É, portanto, à imagem destes sonhos alienados que a narração pode proceder com o tempo; é à sua semelhança que ela pode tratá-lo. Mas se ela o pode então “tratar”, é óbvio que o tempo, como elemento da narração, também se pode converter em seu objecto. E se soa exagerado afirmar que se pode “narrar o tempo”, não parecerá, contudo, uma perfeita loucura, como se nos afigurava de início, querer narrar acerca do tempo, de modo que o epíteto de “romance do tempo” se pode revestir de um duplo sentido, singular e mágico. Na realidade, levantámos a questão acerca da narração do tempo com o único propósito de confessar que era isso precisamente que tínhamos em mente com a história que aqui apresentamos (…) Este é um aspecto que faz parte do (…) romance [de Hans Castorp], que é um romance sobre o tempo, independentemente do ponto que vista que adoptemos.
Thomas Mann, A Montanha Mágica
(*) As citações que anteriormente fizemos desta obra, bem como as demais que se seguirão, são retiradas da tradução feita para a edição do Círculo de Leitores, Lisboa, 1981 (tradução brasileira de Herbert Caro, revista para português de Portugal por Maria Manuela Couto e Maria Helena Morbey). Essa edição, esgotada há muito tempo, tem agora uma sucessora, na D. Quixote, 2009, com tradução directamente do alemão a cargo de Gilda Lopes Encarnação. A presente citação é retirada desta tradução mais recente, aparecendo nas páginas 612-613; o texto correspondente na outra edição aparece à página 476.