17.3.25

Trump e a paz

21:40


Não acredito numa palavra de Trump, não acredito que queira a paz, nem que lhe interesse minimamente o respeito pelo direito internacional. Quando Trump afirmou, em campanha, que conseguia a paz entre a Ucrânia e a Rússia em 24 horas, estava, claro, a mentir – o que não se estranha.

 

No entanto, temos de admitir que Trump demonstrou que era possível agir para empurrar a Ucrânia e a Rússia para uma negociação. Trump é uma marioneta de Putin - compreende-se, eles são, superficialmente parecidos em termos de desrespeito pela democracia. Por isso mesmo, Trump não vai procurar uma paz justa, vai procurar beneficiar – mais precisamente, lucrar – com todo o processo. Até por isso, seria melhor que outros tivessem tomado a iniciativa de levar a Ucrânia e a Rússia para a mesa das negociações.

 

Então, porque é que Biden não tomou essa iniciativa? Porque é que a União Europeia não tomou essa iniciativa? Teria sido preferível que essa necessidade – provocar negociações para a paz – tivesse sido preenchida por gente mais fiável do que Trump. É incompreensível que tenham ficado à espera de Trump para que esse passo fosse dado.

 

Tudo isto tem, na base, um problema: o chamado "Ocidente", com a derrocada da União Soviética, passou a desprezar as preocupações de segurança da Rússia. A arrogância "ocidental”, convencida de que podia "entalar" a Rússia, encostá-la à parede, aproveitando esse momento de aperto, foi uma atitude míope. O "Ocidente", literalmente, enganou Gorbatchev, aproveitando a fraqueza do seu país nesse momento, e tirou tudo o que podia da situação, numa mesquinhez de vistas curtas, desprezando as garantias que sugeriu ao homem da perestroika.

 

Qualquer estadista que tivesse feito a escola primária das relações internacionais sabia que isso não podia durar no longo prazo. A Rússia, por muitas fraquezas que tenha, é uma potência com um pé na Europa e a Europa só pode ser segura para todos se todos sentirem que têm garantias de segurança. Cercar sistematicamente a Rússia, encostar-lhe armas às suas fronteiras, é irresponsável.

 

A Rússia é uma ditadura horrível. Mas nunca foi com isso que o "Ocidente" governamental se preocupou. O "Ocidente" foi oportunista, foi irresponsável, distraiu-se do ponto básico: só há segurança para nós se houver segurança para todos. A Rússia desprezou o direito internacional ao invadir a Ucrânia e o "Ocidente" esteve certo em colocar-se do lado do invadido. Certo. Mas não chega. Era preciso ter começado a preparar uma saída razoável para todas as partes. Era preciso ter levado a sério o futuro, não apenas a crise presente.

 

A guerra é um limite existencial. A guerra é a suprema irracionalidade. A guerra é o motor por excelência do sofrimento humano. É insuportável ouvir falar de "vamos dar a vida por isto e por aquilo" - sendo que só dizem isso aqueles que nunca irão à guerra ficar estropiados e morrer. Ter esperado que chegasse Trump para começar a pensar como acabar com a guerra, foi simplesmente uma irresponsabilidade e uma desumanidade. Não alinho nos falsos pacifismos ingénuos, não é desarmados e à mercê das armas dos outros que podemos contribuir para a paz; se não tivermos força nada podemos determinar de positivo no avanço para a paz. Precisamos, na Europa, dos nossos próprios meios para nos autodeterminarmos - mas temos de usar da nossa força para construir uma segurança comum, porque não existe segurança só para um dos lados.

Parece que quase todos os dirigentes políticos da Europa esperaram pela chegada de Trump para compreender isso. Desgraçadamente.


(A ilustração acima foi gerada por Inteligência Artificial, a pedido.)

Porfírio Silva, 17 de Março de 2025
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15.3.25

Por uma radical defesa das instituições


Deixo aqui, para registo, o editorial que publiquei ontem (14/03/2025) no Acção Socialista.

***

Há algumas semanas, aquele que chefia o partido de extrema-direita no nosso país, acossado por mais um dos escândalos de grosso calibre que têm minado uma larga fatia do seu grupo parlamentar, recorreu à sua manobra habitual: partir para o insulto para tentar desviar a atenção. Um dirigente do seu partido estava acusado da prática de sexo com menor a troco de dinheiro e o presidente da agremiação, em vez de começar pela sua casa política a “limpar Portugal”, decidiu insultar, repetidamente, dois antigos deputados, antigos ministros, antigos dirigentes socialistas: Paulo Pedroso e Eduardo Ferro Rodrigues, este último ex-Secretário-Geral do PS e recente (2015-2021) Presidente da Assembleia da República. Os insultos foram proferidos nas instalações da Assembleia da República e foram distribuídos entre o próprio hemiciclo, no plenário, e os Passos Perdidos. 

O atual Presidente da Assembleia da República (PAR), José Pedro Aguiar-Branco, não se deu por achado. O que estava em causa não era apenas uma expressão política mais forte, nem uma mera deselegância. Era insulto. Era pura difamação. Não era uma opinião política, era mais uma mentira, uma calúnia soez. 

Na primeira oportunidade em plenário, o Grupo Parlamentar do PS, pela voz do seu vice-presidente Deputado Pedro Delgado Alves, não apenas denunciou a situação, que qualificou como “mentira” e “difamação de servidores públicos toda a vida, de lutadores pela democracia, construtores da democracia", como solicitou que houvesse explicitamente um “reparo”, um “repúdio” do ataque, em defesa do antigo Presidente do Parlamento. 

Apesar dos desenvolvimentos que estão em discussão no que toca ao Código de Conduta dos Deputados, Aguiar-Branco, que não estava a presidir aos trabalhos no momento em que a questão foi suscitada pelo PS, nunca deu qualquer sinal de entender que não podia acomodar-se ao insulto e à difamação de um antigo Presidente do Parlamento. 

Perante o ruidoso silêncio de Aguiar-Branco sobre esta matéria, Eduardo Ferro Rodrigues enviou, a 24 de fevereiro passado – soubemos agora – uma carta à segunda figura do Estado. Aí se pode ler: 

“Doze dias passaram sobre estas calúnias, muitas das quais proferidas no Parlamento de que Vossa Excelência é Presidente, algumas delas em Plenário e lembradas na Conferência de Líderes que Vossa Excelência dirige. 

Foram muito graves institucionalmente as ofensas difamatórias e cobardes proferidas contra mim. 

Fui com muito orgulho e honra Presidente do Parlamento, eleito e reeleito em 2015 e 2019. Nunca ficaria em silêncio perante qualquer insinuação ou calúnia feitas nessa AR contra qualquer dos Presidentes que me antecederam – Barbosa de Melo, Almeida Santos, Mota Amaral, Jaime Gama ou Assunção Esteves. Nunca permitiria que os caluniassem ou ofendessem, em nome de qualquer "liberdade de expressão". 

Estou seriamente ofendido e indignado. Sinto-me atingido na minha honra pelas palavras de quem me caluniou e também pelo silêncio do Presidente da Assembleia da República. 

Espero que atempadamente ainda se pronuncie sobre tudo isto, também em defesa do prestígio da Instituição que tem a responsabilidade de representar.” 

Embora tenha lido referências noticiosas, não vi na sua integralidade a resposta de Aguiar-Branco a Ferro Rodrigues, razão pela qual não a vou comentar. O que sei, porque isso todos podemos constatar, é que o atual PAR, Aguiar-Branco, não deu nenhum sinal público de entender que este caso devia mobilizar o seu dever de defesa do Parlamento. Não deu nenhum sinal público de entender a gravidade da calúnia contra um antigo PAR. Parece que tudo continua a caber na liberdade de expressão dos deputados. 

Como ontem disse no Parlamento a deputada do PS Isabel Moreira (ver notícia nesta edição), ao vivermos tempos em que, “em nome de uma falsa liberdade de expressão, se permite um palco de calúnia e difamação”, enquanto se apelidam de “fake news” notícias que incomodam, temos aí sinal de estarmos num “momento de degradação do regime”. 

Um sinal claro dessa “degradação do regime” é a incapacidade das pessoas que exercem funções da mais alta responsabilidade assumirem o cuidado que lhes é devido pela integridade das instituições. Trata-se da incapacidade para entender a qualidade especial das instituições humanas. Qualquer cidadão com 18 anos pode ser eleito deputado e qualquer deputado pode ser eleito presidente do parlamento, não é preciso pertencer a nenhuma casta de iluminados para exercer essa função; ser presidente do parlamento tão-pouco transforma essa pessoa num ser humano diferente dos outros, não se lhe pede que transcenda a natureza humana, nem que seja um super-herói. Mas a pessoa colocada nessa posição tem de assumir a especificidade da sua função. Exercer o seu papel. Especificamente, a segunda figura do Estado não pode colocar as outras dimensões da sua vida em prejuízo da sua responsabilidade institucional. Tem o dever de ver e ler as situações do ponto de vista da Constituição e da lei, que é o que conforma, neste caso, o seu lugar institucional, e não de qualquer ponto de vista particular. 

José Pedro Aguiar-Branco, mais recentemente, colocou outra pedra nesta degradação, ao proferir, numa reunião partidária, teoricamente à porta fechada e na prática audível para todos os jornalistas circunstantes, a consideração, noticiada e não desmentida, de que o Secretário-Geral do PS fez “pior à democracia em seis dias do que André Ventura em seis anos”. Pedro Nuno Santos respondeu com grande sentido de Estado e grande elevação, recusando que tal episódio prejudique as relações institucionais entre ambos, verbalizando até alguma compreensão pelo estado de espírito em que tão desastrado pronunciamento fora proferido. Louvo Pedro Nuno Santos pela elevação, mas isso não nos impede de afirmar, claramente, que um Presidente da Assembleia da República não deixa de o ser por se encontrar numa reunião partidária ou em qualquer outra reunião – e, portanto, não é admissível qualquer intervalo no decoro que deve praticar na sua relação com os deputados. Já não bastava o descuido em condenar que deputados insultem outros deputados, acresce um pronunciamento político desequilibrado, desajustado, injusto, acerca do líder do maior partido da oposição. 

Gritar pela liberdade não chega para ser democrata. Não é possível ser democrata sem defender as instituições próprias da democracia. É por isso que, se conquistámos a liberdade a 25 de Abril de 1974, só conquistámos a democracia, como regime, com a Constituição e com as instituições conformadas de acordo com a vontade popular expressa e com as regras legítima e legalmente consagradas. Gritar pela liberdade e manter-se passivo perante os ataques às instituições, ou, mesmo, minar por dentro o próprio funcionamento das instituições, não é um comportamento democrático. Vivemos tempos difíceis, também, porque chegaram às mais altas responsabilidades concidadãos que não têm a clareza destes pontos a guiar a sua ação. 

A defesa radical das instituições democráticas – radical, quer dizer, plena e sem tergiversação, sem cedência aos interesses partidários de curto prazo – é tarefa de primeiro plano na defesa da própria democracia. Que não nos cansemos de o defender e de o praticar. 

 

(Ligação para a publicação original: Por uma radical defesa das instituições.)

(A ilustração foi gerada por uma ferramenta de IA.)


Porfírio Silva, 15 de Março de 2025
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12.3.25

Como Montenegro derrubou o seu Governo (filme da crise).


Creio ser de interesse replicar aqui este texto, que fui buscar ao Acção Socialista, para não perdermos a memória de uma crise política evitável e detestável no momento vivido pelo país e pelo mundo. 

***

15 de fevereiro

A imprensa noticia a existência de uma empresa da família de Luís Montenegro que trata da compra e venda de imóveis: a Spinumviva. Sendo o primeiro-ministro casado em comunhão de adquiridos com uma sócia, a empresa continuaria na prática a ser sua e é lançada a suspeita sobre o conflito de interesses resultante da alteração em curso da lei dos solos (causa de demissão recente de um governante). O caso nasce por investigação da comunicação social, sem interferência de qualquer partido da oposição.

 

21 de fevereiro

Debate da moção de censura do censurável CH. Luís Montenegro defende-se das suspeitas que ligavam a empresa à questão da lei dos solos, excedendo-se em informações inúteis que favoreciam essa falsa pista e tentando evitar futuros esclarecimentos: “A partir de hoje, só respondo a quem for tão transparente como eu.” O PS ajuda a chumbar a moção de censura.

 

27 de fevereiro

Um semanário noticia que o primeiro-ministro recebe uma avença mensal de 4.500 euros de uma empresa que tem interesses que dependem de decisão governamental. Luís Montenegro, que tinha já revelado que pediria escusa quando interesses dessa empresa estivessem em jogo, confessa apreensão e anuncia um Conselho de Ministros extraordinário para o dia seguinte. A Spinumviva revela uma lista (parcial?) dos seus clientes.

 

1 de março

Luís Montenegro faz uma declaração ao país, sem direito a perguntas dos jornalistas, onde recusa qualquer conflito de interesses; anuncia decisões de uma empresa que pretendia não ser sua: passará a ser detida apenas pelos filhos e deixará de ter sede na sua residência. Anuncia que não dará mais esclarecimentos. Apresenta a hipótese de vir a apresentar uma moção de confiança. O PCP anuncia uma moção de censura e o PS, pela voz de Pedro Nuno Santos, informa o país de que não contribuirá para a sua viabilização e, volta a avisar com antecipação, votará contra uma moção de confiança. Posteriormente, o Ministro Miranda Sarmento declarará que duas moções de censura rejeitadas dispensam a moção de confiança…

 

3 de março

Tendo Luís Montenegro afirmado indisponibilidade para mais esclarecimentos, o PS não se conforma a essa recusa: anuncia uma Comissão Parlamentar de Inquérito. Sendo potestativa, o PS pode configurar a CPI em termos civilizados (por exemplo, fez logo saber que não chamaria os familiares do primeiro-ministro).

 

5 de março

A moção de censura do PCP é debatida e, com a abstenção do PS, reprovada no Parlamento. O primeiro-ministro aproveita para voltar ao tema da moção de confiança, defendendo que eleições antecipadas são “um mal necessário”. O PS reafirma-se como principal garante da estabilidade nesta legislatura: evitámos a rejeição do programa de governo, viabilizámos o Orçamento, fizemos reprovar duas moções de censura. E lembra que há, hoje, mais razões para repetir o que dissemos desde a noite eleitoral: o PS não aprovará moções de confiança. 

 

6 de março

O Governo aprova a moção de confiança, que inclui uma linguagem fortemente agressiva para o PS, acusando-nos de “uma férrea vontade de aprofundar um clima artificial de desgaste e de suspeição ininterrupta”, de “atitude destrutiva”, de uma série de dúvidas “sem razão, nem sentido” – tornando difícil entender como se pode pedir ao PS que aprove uma verdadeira “moção de censura ao PS”.

 

7 de março

O Ministro Castro Almeida diz que o Governo pode retirar a moção de confiança se o PS desistir da CPI: destapa a intenção de conseguir do PS que desistisse de esclarecer a situação. O Ministro Leitão Amaro trata de voltar a dissimular a estratégia do Governo, desdizendo o seu colega.

 

10 de março

Na véspera do debate da moção de confiança, Luís Montenegro recusa retirá-la e declara que se recandidatará mesmo que seja constituído arguido, excecionando-se dos seus critérios anteriores. Algumas respostas de Luís Montenegro chegam ao Parlamento e confirmam: em todo o processo, nunca foi sua a iniciativa de dar esclarecimentos; respondeu apenas quando pressionado, sempre de forma parcial e incompleta. O PS avança com o requerimento para a constituição da CPI. A Comissão Política Nacional do PS expressa a união do Partido em torno do rumo traçado: não desejamos uma crise política, fomos os principais contribuintes para a estabilidade nesta legislatura, mas não é da natureza do PS temer eleições.

 

11 de março

No debate da moção de confiança, tendo anteriormente rejeitado o apelo reiterado do PS para a retirar, o PSD sugere conversas à porta fechada com o PS para resolver a crise (como se se esclarecesse o país à porta fechada). Depois, o Governo, que não tem legalmente qualquer poder para influenciar uma CPI, tenta negociar em direto um arremedo de mini-CPI e impor condições regimentalmente impossíveis (começou por propor uma CPI de 15 dias!) e, assim, procura que seja o inquirido a condicionar a inquirição. Evidenciam que a moção de confiança foi um estratagema para tentar condicionar o inquérito parlamentar. O Governo nunca responde à pergunta: “se querem mesmo evitar a crise, porque não retiram a moção de confiança, algo que está inteiramente ao alcance do Governo?”.


Luís Montenegro, que tem descurado as suas responsabilidades internacionais num momento de grande incerteza, lança Portugal numa crise extemporânea ao priorizar a sua circunstância pessoal. Parece querer evitar que se saiba qual a extensão e gravidade de uma situação em que, aparentemente, um primeiro-ministro em funções recebe, numa empresa do seu âmbito familiar, meses atrás de meses, pagamentos de empresas privadas com interesses que se cruzam com as suas responsabilidades governativas. O primeiro-ministro não entende que essa sombra tem de ser dissipada para poder continuar no cargo.


Na noite do derrube do Governo, o Financial Times dá a notícia com este título: “Portugal enfrenta novas eleições após a queda do governo devido a um escândalo de ética”.  A isto chegámos. O padrão anteriormente estabelecido era o de um primeiro-ministro que se demitia pela simples razão de ser citado num comunicado da PGR como sendo suspeito de algo que nunca chegou a ser consubstanciado.


Seguem-se, certamente, novas eleições legislativas antecipadas. Onde o PS tem a tarefa de fazer prevalecer a ética republicana e, ao mesmo tempo, contribuir para relançar um Portugal de futuro, mais focado em procurar, de forma sustentável, melhorar a vida dos nossos concidadãos.

  



(Ligação para a publicação original: Como Montenegro derrubou o seu Governo.)

(A ilustração acima foi gerada por Inteligência Artificial, a meu pedido.)

Porfírio Silva, 12 de Março de 2025
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11.3.25

Confiar no Soberano

21:37

Deixo aqui, para registo, o editorial que assino hoje, na qualidade de diretor, no Acção Socialista, no dia em que o Governo de Luís Montenegro foi derrubado por reprovação de moção de confiança na Assembleia da República.

***

Este Governo chega hoje à consequência lógica do modo como começou esta legislatura. É isso que resulta do debate da moção de confiança que Luís Montenegro apresentou para escapar ao escrutínio, ameaçando levar o país para mais uma crise política, num contexto nacional e internacional de enorme incerteza, sobrepondo a tática pessoal ao interesse do país.


A técnica da encenação que a AD escolheu como política para esta legislatura ficou bem exposta pelo primeiro-ministro logo no início do debate. Luís Montenegro avança com uma mistificação, dizendo que na Alemanha os socialistas (SPD) se juntam à direita (CDU) para barrar a extrema-direita e que em Portugal vão confluir com ela. A verdade é que na Alemanha prepara-se uma coligação, com a CDU e o SPD parceiros e com responsabilidades partilhadas na governação: negociaram o programa de governo, vão assumir responsabilidades em conjunto, vão prescindir de alguns pontos do seu ideário para convergir numa plataforma possível. E, sim, desse modo impedem o acesso da extrema-direita ao governo.


Não é nada disso que temos em Portugal. Por cá, este PSD nunca procurou qualquer entendimento sério com o PS. Por cá, este PSD raramente foi capaz, sequer, de um respeito democrático básico pelo PS. Luís Montenegro procurou apenas navegar no nevoeiro da incerteza que a extrema-direita introduz no sistema. Luís Montenegro levou o PSD a aproveitar para, depois, desprezar, tudo o que o PS lhe deu, à conta do respeito dos socialistas pelas instituições democráticas: deixar passar o programa de governo, viabilizar o Orçamento, reprovar duas moções de censura – e retribuíram com a sistemática procura de menorizar o PS.


A própria moção de confiança, que Luís Montenegro apresentou apenas como cortina para a sua falta de esclarecimento, é textualmente um ataque ao PS e à oposição em geral. E, mesmo assim, não se envergonha de exigir ao PS que vote a favor do que o Governo escreve contra o PS.


Chegamos aqui com a mesma atitude que o primeiro-ministro teve durante toda a legislatura. Luís Montenegro começou sem atender ao escasso apoio de que dispõe no Parlamento, começou substituindo o diálogo necessário pela arrogância, começou tentando enganar o país dizendo serem suas medidas tomadas pelo anterior governo, começou desmentindo pela prática as promessas eleitorais de que problemas importantes e complexos se resolveriam rápida e facilmente. E acabou pondo a defesa da sua circunstância pessoal acima do país, acima da estabilidade política, acima do seu próprio partido – tudo varrido pela submissão à circunstância pessoal.


O governo de Luís Montenegro chegou ao dia de hoje como começou: repetem, no debate da moção de confiança, que o país cresce mais do que a média europeia – mas esquecem-se de dizer que foi esse o legado que o PS lhes deixou; repetem que subiu o rating da República, graças ao bom desempenho das finanças públicas – mas esquecem-se de dizer que foi esse o legado que receberam dos socialistas; tentam interromper o debate da moção de confiança para substituir um debate parlamentar público por uma conversa privada à porta fechada. O país não merece isto. Os portugueses não merecem isto.


O PS não quis e não quer a crise política. Só que não é da natureza do PS temer eleições. Nunca o PS trocará os valores e os princípios por uma conveniência de calendário eleitoral. O PS nunca teme eleições, porque é o soberano que, em última instância, tem de decidir. E, hoje como sempre, o PS confia na palavra do soberano.



(Publicação original aqui: Confiar no Soberano.)


Porfírio Silva, 11 de Março de 2025
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10.3.25

A crise anunciada e os presidenciáveis

14:37


Esta crise política anunciada, que se deve inteiramente ao facto de Luís Montenegro querer usar as eleições como seu guarda-chuva privativo contra as consequências das suas trapalhadas, já serviu para nos mostrar alguma coisa sobre o leque de putativos candidatos presidenciais.


Todos os candidatos à Presidência da República de que se vai falando mostraram, na atual conjuntura, falta de visão – e falta de compreensão da Constituição. Ou, em alternativa, uma confrangedora falta de coragem.


Não tinham que se enredar em apelos melodramáticos ao entendimento entre partidos, apelos verdadeiramente vazios de conteúdo.


Só tinham de dizer uma coisa: se o governo cair por causa do comportamento do primeiro-ministro, o que um Presidente da República devia fazer era solicitar ao PSD, líder da candidatura que chegou à frente nas eleições, que indicasse outro nome para primeiro-ministro capaz de apresentar um governo a este Parlamento. Esse novo candidato a primeiro-ministro é que teria de tratar de passar no Parlamento.


Fugindo a dizer isto, todos os putativos candidatos a Presidente da República mostram que já foram anestesiados pela desastrada magistratura de Marcelo Rebelo de Sousa, que implementou um desvio continuado ao sistema constante da Constituição da República Portuguesa, tratando de “resolver” tudo com sucessivas dissoluções parlamentares e sucessivas eleições antecipadas. Uma conceção presidencial que desvaloriza o papel do parlamento, que trata de transformar a presidência num acelerador de todas as dificuldades do regime (já por falar demais, já por interferir demais, já por aproveitar cada nova situação para diminuir a sua própria margem de atuação) em vez de se manter como embraiagem capaz de regular o equilíbrio das forças – tornou-se, afinal, a fronteira que os candidatos a futuros presidentes não têm determinação para corrigir. À qual se acomodam. E assim se rebaixam à apagada e vil tristeza de um regime em rampa deslizante. 


Note-se que nada disto que aqui escrevo tem a ver com os interesses do meu partido, que até poderia não apreciar essa posição - ou sim. Que poderia achar-se prejudicado - ou não. Nada disto é uma leitura partidária: a um Presidente da República não cabe defender este ou aquele partido, por muito legítima que seja a sua posição; a um Presidente da República cabe defender as instituições. É nesse plano que Marcelo falha, é nesse plano que os putativos candidatos a suceder-lhe falham também.

Porfírio Silva, 10 de Março de 2025
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8.3.25

E o país, senhor primeiro-ministro?



Deixo aqui, para registo, o meu editorial de ontem (07/03/2025) no Acção Socialista, que assino na responsabilidade de diretor dessa publicação. 


***

O PS é o partido do socialismo democrático por uma razão fundamental e decisiva: entendemos que pode haver democracia sem socialismo, mas não pode haver socialismo sem democracia. Primeiro, antes das nossas propostas, está a democracia. No mesmo sentido, sempre foi para nós muito claro que primeiro está o país. Portanto, em lugar de querer fazer valer sempre os nossos pontos de vista, queremos, antes de mais, preservar as instituições democráticas.

O comportamento do PS, mais uma vez desde as últimas eleições legislativas, sob a liderança de Pedro Nuno Santos, deu provas vastas dessa orientação fundamental. Foi o PS, mais do que qualquer outra força política – mais do que a AD, apesar de esta ocupar o Governo – que deu a estabilidade possível à legislatura: não votámos a rejeição do programa de governo, fizemos eleger o Presidente da Assembleia da República, permitimos a aprovação do Orçamento, inviabilizámos as moções de censura que pretendiam derrubar o governo. Não fizemos isso por apreciar as políticas do governo – que não apreciamos –, nem por desculpar a sua incompetência arrogante – que não desculpamos –: fizemo-lo para não bloquear o funcionamento das instituições democráticas. 

Já o atual primeiro-ministro, Luís Montenegro, tem prioridades completamente diferentes. A Europa e o mundo enfrentam desafios terríveis; a possibilidade de uma guerra não é descartável; mesmo que não cheguemos lá, vamos sofrer as consequências económicas e sociais da degradação das relações internacionais e de uma nova corrida aos armamentos – e Luís Montenegro parece distraído de tudo isso e focado apenas em resolver o seu próprio caso. Até as suas responsabilidades internacionais parecem não estar a ser completamente acauteladas, levando Portugal de uma voz escutada com atenção e respeito na União Europeia, num passado recente, para uma voz irrelevante na atual conjuntura. Parece que ele, a sua pessoa, o seu cargo, vem antes de tudo, até antes do seu próprio partido.

As instituições da República, o PSD como um dos partidos que ajudaram a estabelecer o regime democrático, os eleitores que confiaram nele, podiam ser preservados se Luís Montenegro se tivesse prontificado a dar esclarecimentos cabais, desde o princípio e sem truques, acerca da situação que o país, atónito, descobriu ser a sua, pelo menos, desde que chefia o Governo. O regime democrático não pode ser exposto à prova de tentar passar uma esponja eleitoral sobre as suspeitas que, legitimamente, o país tem acerca da conduta de Luís Montenegro.

Há muitas maneiras de evitar uma crise política sem fugir ao apuramento da verdade. Basta, para isso, que o atual chefe de governo dê prioridade ao país, à governação, às instituições – e deixe de pensar, em primeiro lugar, na sua própria pessoa. E esclareça. Esclareça cabalmente. Esclareça transparentemente. E renuncie a sobrepor a sua pessoa a todos os interesses da governação, a todos os interesses das instituições democráticas, a todos os interesses da República. Luís Montenegro pode optar por continuar a agir mais em proteção de si próprio do que em defesa da República, mas é justo perguntar-lhe: e o país, senhor primeiro-ministro?

(Publicado originalmente aqui: E o país, senhor primeiro-ministro?)

Porfírio Silva, 8 de Março de 2025
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1.3.25

Acordai !


Deixo aqui, para registo, o meu editorial de ontem (28/02/2025) no Acção Socialista, que assino na responsabilidade de diretor dessa publicação. 

 

***


A Declaração de Princípios do PS afirma-nos como um partido cosmopolita. Não é linear fixar concretamente o sentido exato desse cosmopolitismo, até porque não creio que ele se confunda com uma adesão acrítica à globalização, que teve benefícios, mas também perdedores.

Acredito que esse cosmopolitismo aponta para a nossa identificação com um universalismo onde cabem todos os seres humanos, na sua diversidade, titulares dos mesmos direitos fundamentais. Se do marxismo-leninismo nasceu uma espécie de “internacionalismo” onde todos os aderentes à causa, em qualquer parte do mundo, deviam servir os interesses do “socialismo num só país” (a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas), o socialismo democrático está vinculado a um outro internacionalismo, onde sofremos pelas dores de todos, vibramos com as lutas de todos, nos regozijamos com todas as vitórias da emancipação e da vida boa, em qualquer canto do mundo – e reconhecemos com reciprocidade os direitos fundamentais de todos os seres humanos. Essa identificação como partido cosmopolita traduz o nosso interesse permanente pelo estado do mundo.

Esse cosmopolitismo, que aqui enuncio na coloração (mais tradicional) de internacionalismo, deve manter-nos alerta na hora grave que vivemos no mundo. Com todas as suas imperfeições (incluindo as falhas na concretização de uma prosperidade partilhada), a Europa (e, especificamente, a União Europeia) é um dos espaços onde os ideais da liberdade protegida nas instituições democráticas tem resistido mais aos ataques dos seus inimigos, os autocratas e os inimigos da universalidade dos direitos humanos fundamentais. Esse nosso espaço de liberdade está a ser ameaçado. Ameaçado pela corrosão interna de democracias com quem estamos envolvidos no plano da ordem internacional, reforçando o inimigo interno das nossas democracias. E, agora, ameaçado pelo adensar das ameaças de uso da força para configurar uma cena internacional mais favorável aos autocratas. Nenhuma democracia europeia estará a salvo se não forem decisivamente derrotadas quaisquer tentativas para expandir a mancha dos Estados vassalos neste canto do mundo.

A guerra é o limite existencial. A guerra é a negação de tudo o que é genuinamente humano. (Além do mais, para a esquerda, a guerra sempre foi ocasião de divisões dolorosas.) Contudo, a guerra não se evita com o falso pacifismo dos que se dispõem a trocar a liberdade pela vida, aceitando a servidão como escapatória. Ser genuinamente pacifista é trabalhar para que seja contraproducente, para qualquer potência, iniciar uma guerra. Esse pacifismo genuíno deve ser prosseguido com negociações, claro, porque é com os adversários e inimigos que é mais difícil, mas também mais necessário, negociar para evitar a desgraça mútua. Mas deve, também, esse pacifismo genuíno ser prosseguido com a determinação de nos opormos aos que usam a força das armas como alavanca dos seus interesses. Essa capacidade para nos opormos à servidão requer meios, capazes de travar os que só entendem a linguagem das armas. Nós, os europeus, esperámos tempo demais para tomar nas nossas próprias mãos a responsabilidade de proteger a nossa liberdade dos seus inimigos. De todos os seus inimigos, onde quer que eles estejam. Não estamos perante um jogo. Estamos perante uma encruzilhada existencial: temos o direito de esperar que a política democrática não se distraia da gravidade da hora atual. Nem escamoteie o debate público dos desafios do momento presente.


(Publicação original: Acordai!)



Porfírio Silva, 1 de Março de 2025
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22.2.25

A Ucrânia, Putin, Trump e os servos




O regresso a um imperialismo americano bárbaro, com Trump e Putin, vem acompanhado de um odor nauseabundo à mentalidade dos servos: alguns dos servos falando como se fossem de esquerda.



Embora já se esperasse que a segunda vitória presidencial de Donald Trump nos EUA traria uma fragilização da posição da Ucrânia na guerra com a Rússia, creio que ninguém esperava exatamente o que se está a passar. Trump e Musk, ao mesmo tempo que tratam de destruir as instituições dos EUA - um processo que vem sendo preparado ao longo dos anos, designadamente minando o aparelho judicial, um alerta para aqueles que pensam que estão protegidos contra a emergência de ditaduras -, lançaram-se desenfreadamente em campanha aberta a favor de tudo o que seja extrema-direita, especialmente na Europa Ocidental; ameaçaram o uso da força contra várias nações independentes, incluindo países europeus; adotam, crescentemente, a narrativa de Putin acerca da invasão russa da Urânia e, cereja no topo do bolo, Trump e Musk querem colonizar a Ucrânia - isto é, querem apoderar-se das suas riquezas naturais, como pagamento do apoio que os EUA deram no passado ao esforço de guerra ucraniano. Quer dizer: Trump quer vingar-se do apoio (interessado) que Biden deu à Ucrânia.

No meio de tudo isto, a União Europeia paga o preço do acumular das suas cegueiras estratégicas.

A UE não viu que precisávamos de um sistema de segurança comum na Europa, que fosse confortável para o “Ocidente” e, também, para a Rússia - porque é estultícia esquecer que a questão da paz não é uma questão entre amigos, a questão da paz é uma questão entre adversários ou inimigos. São os adversários ou inimigos que precisam de tratar da paz entre si, não é inteligente pensar que só nos interessa a paz entre amigos. Querer ter paz na Europa desprezando os interesses de segurança da Rússia é uma arrogância que se paga caro, como se vê.

Do mesmo modo, a UE não viu que a aliança de segurança com os EUA estava minada por uma previsível divergência de interesses estratégicos com os EUA, que se tornaria notável a qualquer momento quando os EUA mostrassem mais claramente a sua faceta imperialista mais bárbara. Como está a acontecer agora. E os fracos líderes que pululam na UE preferiram manter a ilusão da “paz perpétua” sob o “guarda-chuva americano” e fazer de conta que não era preciso pensar na nossa própria segurança, com as consequências que estão à vista.

Talvez, para mim, mais inesperadamente, os dias mais recentes produziram um micro-fenómeno curioso: gente que se pinta como muito de esquerda anda radiante com as novas bençãos que Trump e Musk dão a Putin e com os renovados ataques que o “eixo do mal” de cabeça dupla na Sala Oval desferem contra o governo da Ucrânia. A narrativa de desculpabilização do infrator volta a circular - com gente tão de esquerda por cá a aproximar-se da, agora, tese de Trump segundo a qual a iniciativa da guerra foi da Ucrânia. Renasce a conversa de que mais valia termos sido simpáticos com Putin. Numa palavra: opinadores com mentalidades de servos brilham, agora, de novo, à luz do dia, iluminados pela estrela dupla Trump-Musk!

Queria, com o resto deste apontamento, fazer duas coisas, neste momento grave do nosso mundo: reafirmar um certo número de posições que são as minhas; mostrar que essa é a linha que sigo desde o primeiro dia desta guerra.

 Quanto ao primeiro ponto, reafirmar posições que têm sido as minhas desde a invasão russa da Ucrânia:

  • é inaceitável a iniciativa de atacar outro país pela força, a Rússia tem de perceber que isso tem consequências - mesmo que tenhamos, nós, europeus, um preço a pagar por essa afirmação da liberdade;
  • a responsabilidade russa pela agressão não desculpa “o Ocidente” (incluindo a UE) das suas próprias responsabilidades por não ter procurado um modus vivendi com a Rússia após a queda da União Soviética: a fraqueza russa após o colapso da URSS foi aproveitada para tentar humilhar a Rússia, desprezando os seus interesses de segurança, o que, para cúmulo dos escândalos, foi sendo combinado com os interesses de alguns em se fazerem a guarda avançada dos interesses russos na economia de alguns países europeus;
  • não é aceitável confundir Putin com o povo russo, mesmo que a maioria dos russos aprovem as ambições do seu Presidente - quanto mais não seja por respeito por aqueles que também sofrem, internamente, os efeitos da ditadura putinista;
  • estando em guerra, é preciso procurar a paz: o apoio à resistência ucraniana nunca deveria ter excluído a procura de caminhos de negociação, para tentar acabar a guerra o mais depressa possível, atendendo até aos pesados custos que os povos europeus foram pagando por esse conflito, mas atendendo, também, às dificuldades causadas a muitos outros países por esta guerra na Europa (é incrível como os dirigentes europeus ignoraram, ou desprezaram, o peso desta situação para muitos países amigos, por exemplo em África); a arrogância com que os países ocidentais descartaram todos os países que tentaram posicionar-se como eventuais pontes… só demonstra uma arrogância irresponsável;
  • não saímos daqui sem largarmos a ideia de que o mundo pode ser seguro se for seguro só para nós: precisamos de uma sistema de segurança comum que não faça de conta que todos os países são amigos uns dos outros e que seja capaz de lidar com as rivalidades realmente existentes no nosso mundo;
  • é impossível a UE ganhar a batalha pelo respeito pelo direito internacional se tiver duplo padrão de adesão ao direito internacional: a pretensa firmeza na Ucrânia e a patente desresponsabilização no Médio Oriente, quando metidas no mesmo saco produzem uma incoerência que será, a prazo, fatal;
  • não é aceitável meter no mesmo saco a competição económica e os conflitos armados - e, por isso, não devemos apoiar as pretensões de nenhuma potência para ameaçar outros países pela força quando o que está em causa são motivos económicos e não legítimos interesses de segurança.
Quanto ao segundo ponto - mostrar que há uma linha que sigo desde o início desta guerra -, ele é relativamente facilitado por ter tido acesso regular à expressão dos meus pontos de vista no espaço público. Assim, passo a transcrever aspetos das minhas declarações, escritas ou orais, em diferentes meios, indicando sempre o link onde uma leitura/audição mais abrangente do contexto pode ser verificado.

24 de fevereiro de 2022, Facebook:

A ouvir o PCP no Parlamento tenho a impressão de que percebi mal as notícias desta madrugada: afinal, foi a Ucrânia que invadiu a Rússia?!

(Clicar aqui para verificar o original.)

14 de maio de 2022, Facebook:

Leio por aí um certo número de escritos que parecem dizer muitas coisas acerca da guerra provocada pela invasão russa da Ucrânia, sendo, afinal, apenas variações de uma única ideia: deixem a Rússia fazer, porque a Rússia é enorme e pode fazer-nos mal, não obstaculizem Putin porque ele é forte. É o tipo de ideia que só pode ser produzida por gente com mentalidade de servo. O salazarismo viveu muitos anos à conta de massas com essa mentalidade. E, não, ser de esquerda é incompatível com ter mentalidade de servo.

(Clicar aqui para verificar o original.)

24 de maio de 2022, Facebook:

O jornal Público publicava uma notícia intitulada «Kissinger apela ao Ocidente para não infligir derrota pesada a Moscovo e pede “sensatez” à Ucrânia». Republiquei, com o seguinte comentário:

Não se pode dizer que Kissinger tenha as mãos imaculadas. Mas talvez faça entender duas ideias importantes: a primeira, que uma segurança comum é a segurança para todas as partes, não apenas para uma das partes; a segunda, que uma guerra mal resolvida trará no seu bojo, não a paz, mas guerras futuras.

(Clicar aqui para verificar o original.)

24 de junho de 2022, “Ucrânia e UE: os variados prémios à Rússia e o engodo dos momentos históricos”, in Machina Speculatrix:

Se a Rússia, com a invasão e a guerra, conseguir desorientar a UE, se conseguir afetar a coesão interna da UE, se conseguir que dentro da UE se relativizem valores, que se esqueçam princípios, que os procedimentos ad hoc se sobreponham a métodos de decisão apurados ao longo de décadas, se conseguir abanar as instituições da UE, então a Rússia terá obtido um enorme prémio pela sua agressão à Ucrânia. A Rússia quer uma UE fraca, por isso apoia as extremas-direitas que cá dentro trabalham contra as nossas democracias. Se conseguir, por esta via, enfraquecer a UE, a Rússia terá um prémio que o invasor não devia obter. A benevolência com que hoje se olha para Estados-Membros que não respeitam o Estado de direito, como a Polónia e a Hungria (a par da simpatia com que, na NATO, se lida com as pretensões da autocracia turca) é um sinal perigoso desse risco de erosão da União Europeia (o risco de voltarmos ao estilo da guerra fria, onde todo o julgamento político se resume a "está por nós ou está contra nós?" face ao "outro lado").

(Clicar aqui para verificar o original.)

30 de julho de 2022, Facebook:

(…) ser contra a invasão, e querer que os ucranianos a possam repelir, não é equivalente a esquecer que o Ocidente tem responsabilidades na gestão do caminho que nos trouxe até aqui. Ser contra a invasão não é equivalente a aprovar todos os métodos das autoridades ucranianas. Ser contra a invasão é estar do lado dos que sofrem com a guerra, sem dúvida, mas não é confundir os russos com Putin. Ser contra a invasão não nos pode obrigar a engolir todas as manobras para aproveitar politicamente a situação (desde logo, os que querem mudar a relação de forças dentro da UE à custa da guerra da Ucrânia).

(Clicar aqui para verificar o original.)

11 de agosto de 2022, Facebook:

(…) a PM da Estónia defende a proibição do turismo de cidadãos russos para a Europa. Parece que a PM da Finlândia defende o mesmo. Parece-me um posicionamento absolutamente absurdo. Condeno Putin, um ditador, e condeno a invasão da Ucrânia. Mas, seja dito com toda a clareza, este tipo de posições confunde Putin com os russos. E isso é inadmissível. É, além do mais, uma profunda falta de respeito pelos cidadãos russos que se opõem à ditadura de Putin. Insistir no ressuscitar do espírito da guerra fria é politicamente criminoso.

(Clicar aqui para verificar o original.)

23 de novembro de 2022, Casa Comum, Rádio Renascença:

Neste dia, o Parlamento Europeu aprovou uma resolução no sentido de que a Rússia seja declarada um Estado patrocinador do terrorismo. Nesse mesmo dia, no programa de debate semanal onde era, na altura, comentador residente, disse:

Desde o primeiro minuto que condenei claramente a invasão da Ucrânia pela Rússia e tenho aqui dito várias vezes que a Rússia não pode ter um prémio por essa agressão. Dito isto, eu considero que é um erro monumental do Parlamento Europeu ter aprovado a resolução, hoje, em que declara a Rússia como um Estado promotor ou patrocinador do terrorismo.

O plano dos conceitos políticos e o plano da batalha política não pode prejudicar a eficácia e eficiência do plano jurídico e da capacidade para as instâncias penais internacionais perseguirem e condenarem os responsáveis por atos inaceitáveis, mesmo durante uma guerra, porque a guerra não é o vale-tudo, a guerra também tem regras. (…)

(…) estar a meter um conceito que é um conceito que juridicamente significa uma coisa deste lado do Atlântico, que significa outra coisa nos Estados Unidos, que tem implicações jurídicas pouco conhecidas, um conceito vago, meter este conceito numa luta que é política e tem que ser política, e é a luta pelo direito da Ucrânia à independência e à autodeterminação, acho que é incorreto.

(Clicar aqui para verificar o original.)

22 de março de 2023, Casa Comum, Rádio Renascença:

A propósito da visita de Xi Jinping à Rússia e do plano de paz para a Ucrânia apresentado pela China:

Eu tenho sempre insistido que o invasor não pode ter um prémio e que nenhum plano de paz pode ser manipulado para dar à Rússia aquilo que ela quis com a invasão Mas também tenho insistido que é preciso encontrar caminhos para acabar com o sofrimento do povo ucraniano e também com o sofrimento de todos aqueles que nos outros países são atingidos pelas consequências desta guerra.

Eu não seria tão radical como os Estados Unidos na reação ao plano apresentado pela China. Eu acho que é preciso olhar com atenção para as propostas da China e ver se elas não podem permitir começar à procura de um caminho. Os Estados Unidos desconfiam tudo o que vem da China. Nós sabemos disso. Mas o nosso interesse nessa matéria não é necessariamente coincidente em todos os pontos com o interesse dos Estados Unidos.

(Clicar aqui para verificar o original.)

5 de abril de 2023, Casa Comum, Rádio Renascença:

Por ocasião da adesão da Finlândia, um país tradicionalmente neutral, à NATO:

(…) esta adesão foi forçada pela invasão russa da Ucrânia. Antes da invasão russa da Ucrânia não havia nenhum sinal de um debate sobre a adesão à NATO na Finlândia, não havia em nenhum país da NATO nenhuma perspectiva ninguém, tinha pensado na adesão da Finlândia à NATO e, portanto, isto é uma resposta a um ato de agressão cometido pela Rússia e não podemos perder isso de vista.

E, acrescentava:

Toda esta situação mostra o fracasso do conjunto da comunidade internacional em criar um sistema de segurança coletiva. Isto é, um sistema de segurança para todos, mesmo para aqueles que não são amigos. Mesmo para aqueles que são adversários. E, portanto, a incapacidade de criar um sistema que inviabilize o recurso à guerra como meio para resolver divergências. O mundo precisa de uma ordem internacional onde ninguém se sinta autorizado a tomar uma ação de força só com base no seu próprio juízo e precise de respeitar a ordem internacional, a lei internacional. Nós temos que ter consciência que, por um lado, a Rússia tem desafiado sucessivamente a ordem internacional. Lembremos, por exemplo, da intervenção na Geórgia em 2008, ou a anexação da Crimeia em 2014.

Mas temos de ter também consciência que os países ocidentais também deram, em alguns momentos, sinais errados acerca do respeito por essa ordem internacional. A invasão ilegal do Iraque em 2003, por exemplo: claramente, não apenas erradamente motivada, porque os argumentos invocados afinal eram falsos, mas, ainda, em claro desrespeito pela a ordem internacional. E não podemos, também, esquecer, por exemplo, toda a problemática que diz respeito aos bombardeamentos da Nato sobre a Sérvia e o Montenegro no fim da década de 90, que também foram feitos sem cobertura do Conselho de Segurança.

Isto põe uma questão essencial: nós olhamos para uma ordem internacional que não tem os meios, não tem as instituições adequadas para garantir a segurança de todos.

(Clicar aqui para verificar o original.)

19 de novembro de 2024, Facebook:

Eu não gostaria de uma paz que fosse um prémio ao invasor, porque isso alimentaria a voracidade do agressor. Contudo, não se constrói - nem se procura - a paz falando apenas com um dos lados. A histeria dos que atacam todos os que procuram preservar a possibilidade de mediação (por exemplo, a histeria dos que atacam o SG da ONU sempre que procura manter o respeito institucional por todas as partes que deveriam entender-se) é desprezo cru pelo sofrimento que a guerra espalha.

Temos de estar preparados para a guerra, é certo neste mundo real em que vivemos - mas isso será pura desumanidade se não estiver acompanhado de um esforço real e concreto para fazer a paz.

Claro que o duplo padrão exibido por muitos países ocidentais quando toca à questão da Palestina, onde o respeito pelo direito internacional já parece muito relativo, mostrando a face hipócrita de alguns supostos "valores elevados", só torna tudo isto mais repelente. Tão repelente como os que arranjam desculpas para a Rússia agressora e depois nos querem dar lições na condenação de Israel.

(Clicar aqui para verificar o original.)

29 de novembro de 2024, “O que esperar de António Costa”, in O Jornal Económico:

“(…) nem toda a propaganda é suficiente para nos fazer ignorar questões simples: o que fez a UE para evitar que se chegasse à invasão russa da Ucrânia, atuando na compreensão de que só a segurança comum é segurança de todos? O que fez a UE para evitar que se chegasse à situação atual no Médio Oriente? O que faz a UE para evitar a proliferação de abordagens claramente incoerentes aos dois casos, onde aqui se apela ao direito internacional e ali se esquecem as suas exigências?

Devemos ter a esperança que um António Costa que, na sua juventude, mostrou que lhe fazia sentido a mensagem “deem uma oportunidade à paz”, e que entendia essa mensagem para lá das fronteiras partidárias, seja capaz de levar as lideranças europeias a compreender que, se temos de estar preparados para a guerra neste mundo real em que vivemos (e não adormecermos todos os dias acomodados à nossa dependência do “amigo americano”), também temos de ser capazes de esforços reais e concretos para fazer a paz (e é entre inimigos que é preciso fazer a paz), onde não confundamos conferências de paz com iniciativas onde só são bem recebidos os aliados de um dos lados. Ignorar a questão limite, que é a questão da guerra e da paz, seria, afinal, suicidário.”

(Clicar aqui para verificar o original.)

Nunca o futuro da nossa rua esteve tão dependente do futuro do mundo. Quem não estiver ciente disso, está na lua.



(Publicado primeiro aqui: Somos Filhos da Madrugada.)

Porfírio Silva, 22 de Fevereiro de 2025
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