24.6.23

Guiné-Bissau, eleições e democracia


O semanário Expresso, na sua edição de ontem (23 de Junho de 2023), publicou um texto meu espoletado pela circunstância de ter participado na Missão de Observação Eleitoral da CPLP às Eleições Legislativas que tiveram lugar na Guiné-Bissau no passado dia 4. Para registo, deixo aqui esse texto.

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1. Tendo participado na Missão de Observação Eleitoral da CPLP às eleições legislativas da Guiné-Bissau 2023, enquanto membro da Assembleia Parlamentar da Comunidade, e tendo terminado o período de reserva imposto por essa condição, creio ser útil partilhar algumas reflexões sobre o processo.

2. O primeiro facto a destacar é que, culminando uma campanha eleitoral e um dia de votação com elevada participação popular e sem incidentes relevantes, todas as forças concorrentes reconhecem os resultados proclamados pelas autoridades eleitorais. Não há, pois, alegações de fraude, apesar de alguns problemas organizativos registados poderem afetar o exercício do direito de voto de alguns cidadãos, o que mostra um elevado grau de compromisso das forças concorrentes com umas eleições necessárias à ordenação pacífica da vida política e institucional.

3. É de sublinhar a capacidade demonstrada pelos agentes políticos que aceitaram salvar o processo eleitoral sanando a posteriori, pelo método do consenso, passos de duvidosa conformidade à Constituição e à lei que tinham sido dados na organização do processo eleitoral (designadamente na constituição de órgãos fulcrais para o processo eleitoral e na organização do recenseamento). Não podemos, de qualquer modo, ignorar entorses graves, a evitar de futuro, como as autoridades governamentais assumirem poderes organizativos que cabem legalmente às autoridades eleitorais ou o alegado envolvimento político na criação de entraves burocráticos à entrada de materiais de propaganda eleitoral de uma certa candidatura.


4. É um sinal positivo que de uma eleição possa sair vencedor um partido de oposição, como foi o caso. Contudo, observando os antecedentes, é evidente a necessidade de uma mais clara consciência da importância do Estado de direito, do respeito estrito pela Constituição e pela lei, pelos procedimentos e pela separação de poderes, até para poder evitar os enormes riscos de descarrilamento da normalidade democrática que de outro modo espreitariam. Como exemplo, basta referir que, à data das eleições legislativas de 4 de junho, a Assembleia Nacional Popular tinha sido dissolvida há mais de um ano e o país estava com um Governo “de iniciativa presidencial” sem qualquer controlo ou fiscalização parlamentar.

5. O povo da Guiné-Bissau vem demonstrando um enorme civismo e responsabilidade. Ouvi mais do que uma vez, em ocasiões eleitorais, pessoas humildes de diferentes lugares dizerem que “o povo sabe como votar, é preciso é que depois eles saibam o que fazer com o nosso voto”. O que esperamos é que o rigoroso respeito pela Constituição e pelas leis sirva de andaime a uma estabilidade democrática onde a vontade expressa pelo povo se concretize em políticas públicas ao serviço da melhoria das condições de vida das pessoas.



Porfírio Silva, 24 de Junho de 2024
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10.5.23

Podemos esperar alguma coisa das próximas eleições na Turquia?

18:00
No próximo dia 14 de maio a Turquia vai a eleições. Erdogan, primeiro-ministro entre 2003 e 2014 e presidente desde então, recandidata-se. Se voltar a vencer, consolidará aquilo que o Instituto V-Dem (para “Variedades de Democracia”) chama uma “autocracia eleitoral”: a Turquia tem eleições multipartidárias, que são relevantes apesar das condicionantes, mas faltam-lhe (ou estão muito enfraquecidos) traços fundamentais de uma verdadeira democracia (como a liberdade de expressão, a liberdade de associação, eleições livres e justas).
A verdade é que a democracia não é só o voto: é, também, um conjunto de direitos, liberdades e garantias e é, igualmente, um conjunto de instituições que organizam as regras da disputa pelo poder e de exercício dos diversos poderes. Ora, na Turquia, o sistema de Erdogan tirou o parlamento do centro da decisão política, com a Constituição modificada para permitir ao presidente governar facilmente por decreto; domesticou o poder judicial, por via de um sistema de nomeações politicamente controladas; amordaçou a comunicação social, com esquemas censórios, com intimidação de jornalistas, com controlo económico; alimenta perseguições à oposição política e aos ativistas que não convêm ao poder, muitas vezes recorrendo à acusação infundada e arbitrária de serem aliados dos terroristas (por exemplo, o presidente da câmara de Istambul está ameaçado de prisão e de perda de direitos políticos); controla o banco central, supostamente independente; usa a família do presidente como núcleo de uma rede de controlo dos poderes.
Além da investida estrutural contra as instituições democráticas, Erdogan não se coíbe de usar os meios do Estado para tentar garantir apoiantes praticamente à boca das urnas. Um exemplo será a mobilização do Anadolu, primeiro porta-aviões construído na Turquia, para um “cruzeiro eleitoral” pela costa na zona do Bósforo e de Istambul, procurando atrair o entusiasmo nacionalista para apoiar o presidente. Outro exemplo, mais clássico, foi o anúncio, poucos dias antes das eleições, de um aumento de todos os funcionários públicos turcos em 45% (quarenta e cinco por centro!) da sua retribuição. 
Então, neste quadro, pergunta-se: valerá a pena depositar alguma esperança nas próximas eleições gerais turcas? O académico Berk Esen, da Universidade de Sabanci, diz que as eleições no seu país são como um jogo de futebol em que uma equipa tem 11 jogadores, a outra tem 8 e o árbitro está do lado da equipa maior – mas a equipa mais pequena, mesmo contra o árbitro, pode ganhar se tiver melhores jogadores e melhor estratégia. Quer dizer: as condições da disputa eleitoral não são justas, nem garantem a igualdade dos competidores, mas existe uma possibilidade real de mudar as coisas nas eleições. Importa sublinhar que o povo turco parece concordar com esta avaliação: nas mais recentes eleições, sejam locais ou gerais, a participação tem sido superior a 80%.
A alternativa viável a Erdogan é a coligação Aliança Nacional, composta por seis partidos, cujo candidato presidencial é Kemal Kilicdaroglu. Não se deve esperar que, no caso de vitória da Aliança Nacional e de Kemal Kilicdaroglu, ocorra rapidamente qualquer mudança fundamental na relação da Turquia com a UE, designadamente em termos geostratégicos, porque a teia traçada por Erdogan não será facilmente reestruturada. É certo que Kemal Kilicdaroglu declarou, em texto publicado no The Economist, que a vitória da sua coligação permitiria restabelecer a orientação da Turquia para o Ocidente. Não creio, no entanto, que isso signifique uma postura radicalmente nova no tabuleiro da guerra e da paz, mas significará que a Turquia se tornará mais democrática e mais aberta – o que, sim, de facto, seria positivo para os democratas e para a Europa. Portugal é mais pequeno e, no entanto, a abertura democrática de 25 de Abril de 1974 teve efeitos positivos no avanço das democracias contra os autoritarismos. É essa possibilidade, num país muito populoso (cerca de 85 milhões de habitantes) e decisivo para o xadrez global do mundo, que justifica que alguns considerem que as eleições gerais na Turquia no próximo dia 14 serão as eleições mais importantes em todo o mundo no corrente ano de 2023.
 
 Porfírio Silva, 10 de maio de 2023
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16.2.23

Como perder uma eleição?

11:24


Li o livro de Luís Paixão Martins, "Como perder uma eleição ". Gostei de ler: tenho uma certa tendência para gostar de livros que me recordam de coisas que pertencem à história que vivi e que, no entanto, se foram apagando nas brumas do tempo.
 
O livro de LPM começa com a pretensão de ser obra de um prático, mas, na verdade, é um livro de teoria da comunicação na política - com casos práticos. Ainda bem. Mas há um episódio em que eu teria apreciado muito que LPM fizesse mais teoria (uma teoria adequada deve, no mínimo, explicar os dados empíricos, embora deva fazer mais: fazer predições acertadas), em vez de se ficar por uma breve descrição.
 
É o episódio de o conselheiro ter levado o líder do PS a verbalizar a hipótese de uma maioria incompleta ser completada com os deputados do PAN. O que eu gostaria de ver teorizado seriam as respostas a perguntas como estas: como é que alguém, que quer evitar qualquer tipo de discussão propriamente dita numa campanha, pode aconselhar o PS sem conhecer a relação complexa que a base eleitoral do PS tem com as propostas do PAN? Como é que se pode levar o líder do PS, que conhece tão bem o seu partido, a fazer um movimento contra tudo aquilo que sabe tão bem?
 
É um livro interessante, porque resume uma cultura política. Provavelmente, a cultura política dominante nos nossos dias. Mas, convenhamos, algo que não é uma inevitabilidade. Apenas uma escolha condicionada. Valeria a pena pensar sobre as razões pelas quais esta cultura política é hoje dominante; e pensar porque é que ela é apresentada como uma inevitabilidade. E pensar se o trabalho dos políticos é "seguir o povo" ou, antes, "abrir outras possibilidades" à cidadania.
 
Porfírio Silva, 16 de Fevereiro de 2023
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16.1.23

Obrigado, escola pública

12:25
 
Alunos
Para registo, deixo aqui o artigo publicado ontem no Público.

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Para os profissionais dos serviços públicos, especialmente os intensos em contacto humano, os últimos anos têm sido muito duros, também por causa da pandemia. Com a agravante de que as sequelas das crises anteriores, financeiras, não tinham sarado completamente. É o caso dos profissionais da educação. Essa é uma realidade em muitos outros países. Ainda recentemente, o Le Monde trazia em manchete o “mal-estar docente” e lembrava que há vários anos que desce e é insuficiente para as necessidades a adesão aos concursos para a carreira docente.

 

Conformamo-nos? Não! Por isso há sete anos mudámos de ciclo político, também na educação. Em vez de dispensar dezenas de milhares de professores, de desinvestir da sua formação, de apressadas reformas curriculares retrógradas e sem diálogo, de tentar fazer da escola mais um crivo de seleção e discriminação social; em vez de desinvestir no público para gastar no privado, virámos o rumo para uma escola mais inclusiva e com mais meios para atender à diversidade de interesses dos alunos (das artes às profissões até à educação de adultos), com mais professores, mais professores vinculados e menos precários, mais assistentes, mais técnicos especializados, começando a devolver a escola à escola e à comunidade, com mais autonomia e mais flexibilidade que abre novos horizontes de desenvolvimento da profissionalidade docente e melhor resposta ao contexto, descongelando a carreira docente, investindo na formação relevante, …

 

Está tudo feito? Não está. Para continuamos, o ministro da Educação escolheu rever o regime de recrutamento docente, para começar a acabar com a “casa às costas” dos professores. O objetivo é combater a instabilidade e a precariedade. Definir com rigor as necessidades permanentes, escola a escola, para permitir acelerar as vinculações estáveis a quadros de escola. Diminuir a extensão das zonas pedagógicas, para diminuir as distâncias potenciais casa-escola. Sem entregar nenhuma competência nesta matéria às autoridades municipais ou intermunicipais, e sem perda de vínculos adquiridos.

 

Está em curso um processo de revalorização da Administração Pública que, de facto, se tornou necessária para corrigir longos anos de perda no mercado global do emprego público e privado, perda acentuada pelas respostas austeritárias às crises financeiras internacionais. Naturalmente, os professores olham para esse processo não querendo ser mais nem menos do que os outros servidores públicos. É justo. Mas não podemos perder esta oportunidade: o ministro da Educação é um praticante coerente do diálogo com a classe, com as suas associações e sindicatos. Não podemos perder a oportunidade de fazer, agora, um acordo para uma boa revisão do regime de recrutamento. Até para podermos abrir caminho para outros acordos noutras matérias.

 

Todas as profissões mais qualificadas se desvalorizaram relativamente, devido à forte expansão das qualificações. Há situações onde os servidores públicos são expostos a situações inaceitáveis de desrespeito pelas suas pessoas e funções, por parte deste ou aquele utente. Uma coisa é certa: ninguém mais do que este Ministério da Educação é aliado empenhado dos profissionais da educação em sua defesa e valorização. Faltar ao respeito aos professores é tentar a sua infantilização, supor que pedem vénias, quando o que querem é soluções compatíveis para a sua carreira e para a escola pública. Faltar ao respeito aos professores é dizer-lhes, contra toda a evidência que eles conhecem, que nada se fez nos últimos sete anos pela escola pública e pela valorização dos seus profissionais.

 
Porfírio Silva, 16 de Janeiro de 2023
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24.11.22

Fez bem o Parlamento Europeu em ter declarado a Rússia como um Estado patrocinador do terrorismo?

12:40
 
 
1. Condenámos a invasão da Ucrânia pela Rússia desde o primeiro momento. Sem desculpas, sem tergiversações, sem evasivas. Sem "mas..". Sabendo que "o Ocidente" andou décadas a descurar a realidade básica de que só há verdadeira segurança quando ela é segurança partilhada, segurança nossa e dos outros. Sabendo que Mikhail Gorbatchov, o último presidente da União Soviética, foi ludibriado quando deu o seu acordo à reunificação alemã no pressuposto, ou debaixo da sugestão americana, de que a NATO não avançaria em direcção às suas fronteiras - tendo acontecido tudo o contrário. Mas não aceitamos nada disso como justificação para a iniciativa guerreira da Rússia e do ditador Putin. E também não aceitamos que da guerra possa resultar qualquer prémio para o invasor: a paz não pode ter o preço de uma recompensa a quem espoletou a guerra.

É nesta óptica que analisamos a resolução do Parlamento Europeu (PE), aprovada ontem (23/11/2022), que aponta para a qualificação da Rússia como um Estado promotor do terrorismo.

 

2. Para começar pelo princípio: o próprio conceito de “Estado patrocinador do terrorismo” é juridicamente indeterminado ou incerto, variando a situação entre os EUA e a Europa. Nos Estados Unidos, existe um instrumento legal específico associado a uma lista de países que aquele país considera que providenciam, de forma reiterada, apoio para actos de terrorismo internacional. Estão nessa lista, apenas, Cuba, Irão, Coreia do Norte e Síria. Na União Europeia não existe nenhuma figura jurídica similar, nem uma tal lista de países. É a própria resolução aprovada pelo PE que reconhece claramente essa inexistência, pedindo que se desenvolva o quadro jurídico para enquadrar a figura (o que é estranho, que se estabeleça uma qualificação antes de definir o que ela quer dizer). Aliás, mesmo o conceito de “Estado terrorista” é um conceito juridicamente impreciso.

Na verdade, a resolução do PE faz uma misturada, metendo no mesmo saco, por um lado, conceitos precisos na ordem jurídica internacional (como o conceito de crimes de guerra), servidos por instituições de justiça penal internacional às quais cabe perseguir e punir os criminosos, com, por outro lado, conceitos que podem ter a aparência de serem conceitos jurídicos, mas não o são: como o conceito de Estado patrocinador do terrorismo. Tem havido alegações de crimes de guerra no contexto da guerra da Ucrânia, cometidos pela Rússia, mas também cometidos pela Ucrânia. A diferença de atitude relativamente a essas alegações é relevante, na medida em que a Rússia não as leva a sério, enquanto a Ucrânia tem prometido investigar – e esperamos que o faça. De qualquer modo, o conceito de crime de guerra é juridicamente determinado e permite o recurso adequado à justiça penal internacional para perseguir e punir os criminosos. Misturar conceitos juridicamente operantes com conceitos que, sendo aparentemente jurídicos, são puramente proclamatórios, só pode prejudicar a forma como o mundo entende a efectividade do direito internacional – e isso é politicamente condenável, porque esse valor é sacrificado no altar do oportunismo político.


3. Não será por acaso que o Presidente Biden recusou, explicitamente, que os EUA dêem o passo de qualificar a Rússia como Estado patrocinador do terrorismo. As explicações do governo americano (segundo notícia da Voice of America, de 6/9/2022) indicam que essa qualificação da Rússia como Estado patrocinador do terrorismo, pelas suas consequências legais, criaria uma situação que, na prática, prejudicaria a assistência humanitária em certas áreas da Ucrânia, bloquearia acções necessárias para mitigar a crise alimentar e poria em risco o uso de infraestruturas portuárias no Mar Negro para escoar cereais necessários ao mundo, designadamente a África, e prejudicaria a capacidade dos EUA quer para darem assistência à Ucrânia à mesa de negociações que venham a ter lugar, quer para responsabilizar a Rússia pelas suas acções. Talvez alguns, tão vocalmente pró-americanos, pudessem reflectir neste exemplo e nesta explicação.  

 

4. Tomadas de posição com as quais alinhou agora o PE tiveram lugar, nos últimos meses, na Estónia, na Letónia, na Lituânia e na Polónia, e há uma decisão no mesmo sentido da Câmara Baixa do Parlamento checo. É compreensível o capital de queixa acumulado por países que sofreram com ditaduras comunistas apoiadas pela União Soviética. Ninguém, na esquerda democrática, esquece a repressão que o comando de Moscovo impunha para lá da Cortina de Ferro, sob o instrumento do Pacto de Varsóvia, numa versão vermelha de imperialismo. Ninguém esquece a invasão da Hungria pela URSS, para evitar uma revolução democrática liderada pelos próprios comunistas reformadores que estava à frente do partido. Ninguém esquece que a Primavera de Praga foi esmagada pelos tanques soviéticos contra os próprios comunistas checoslovacos, que entendiam que o país não se podia desenvolver sem libertar a criatividade dos seus cidadãos e que isso só seria possível com liberdade. Ninguém esquece a luta do Solidariedade na Polónia – e não podemos esquecer as causas pelas quais nos mobilizámos a seu tempo.

Só que, agora que esses países estão na União Europeia, não podem querer impor-nos uma lógica de vingança histórica que é contrária a todo o rumo da construção europeia. Tal como a Alemanha e a França entraram no projecto da CEE (Comunidade Económica Europeia, antecessora da EU) deitando para trás das costas a dura realidade de terem saído de uma guerra violentíssima que confrontou esses dois países centrais no continente. A lógica da construção europeia é a lógica de conseguir mais com a cooperação do que com a confrontação, trabalhando para que o futuro seja melhor que o passado, sem fazer do passado um muro contra o futuro. Não é, pois, aceitável, que haja quem pretenda alinhar o Parlamento Europeu com uma lógica de vingança histórica, que está claramente expressa na resolução aprovada pelos eurodeputados a 23/11/2022, quando quer ligar a condenação da Rússia dos dias de hoje à exigência de uma “exaustiva avaliação histórica e legal (…) dos crimes do regime soviético”, considerando que está em causa uma “repetição de crimes similares”.

 

5. A resolução agora aprovada pelo Parlamento Europeu insere-se na estratégia dos que pretendem inviabilizar possíveis caminhos diplomáticos para encontrar uma solução negociada para a guerra. A resolução pede que se tomem acções para iniciar o isolamento internacional alargado da Rússia (não se trata de manter o actual nível de isolamento), incluindo no que concerne à pertença da Federação Russa a organizações internacionais e a órgãos como o Conselho de Segurança das Nações Unidas, e que se reduzam ainda mais os contactos diplomáticos para os mínimos, bem como os contactos com representantes oficiais russos. Esta declaração política pede um nível radical de incomunicabilidade entre países adversários, uma abordagem perigosa. Felizmente, todas as potências mantêm contactos entre si, mesmo nas situações mais adversas, embora o façam por canais discretos ou mesmo secretos. Só que, para um democrata, parece preferível que os contactos secretos não substituam completamente, mesmo em guerra, as relações diplomáticas e a respectiva responsabilidade política.    

No caso da UE, os efeitos legais da resolução são nulos ou irrelevantes – tirando a criação de uma nebulosa jurídica em torno de um conceito que quer ser jurídico sem o ser. Já no caso dos EUA, essa declaração poderia ter efeitos sobre uma eventual saída negociada para a guerra, na medida em que proibiria a aceitação de elementos de um acordo que dessem à Rússia acesso a mecanismos da economia internacional que estão bloqueados pelas sanções actualmente em vigor.

 

6. Ainda, a resolução ora aprovada pelo Parlamento Europeu, a ter efeitos práticos, acentua o risco de estimulação de comportamentos xenófobos dirigidos contra a diáspora russa presente nos nossos países, na medida em que preconiza que sejam banidas e encerradas organizações e associações de russos. É claro que a explicação é que só se visam aquelas associações e organizações que sejam apoiadas pela Rússia e propaguem as posições russas. Contudo, é uma linha de acção que permite alimentar um clima social de discriminação das comunidades russas integradas em cada um dos nossos países – e isso é inaceitável. Ao mesmo tempo – e isto, infelizmente, não é novo neste contexto – deixa em aberto que, sob a acusação de propaganda russa, se possa interferir ilegitimamente com a liberdade de expressão. Não é aceitável que o PE entre, de forma tão descuidada, por terrenos tão pantanosos.

 

7. Além do mais, não podemos, desde um ponto de vista da esquerda democrática, admitir que seja a extrema-direita a querer apropriar-se do património de luta pela liberdade nos países que se libertaram de ditaduras comunistas. Nesse sentido, não é por acaso que a resolução aprovada pelo PE teve origem num grupo de extrema-direita, os Conservadores e Reformistas Europeus, onde, nomeadamente, pontifica o partido que lidera o permanente desrespeito pelo Estado de direito na Polónia. 

A nossa posição sobre a guerra da Ucrânia, claríssima desde o primeiro momento, não nos permite aceitar que o sofrimento do povo ucraniano sirva para manobras políticas. Há sectores da direita europeia, e não apenas da extrema-direita, que estão apostados em aproveitar a situação da Ucrânia para ganhar preponderância na União Europeia e para desviar a construção europeia dos seus valores fundadores e fundamentais. Não é por amizade ao povo ucraniano que alguns sectores querem uma adesão relâmpago do país à União Europeia: é para ganhar uma vantagem partidária decisiva no seio das instituições europeias. Não é por amizade ao povo ucraniano que alguns sectores da direita europeia, e não apenas da extrema-direita, tentam usar o sofrimento do povo ucraniano como alavanca para desviar a construção europeia dos seus valores fundacionais.

Há muitas palavras certas na resolução do PE. O que é lamentável é que o apoio à Ucrânia invadida seja misturada com uma manobra política que aposta no revanchismo histórico, no aprofundamento da divisão internacional e no enfraquecimento dos mecanismos diplomáticos, no uso político de conceitos jurídicos (em prejuízo da efectividade da justiça penal internacional) e na tentativa de inviabilizar uma saída para a guerra que seja melhor do que o mero esmagamento de uma das partes. Por tudo isto, esta resolução do PE é um erro político grave.

 
Porfírio Silva, 24 de Novembro de 2022
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