] Pode ver e ouvir o vídeo do discurso de despedida do Presidente Biden, ou ler uma transcrição, nesta ligação: https://www.rev.com/transcripts/joe-biden-s-farewell-address 


[12] Uma transcrição do discurso de despedida do Presidente Eisenhower pode ser lida aqui: https://www.eisenhowerlibrary.gov/sites/default/files/research/online-documents/farewell-address/1961-01-17-press-release.pdf 


[13] Vladimir Ilitch Lénine, discurso ao VIII Congresso dos Sovietes de Toda a Rússia, realizado de 22 a 29 de dezembro de 1920, tradução constante das Obras Escolhidas de V.I. Lénine em 3 Tomos,
Editorial Avante, Tomo 3, pp. 409-432






[16] Cf. The AI Arms Race: Who Will Dominate the Future? (26/08/2024), consultável em  https://medium.com/@aitechdaily/the-ai-arms-race-who-will-dominate-the-future-8cf4a4d72ebf


[17] Para uma visão de conjunto de alguns destes autores, cf. Jeremy Gilbert, “Techno-feudalism or platform capitalism? Conceptualising the digital society”, in European Journal of Social Theory, 27/4 (2024), pp. 561-578


[18] Cf., por exemplo, Yanis Varoufakis, Technofeudalism: What killed capitalism, Brooklyn, Melville House, 2024


[19]  Cf., por exemplo, Mckenzie Wark, Capital is Dead, Londres, Verso, 2019


[20]  Cf. Jakob Linaa Jensen, The Medieval Internet: Power, Politics and Participation in the Digital Age, Bingley: UK, Emerald Group Publishing, 2020


[21] Katherine V.W. Stone e Robert Kuttner, "The Rise of Neo-Feudalism", in The American Prospect, 08/04/2020, https://prospect.org/economy/rise-of-neo-feudalism/




[23]  Robert Reich, “The American oligarchy is back, and it’s out of control”, em https://robertreich.substack.com/p/the-american-oligarchy-is-out-of



Porfírio Silva
in Finisterra, nº 96 (maio 2025), pp. 51-64



Porfírio Silva, 30 de junho de 2025
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28.6.25

Mini-podcast 3 - Ciência e Democracia

18:39


O dossier Ciência e Democracia, discutido neste número do mini-podcast, pode ser lido descarregando o número da revista aqui: Portugal Socialista.


Porfírio Silva, 28 de Junho de 2025
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19.6.25

Mini-podcast 2 - Mário Soares, a adesão europeia e os revisionistas

10:00


O artigo discutido neste número do mini-podcast encontra-se aqui: Mário Soares, a adesão europeia e os revisionistas .


Porfírio Silva, 19 de junho de 2025
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18.6.25

Mário Soares, a adesão europeia e os revisionistas



Para registo, fica o artigo que publiquei ontem (17-06-2025) no jornal Público (p.6). (A qualificação do autor está incorrecta: devia ser apenas "deputado do PS", como pedi. A "cara" também está desactualizada... Mas o texto é mesmo meu.)

***

Mário Soares, a adesão europeia e os revisionistas


A 12 de junho comemorámos 40 anos da assinatura do Tratado de Adesão de Portugal à (então) CEE. Mas nem tudo foi bonito nesse dia. Com estupefação, vimos afloramentos de uma tentativa para desvalorizar o papel decisivo de Mário Soares nesse passo.


Testemunhei ao vivo, na Conferência “No Centenário de Mário Soares - Orgulhosamente Acompanhados - 40 anos de Portugal na União Europeia”, o MNE, Paulo Rangel, tentar menorizar o papel de Mário Soares no processo de adesão, mostrando-se agastado com o relevo de Soares na memória histórica. Dizer que outros também eram europeístas – é verdade, mas não autoriza deslustrar o motor político dessa adesão.


Há, na nossa integração europeia, factos que todos conhecemos. Apenas entrado em plenitude de funções, o I Governo Constitucional avançou para a Europa e, em poucos meses, preparou e, com apoio do Parlamento, formalizou o pedido de adesão, apesar dos conselhos receosos dos economistas. Soares colheu o que semeou, ao assinar o Tratado de Adesão.


Contudo, compreender o papel singular de Mário Soares implicar saber algo mais.


Em 1976, o programa eleitoral do PS alongava-se sobre a centralidade da adesão de Portugal à CEE no rumo pretendido para o país. O PS tomava essa opção como um novo eixo estruturador do posicionamento de Portugal no mundo.


Por contraste, o programa do PPD, das 5 páginas sobre o posicionamento de Portugal no mundo, reservava menos de 20 palavras à adesão à CEE. A parte internacional do programa do PPD tinha 6 parágrafos, com 6 prioridades. A adesão à CEE não merecia nenhum dos seis parágrafos, não se destacava como uma das prioridades. A brevíssima referência à adesão à CEE aparecia, como questão subordinada, enxertada num subparágrafo.


Nesse ano de 1976, enquanto o programa do PS colocava a integração europeia como estruturante de uma visão de desenvolvimento e de consolidação da democracia, no programa do PPD a questão da adesão à CEE era diluída numa miscelânea de temáticas, encravada na questão das relações ibéricas e misturada com a revisão do Pacto Ibérico.


O percurso político anterior de Mário Soares explica como, chegado o momento de governar, fazia diferença a sua visão clara e a sua determinação europeísta. Durante os muitos anos de oposicionista à ditadura, as lideranças democráticas europeias tornaram-se interlocutores privilegiados de Mário Soares. Escrevendo na imprensa europeia, publicando fora de portas, discursando nos congressos e conferências dos socialistas (e dos federalistas), reunindo com governantes, unia o futuro democrático de Portugal à integração no concerto das democracias europeias. Como fez, também, discursando no Conselho da Europa, em 1970.


O primeiro programa doutrinário do PS, de 1973, ainda na clandestinidade, punha a Europa democrática como horizonte de um Portugal democratizado – embora criticando a falta de uma “Europa Social”, de uma Europa dos trabalhadores.


Logo a 3 de dezembro de 1974, o Le Monde destacava a afirmação de Mário Soares: “O nosso objetivo a longo prazo é a integração na CEE.”


O melhor do nosso europeísmo floresceu por contraste com o fechamento cinzento e pesado da ditadura de Salazar e Caetano – e amadureceu na necessidade de garantir a democracia representativa. Várias personalidades, antes e depois de Abril, de diferentes ideologias, juntaram a sua voz e a sua ação a uma visão europeísta do nosso futuro comum. Honra lhes seja feita por terem enfrentado os isolacionistas, quer os do triste “orgulhosamente sós”, quer os das visões redutoras e simplistas da soberania nacional. O governo que assinou a adesão não era monocolor.


Contudo, ninguém teve o desejo e o ensejo de ser tão decisivo e tão definidor nessa adesão à União Europeia como Mário Soares. A história diz-nos isso. É, pois, inaceitável a tentativa, pequena e sectária, de tentar menorizar, ou sequer relativizar, o papel de Mário Soares no processo de integração europeia.  





Porfírio Silva, 18 de Junho de 2025
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16.6.25

Portugueses vírgula

17:18



Está nas salas o mais recente filme de Vicente Alves do Ó, “Portugueses”. É um musical, e eu não costumo gostar de musicais. Mas fui ver e quero dizer-vos algo sobre o filme, a ver se vos convenço a ir ver, enquanto não “desaparece” … algo que acontece muito aos filmes portugueses.

“Portugueses” é uma sequência de cenas da história contemporânea de Portugal, nos aspetos relacionados com o facto de termos vivido sob uma ditadura e de nos termos livrado dela. E, também, relacionados com o facto de que nem todos viviam igualmente cómodos – nem todos igualmente esmagados – pela repressão. Havia quem vivesse quentinho à sombra da conjuntura. E havia quem pagasse as favas com língua de palmo. Havia, também, os desgraçados que lambiam as migalhas da miséria como quem estivesse à mesa do senhor. É dessa matéria que se alimenta o filme – e digo “sequência de cenas” por o filme não conter, exatamente, uma história que se lhe seja propriamente exclusiva. A história está contada e recontada mil vezes: é a história do 25 de Abril de 1974, das razões que o tornaram necessário, de algumas coisas que se fizeram no imediato depois.

Sendo um musical, facilmente chega a ser visto como uma sequência de cenas, com o seu quê de descosido. Como habitual nos musicais. Acontece isto e aquilo e, às tantas, uma personagem desata a cantar uma canção que conhecemos bem e que fala com clareza naquele momento e naquela situação. Aqui, esse carácter fragmentário dos musicais não me doeu tanto como costuma doer nos musicais em geral, porque, em vários desses momentos de colocar a música a contar a história, conseguiu-se não matar o ritmo, conseguiu-se que a canção fizesse parte do enredo, que a canção acrescentasse mais alguma coisa. Não se conseguiu sempre – e foi-se conseguindo menos com o avançar do filme. Podiam ter-se sacrificado alguns “quadros”, evitado quinze minutos finais perto do meramente decorativo (ou, vá lá, comemorativo), conseguido uma economia mais enxuta e manter o conjunto mais perto de uma narrativa. Não se conseguiu sempre, mas conseguiu-se vezes suficientes para o conjunto valer a pena.

O filme não tem a sua história própria por viver da história que temos na cabeça. A dificuldade está em que nem todos temos essa história na cabeça. Ou a história não é a mesma em todas as cabeças. Quando “Portugueses” renuncia a ter a sua própria história, entrega-se nas mãos das histórias que cada um de nós tem na sua cabeça. Não será assim mesmo que tudo se passa sempre quando oferecemos uma história a um público? A questão é saber qual é a obra mais verdadeiramente aberta: será a obra que aparenta ser mais aberta ou será a obra que se apresenta como mais fechada? Umberto Eco dir-vos-ia. 

De qualquer modo, e com todos estes “ses”, “Portugueses” tem, para mim, um valor incalculável, neste tempo que é meu e que é vosso. É que o filme “Portugueses” permite desesteticizar uma série de canções que traduziam realidades brutais da repressão da ditadura e que acabam, com a distância temporal, por se tornar objetos estéticos onde o que mais facilmente captamos é a beleza da sua expressão. Ouvimos cantar sobre Catarina Eufémia e aquilo é bonito: o poema e a música. Mas aquilo é sobre o assassinato estúpido e gratuito de uma mulher jovem, de uma trabalhadora rural. Um assassinato real. Ouvimos cantar sobre o soldadinho que volta dentro de uma caixa de pinho e, mais uma vez, é bonito o poema e a letra é bem servida pela música. Mas aquilo é sobre a realidade brutal de que se morria jovem, aos milhares, numa guerra imposta ao povo português em nome de um império que era uma ficção atroz. Quer dizer: canções que nasceram para lutar contra brutalidades absurdas que nos eram impostas tornaram-se, com o tempo, objetos estéticos cuja esteticidade ameaça esvaziar o seu sentido germinal. O filme “Portugueses”, para quem tenha caído nessa armadilha (inevitável?) da esteticização da canção de luta, lembra, quer dizer, mostra aspetos do que foi a referência direta dessas canções. Esta foi, para mim, a principal interrogação que o filme me deixou: como funcionam estas marés de esteticização e desesteticização dos objetos de luta. 

No princípio do filme, há uma linha prometedora que assoma, mas depois é abandonada. Em paralelo com as músicas, de intervenção, que são o fio condutor da obra, aparecem músicas de fundo, fragmentos, vindos de outros horizontes de sentido: uma cançoneta na rádio (é identificável, mas não me lembro qual seja) e, depois, uma canção de igreja. São música, mas estão fora do plano de sentido que nos é proposto pelas canções assumidas por personagens. Fiquei à espera dessa luta de canções, as de dentro e as de fora da leitura assumida pelo realizador, mas esse desenvolvimento não aconteceu. Sabe-se lá onde poderia levar…

A cena onde cabe a interpretação d’A Tourada é de antologia: tão disruptiva como poderia ser lida a estupidez de uma censura prévia que não percebia o que estava a deixar passar, a deixar cantar. No conjunto, vale a pena ir ver “Portugueses”.

Digo “Portugueses vírgula”, ou “Portugueses,” por o realizador explicar que é uma espécie de arranque de um discurso aos portugueses, solene, como quando o Presidente se dirige à nação em comunicação formal. Então, Vicente Alves do Ó diz “Portugueses,” e arranca para um discurso que nos faz. E que vale a pena ir ouvir.


Porfírio Silva, 16 de Junho de 2025
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