18.7.24

Senhor PM, a tática da má-fé prejudica a democracia

09:55

A propósito do debate do estado da nação, ontem, no Parlamento, publiquei ontem este editorial no Acção Socialista, que aqui deixo para registo.

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SENHOR PM, A TÁTICA DA MÁ-FÉ PREJUDICA A DEMOCRACIA

Ninguém critica o Governo Montenegro por não ter feito tudo em 100 dias. Tal como ninguém critica que o governo da direita aproveite um certo grau de convergência interpartidária registada na última campanha eleitoral para as legislativas em torno de certas matérias para as fazer avançar. Como aconteceu com as reivindicações dos professores relativas à sua carreira, que teriam registado avanços qualquer que fosse o resultado das legislativas. Não será o PS a cometer esse erro, até porque temos consciência de que não conseguimos fazer tudo o que planeámos, num ciclo político que enfrentou uma crise sanitária sem precedentes, uma guerra na Europa e uma crise inflacionária com uma dimensão desconhecida para muitos. Não será o PS a cometer esse erro, porque sabe que há muito por fazer, como sempre dissemos, apesar de o seu ciclo de governação ter sido interrompido de forma extemporânea e artificial.

 

O que se critica ao Governo é que seja mais um departamento de propaganda do que um executivo nacional. Que tente enganar o país e fazer passar por suas medidas que herdou, legisladas e em execução: como foi o caso com a descida do IRS. Que não se importe de arriscar a credibilidade internacional do país por pura tática política: como foi o caso com a tentativa de denegrir o estado das finanças públicas, no que só recuou depois de desmentido pela Comissão Europeia. O que se critica ao Governo é a tomada de medidas que agravam as desigualdades em prejuízo dos que mais precisam, como é o caso da operação fiscal justificada como política para os jovens. O que se critica é a arrogância da incompetência, como tem sido demonstrado na área governativa da Saúde, com tantos casos que seria difícil ter aqui espaço para elencar todos. O que se critica ao Governo é que se esforce mais para parecer que governa do que para governar.

 

Se não se critica o Governo por não ter feito tudo em 100 dias, tem de criticar-se o Governo por se esgotar na guerrilha política e mostrar completo alheamento face à responsabilidade, que é sua, de trabalhar pela estabilidade da governação que propõe ao país.

 

Se um governo minoritário, liderado por um primeiro-ministro cujo partido tem apenas uma bancada parlamentar da mesma dimensão da bancada do maior partido da oposição, claramente insuficiente para governar sozinho, aproveita o momento solene do debate parlamentar do estado da nação para atacar em puro “politiquês” o principal partido da oposição, mostra o nível da sua (fraca) ambição. Luís Montenegro não procura tempo e apoio para desenvolver políticas públicas que continuem o esforço de desenvolvimento do país, porque se o quisesse apresentaria ao Parlamento as suas ideias para construir as soluções que o permitissem. Luís Montenegro não procura construir convergências a partir da pluralidade, que é o esforço normal e necessário em democracias onde a representação popular é ela mesma plural – e até, cada vez mais, fragmentada –, continuando, ao contrário, num espírito de desforra que não pode ser bom conselheiro: como exibiu hoje, de novo, no parlamento, classificando como “usurpação” a constituição, em 2015, de uma maioria das esquerdas para interromper a governação “além da troika” (esquecido, talvez, daqueles que, no seu campo político, tinham já anteriormente teorizado a razoabilidade de explorar todos os mecanismos constitucionais para criar uma maioria política, mesmo contra a força que chegasse em primeiro lugar).

 

Se não se critica o Governo por não ter feito tudo em 100 dias, o mesmo tem de ser criticado por querer ser o Governo dos 300 dias. Quando o PS oferece disponibilidade para discutir, sem linhas vermelhas, as grandes opções contidas no orçamento de Estado, o Governo procura saturar a paciência dos socialistas com agressividade verbal e puro desdém. O Governo não quer ter condições para governar. O Governo quer, apenas, poder continuar em campanha eleitoral – e, para isso, procura umas eleições rápidas. Quem conduz politicamente este Governo quer repetir a tática do “deixem-nos trabalhar” e das “forças de bloqueio”, esquecendo que, passados todos estes anos depois da primeira volta dessa tática, a instabilidade política tem um preço exorbitante, que é a progressão do extremismo populista. A escolha da agressão constante ao maior partido da oposição, tentando que se torne para os socialistas insuportável negociar com quem assim se comporta, exibe uma má-fé política de quem, depois, proclama uma abertura retórica nunca concretizada para “consensos”.

 

A democracia não precisa de falsos consensos. A democracia não precisa de que estejamos todos de acordo; precisa que as forças democráticas sejam capazes de trabalhar por compromissos razoáveis e equilibrados, compromissos que não ignorem as diferenças políticas e não impliquem a renúncia aos valores fundamentais de cada um dos interlocutores. Pretender que, em democracia, a vontade do Governo prevalece “porque sim”, mesmo sem apoio maioritário, desconsiderando a representação cidadã que foi confiada também a outros partidos, é negar a própria democracia. Usar retoricamente a necessidade de compromissos e, depois, fazer tudo para afastar quem está disposto a discutir peças tão decisivas como o orçamento de Estado, é usar de má-fé. É preciso que o senhor primeiro-ministro compreenda que a má-fé no debate democrático vai contra a própria essência deliberativa da democracia – e vai de par com a sua tendência para desvalorizar o parlamento. A má-fé, a retórica do diálogo usada como mero ingrediente de uma estratégia de confrontação e rutura, com meros intuitos eleitoralistas, é deslealdade à própria democracia. Senhor Primeiro-Ministro, essa tática da má-fé prejudica a democracia – e a vida da democracia, estando difícil por todo o lado, bem dispensa que se ofereçam mais oportunidades aos que engordam na instabilidade e no clima de confrontação extremada.


Porfírio Silva, 18 de julho de 2024
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9.7.24

Contributo para compreender a política em França nos próximos dias

A primeira reação face aos resultados das eleições legislativas antecipadas de 7 de julho em França foi de alívio: a "barragem republicana" impediu a extrema-direita de chegar ao poder, Já escrevi sobre isso, na segunda-feira a seguir aos factos, um editorial no Acção Socialista: Derrotar a extrema-direita, não apenas por agora, mas duradouramente. A vitória da coligação pré-eleitoral de esquerda, a Nova Frente Popular, na qual o Partido Socialista Francês toma parte, é motivo de esperança - mas também de atenção e reflexão.

Contudo, para refletir precisamos de alguma informação de base. E, dadas as complexidades do sistema político francês, e das próprias minudências do sistema eleitoral, às vezes isso não é fácil (ainda menos para quem não consegue recolher informação na língua dos franceses). Essa é a motivação para deixar aqui alguma informação e alguns elementos de problematização:
- um olhar sobre os resultados das legislativas 2024;
- a composição interna dos três grandes blocos;
- alguns tópicos que podem ser úteis para interpretar o que virá nos próximos dias ou nas próximas semanas.
  



O ESSENCIAL DOS RESULTADOS ELEITORAIS



Para começar, os dados quantitativos: mapa da França com os eleitos por círculo (só os círculos dos residentes em território continental europeu):




                 





A NFP (Nova Frente Popular) ficou em primeiro lugar; o Ensemble, que junta os centristas em torno de Macron, ficou em segundo lugar; o Rassemblemente National (RN, extrema-direita), com o apoio de uma parte do LR (Os Republicanos, que costumavam ser direita tradicional) ficou em terceiro lugar; LR (entre Os Republicanos, aqueles que recusaram juntar-se à extrema-direita) ficou em quarto lugar. 

Sendo a Assembleia Nacional composta por 577 deputados, faz-se maioria absoluta com 289 deputados. Note-se que o governo que agora deverá cessar funções, da cor do Presidente Macron, não dispunha de maioria absoluta no parlamento, governando com recurso cada vez mais frequente a um mecanismo constitucional que permite ao governo fazer passar leis sem as submeter a voto parlamentar normal (nessa circunstância, a única maneira de travar essa lei é apresentar e fazer aprovar uma moção de censura ao governo, derrubando-o).

Onde ganhou a Nova Frente Popular:






Onde ganhou o Ensemble:





Onde ganhou a extrema-direita (RN e Republicanos que a apoiaram):




Uma nota de precaução sobre os resultados: se é certo que já se sabe quem foi eleito e quem não foi eleito (os nomes dos deputados eleitos), ainda não se sabe exatamente a distribuição por grupos políticos. Os números acima não são, por isso, absolutamente certos, havendo dissonância entre várias fontes consultadas (em princípio, não afetando a correlação de forças global).  A que se deve essa estranha situação? Designadamente, e especialmente, ao facto de estarem em curso algumas dissidências dos Insubmissos - devidas, nomeadamente, à forma sectária como Mélenchon elaborou as listas, "purgando" alguns dos seus camaradas que o haviam criticado, nomeadamente tentando afastar deputados do seu partido com mandato na anterior Assembleia Nacional. Deu-se, inclusivamente, o caso de um candidato excluído dos Insubmissos ter mantido a sua candidatura contra um (outro) candidato dos Insubmissos (integrado na NFP) e ter ganho a eleição. Os números acima são os que podíamos ler no Le Monde ao fim do dia de segunda-feira.




SOBRE A COMPOSIÇÃO INTERNA DOS TRÊS GRANDES BLOCOS



Importa conhecer a composição de cada um dos grandes grupos, na medida em que eles estão longe de ser homogéneos e muito do que pode acontecer nos próximos tempos pode passar por reconfigurações que ponham em causa as formas apresentadas aos eleitores.

Esta informação não foi fácil de obter, a maior parte dos órgãos de comunicação social não tinha esta informação durante a elaboração deste texto e, finalmente, usamos a informação da FranceInfo em linha (obrigado, Maria João Pires). Os dados globais não correspondem à informação anterior, mas dão uma distribuição que, mesmo que seja aproximada, dá uma boa visão global da distribuição de forças dentro de cada um dos três grandes blocos.



Distribuição dos assentos dentro da Nova Frente Popular:

LFI (Insubmissos, liderados por Mélenchon): 71 deputados

Socialistas (que incluem o Partido Socialista Francês, mas onde este não é sequer hegemónico): 64  deputados

Ecologistas: 33 deputados

Partido Comunista Francês: 9 deputados

Outros: 3 deputados

Há deputados eleitos por outras (pequenas) formações, regionalistas, dissidentes dos Insubmissos que conseguiram ser eleitos contra o candidato oficial, socialistas eleitos fora das listas do NFP, etc., que podem vir a alinhar com a estratégia da NFP, apesar de não lhe pertencerem formalmente.







Distribuição dos assentos dentro do Ensemble: 

Renascimentos (Macron): 98 deputados

MoDem: 34 deputados

Horizons: 26 deputados 

União dos Democratas e Independentes: 1 deputado

Outros: 4 deputados







Distribuição dos assentos na extrema-direita e aliados:

Rassemblemente national (RN): 126 deputados

RN e Republicanos: 17 deputados







CHAVES PARA O FUTURO



Como disse na noite eleitoral (na TF1) um alto dirigente do Partido Socialista Francês, acabou o bipartidarismo. É verdade que esse bipartidarismo já há muito que era um "bi-bloquismo", porque o enfrentamento era entre dois blocos, de composição complexa cada um deles, e não entre dois partidos, mas, agora, temos uma situação qualitativamente nova: estão em campo, não dois, mas três grandes blocos políticos, eventualmente em curso de recomposição (por exemplo, é interessante saber o que farão no futuro Os Republicanos da ala histórica, que, sendo bastante conservadores, não alinharam com a extrema-direita e, de momento, parecem pouco inclinados a ceder ao namoro dos Macronistas, escaldados com o tratamento que o Presidente lhes deu no passado. E têm, com um conjunto de aliados próximos, cerca de 60 deputados.) De qualquer modo, a situação é nova e poderá evoluir mais ou menos rapidamente nos próximos tempos.

Nenhuma grande força política em França estará, agora, apenas a pensar no futuro imediato. Todos deverão estar conscientes de que uma solução imediata que rapidamente se revele fraca e incapaz de responder à gravidade da situação provocará, daqui a um ou dois anos, uma crise ainda maior e, então, uma vitória mais provável da extrema-direita. Na realidade, o cenário é confuso. Todos estarão, pois, a jogar em vários tabuleiros ao mesmo tempo.


Os Macronistas foram os principais beneficiários da "barragem republicana" à extrema-direita


Desde logo, não é fácil interpretar os resultados da segunda volta destas eleições: qual é o peso real de cada bloco? O partido de Le Pen, tendo, graças à “frente republicana”, ficado em terceiro lugar em número de assentos na Assembleia Nacional, recolheu cerca de 32% do voto popular, contra um pouco mais de 25% da Nova Frente Popular e um pouco mais de 23% das forças centristas mobilizadas por Macron. Contudo, essa vantagem tem de ser relativizada de dois modos. Por um lado, a frente de esquerda e o bloco centrista não concorreram em todos os círculos. Mais precisamente, a NFP desistiu (principalmente a favor dos centristas) em cerca de 130 círculos e os centristas desistiram (principalmente a favor da NFP) em cerca de 80 círculos. Nos círculos onde desistiram tiveram zero votos - mas os seus eleitores não desaparecera, embora não sejam contabilizados. Quem perdeu mais, nessa dimensão, foi a NFP, que desistiu em mais 50 círculos do que os centristas: afinal, foram, talvez, os Macronistas os que mais ganharam com a estratégia proposta pela esquerda frentista. Este efeito é reforçado pelo facto de a NFP ter sido afastada na primeira volta em mais círculos do que a extrema-direita (a extrema-direita foi eliminada em 92 círculos na primeira volta, a NFP foi eliminada em 131 círculos). Noutro sentido, há que contar com os candidatos que, tendo sido eleitos à primeira volta... não tiveram votos na segunda volta: a extrema-direita elegeu 39 na primeira volta, a NFP 31, e foram os únicos a eleger um número significativo na primeira volta - e, portanto, os únicos prejudicados na fotografia em percentagem da segunda volta. No conjunto, enquanto o resultado "natural" da primeira volta dava 306 triangulares, finalmente só aconteceram 89, o que mostra o grau de distorção da percentagem da segunda volta.


A aprendizagem por fazer

Em países como a Alemanha ou os Países Baixos, e outros onde os resultados eleitorais levam os partidos a procurar constituir maiorias para poderem governar, sem a ilusão de durarem muito governos minoritários, o que estaria em perspectiva, agora, em França, seria alguma espécie de entendimento entre a NFP e os centristas reunidos em torno de Macron. Não parece, contudo, que isso seja fácil. Macron, com o seu egocentrismo, tornou-se um símbolo odiado da arrogância política. É difícil que a esquerda, no seu conjunto, aceite colaborar ostensivamente com ele. Simetricamente, a componente Mélenchon da NFP é tóxica, não apenas para os adversários da direita e do centro, mas igualmente para outras forças de esquerda, para quem o desbragamento verbal e o sectarismo do líder dos Insubmissos é inaceitável - tal como já é inaceitável mesmo para alguns dirigentes dos Insubmissos. Mas Mélenchon é o líder dos Insubmissos e, portanto, da componente maioritária da NFP - embora muitos tenham dito e redito, durante a campanha eleitoral, que ele não seria o seu candidato a primeiro-ministro. 
Haverá, em algumas componentes da NFP, a tentação de romper e aceitar alguma forma de cooperação com os Macronistas - mas é muito duvidoso que seja aceitável romper, assim, sem mais nem menos, uma proposta que se apresentou aos eleitores e cujo programa foi sufragado em questões muito concretas (como a idade da reforma). Não seria um bom princípio enganar assim os eleitores - e seria, mais tarde, um peso difícil de carregar em novo confronto eleitoral.
Os Macronistas, por seu lado, tentarão, provavelmente, juntar forças com uma parte da direita tradicional, designadamente os Republicanos e seus aliados, para tentarem compor um bloco mais numeroso que a NFP, mas é duvidoso que sejam, assim, recompensados, por estes anos em que Macron andou a tentar desgraçar todos os partidos de esquerda e todos os partidos de direita a favor da sua estratégia de hegemonia. 


Entre o curto e o médio prazo

Durante um ano, a Assembleia Nacional não pode ser dissolvida. O atual governo, Macronista, não tem maioria no parlamento e governou nos últimos dois anos com recurso frequente a um mecanismos constitucional que permite ao governo "impor" uma determinada lei fazendo com que ela só possa ser travada pela aprovação de uma moção de censura e consequente derrube do governo. Assim sendo, não é de descartar que Macron, aproveitando da vantagem de ser Presidente, queria nomear um governo e esperar que ele resista ao parlamento por essa via. Não seria, contudo, fácil continuar mais tempo a viver desse expediente.
E seria democraticamente triste que Macron tratasse de ignorar olimpicamente que a NFP foi, politicamente, a principal vencedora destas eleições.
Entretanto, alguns dirigentes da NFP querem ter a oportunidade de governar com o mesmo expediente que o governo de Macron tem usado, considerando que podem viver com uma maioria relativa na Assembleia Nacional, sem necessidade de negociar com os centristas ou com a direita. É expectável, com umas eleições presidenciais no horizonte, que nenhum dos outros blocos queira dar essa oportunidade à esquerda.
Haverá, designadamente na esquerda francesa, quem julgue que é preciso uma reforma profunda do sistema político - designadamente do sistema eleitoral, que alguns consideram que só será democrático se for proporcional - , estando, por isso, dispostos a qualquer solução entre "união republicana" e "governo de tecnocratas" para aguentar um ano, enquanto se fazem essas reformas, para depois voltar a dar a voz ao povo.

Em jeito de resmungo pessoal, eu diria o seguinte: (1) as nossas democracias estão a demorar a aprender que os parlamentos são o lugar da pluralidade e, portanto, devem ser o lugar da concertação e do compromisso - e, enquanto não aprendermos isso, estaremos sempre na tentação de termos poder suficiente para não precisarmos de mais ninguém, com a direita extrema sempre à espreita para parasitar a instabilidade e a incapacidade de compromisso dos partidos democráticos; (2) os debates daquilo que, por cá, eu chamei "esquerda plural", são, no essencial, os debates que a esquerda francesa vai ter de fazer para sair de pé deste desafio - e, aí, não tenho dúvidas de que um dos principais pontos de torção será o posicionamento face à União Europeia, onde as divergências ideológicas de fundo têm mais implicações em decisões políticas muito concretas.



Porfírio Silva, 9 de julho de 2024
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8.7.24

Derrotar a extrema-direita, não apenas por agora, mas duradouramente





Ontem, 7 de julho, foi a segunda volta das eleições legislativas antecipadas de 2024 em França e hoje, na minha responsabilidade de diretor do órgão informativo do Partido Socialista, entendi dever escrever o editorial do Acção Socialista. Reproduzo-o aqui, para registo.

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DERROTAR A EXTREMA-DIREITA,

NÃO APENAS POR AGORA, MAS DURADOURAMENTE


Ontem, festejámos uma realização importante: os franceses travaram a extrema-direita! A Nova Frente Popular, juntando uma pluralidade de forças de esquerda – entre as quais, o Partido Socialista Francês –, num acordo político e eleitoral concretizado em pouquíssimos dias, elegeu mais deputados do que qualquer outra candidatura. O Ensemble, reunindo várias forças que se movem na influência do Presidente Macron, ficou em segundo lugar. Em terceiro lugar, em número de deputados, ficou o partido de extrema-direita animado por Marine Le Pen.


Numa semana em que tivemos duas eleições legislativas importantes no espaço europeu, Reino Unido e França, os socialistas têm muita coisa a festejar. O Partido Trabalhista britânico conquistou uma larguíssima maioria absoluta, acabando com mais de uma década de trapalhadas dos conservadores e permitindo a esperança de uma governação mais decente naquele país (por exemplo, acabando com o projeto de entrega de refugiados a países terceiros, ao arrepio das garantias com que os países civilizados se comprometem face à lei internacional). Pelo seu lado, o Partido Socialista Francês integrou a vasta reunião de forças de esquerda que trabalhou para impedir o acesso da extrema-direita ao poder – tendo conseguido concretizar esse desiderato. São, pois, duas realizações positivas de partidos com quem o PS mantém estreitas e cordiais relações, baseadas em valores e compromissos progressistas.


Convém, no entanto, continuar com os pés bem assentes na terra e sermos capazes de medir os desafios que temos perante nós. No Reino Unido, o Reform UK, o partido extremista liderado por Nigel Farage (o Trump inglês), só conseguiu eleger quatro deputados para a Câmara dos Comuns (o que compara com mais de quatrocentos eleitos pelo Labour), mas isso deveu-se ao sistema eleitoral vigente (uninominal maioritário a uma volta, em que, em cada círculo, “o vencedor leva tudo”). Em votos, esse partido extremista colheu mais de 14%. Ficou, pois, em terceiro lugar (os Trabalhistas venceram com mais de 33% e os Conservadores ficaram com mais de 23%). Em França, o partido extremista, que tenta apresentar uma imagem adocicada para melhor enganar os incautos, e que vai navegando em sucessivas gerações Le Pen, tendo, graças à “frente republicana”, ficado em terceiro lugar em número de assentos na Assembleia Nacional, recolheu cerca de 32% do voto popular, contra um pouco mais de 25% da Nova Frente Popular e um pouco mais de 23% das forças centristas mobilizadas por Macron. Era com este sistema que a extrema-direita ambicionava chegar à maioria absoluta, chegando o seu candidato a primeiro-ministro a dizer que só formaria governo nessas condições, pelo que não devemos dar qualquer crédito aos seus protestos pelo funcionamento do sistema depois de conhecerem os resultados das urnas – mas a questão merece reflexão.


O que estes números nos dizem é que, mais do que derrotar a extrema-direita hoje, é preciso derrotar a extrema-direita duradouramente. Agir nas raízes, não apenas na copa das árvores. É preciso eliminar as causas sociais e políticas do avanço da extrema-direita, única maneira de evitar que ela volte, mais forte a cada nova perturbação, até derrotar a democracia.


Para derrotar as causas sociais do avanço da extrema-direita é preciso ultrapassar a insensibilidade social que, por vezes, impede os partidos democráticos de atentar mais cuidadosamente na vida concreta das pessoas e dos territórios – e de lhes dar respostas substantivas. Em França, essa insensibilidade social apresentou-se, nos últimos anos, desde logo, no topo do Estado, com a atitude do Presidente Macron, tornando-se a marca dessa forma de centrismo equilibrista e com uma ideia de progresso excessivamente abstrata e desligada das realidades sociais.


Para derrotar as causas políticas do avanço da extrema-direita é preciso insuflar vida nas instituições democráticas, permitindo que a discussão real e concreta da vida quotidiana de todos os cidadãos e de todos os territórios se torne o centro da vida política – e criando espaços de verdadeira deliberação democrática, de tal modo que se torne visível que aquilo de que os políticos falam é mesmo acerca dos melhores caminhos para conseguirmos, todos, uma vida melhor. Uma democracia deliberativa é uma democracia que não se esgota na prevalência dos que têm mais votos: é uma democracia que se exerce escutando efetivamente os argumentos dos outros e integrando todos os contributos positivos num processo de ir continuando a tentar fazer melhor.


Para derrotar as causas políticas do avanço da extrema-direita é preciso que a esquerda não renuncie a ser alternativa: em vez de querer apenas rodar no poder com a direita, a esquerda deve trabalhar para oferecer soluções melhores, mais justas e mais sustentáveis, para a vida das pessoas e do país. Por isso, no caso da França, é importante que a Nova Frente Popular seja capaz de se manter unida a trabalhar por uma visão alternativa para a governação do país, com o programa comum que as diferentes forças de esquerda apresentaram em conjunto ao país, capaz de ultrapassar a insensibilidade social que o bloco centrista liderado por Macron tem protagonizado. E, ao mesmo tempo, para garantir que a derrota da extrema-direita não é momentânea, mas duradoura e profunda, é preciso que a esquerda vencedora, a Nova Frente Popular, seja capaz de trabalhar com as demais forças democráticas para criar o espaço social necessário para tratar das feridas e ir em frente: se foram capazes de se eleger mutuamente, apesar das diferenças, deverão ser capazes de recusar à extrema-direita a instabilidade e a crispação de que ela se alimenta.


Numa democracia representativa, onde o parlamento é o lugar central de deliberação, não faz sentido continuar com a ficção de que basta chegar à frente numa eleição para poder governar sozinho. Ninguém pode nunca governar sozinho, mesmo que tenha maioria absoluta no parlamento, porque, felizmente, a sociedade conta – e conta cada vez mais. Mais claro se torna que, ficando em primeiro lugar, mas com maioria relativa, é preciso trabalhar num horizonte mais amplo. E, claro, a esquerda só pode escolher trabalhar com os democratas, com os outros democratas. Com os democratas que não hesitam em defender a República face à ameaça da extrema-direita, porque só esses são democratas com que se pode contar. Numa palavra: em tempos difíceis, em democracias complexas, o sectarismo é suicídio. Em França como alhures. Quer isto dizer que a esquerda deve perder de vista a sua diferença, o seu contributo próprio? Não. Quer dizer que a esquerda relevante é a esquerda que, antes de mais, é a força democrática por excelência, a força determinante para que prevaleça a democracia contra o fechamento das sociedades e contra as tentações totalitárias.

 

(Para ler na publicação original, clicar aqui: https://accaosocialista.pt/#/1538/derrotar-a-extrema-direita-nao-apenas-por-agora-mas-duradouramente )



Porfírio Silva, 8 de julho de 2024
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2.7.24

"Conversa" com o chatGPT sobre aquilo que Diogo Costa chamou “instinto” na defesa dos penáltis

16:19


Ontem, 1 de julho de 2024, a seleção nacional de futebol enfrentou a equipa eslovena num dos jogos dos oitavos de final do Euro 2024. A intervenção dos guarda-redes foi decisiva. O guarda-redes esloveno (Jan Oblak) defendeu uma grande penalidade a cargo de Cristiano Ronaldo quase no fim da primeira parte do prolongamento, evitando que a sua equipa ficasse numa desvantagem mortal a poucos minutos do fim da partida. O guarda-redes português (Diogo Costa) conseguiu travar uma avançada eslovena onde ele era o único obstáculo entre o ataque e a baliza e, depois, no desempate por grandes penalidades, defendeu os três remates da marca dos onze metros dos jogadores eslovenos e assim, já que os três portugueses chamados à função concretizaram, a equipa portuguesa passou a eliminatória e os espetadores tiveram a oportunidade de ver algo raríssimo (não posso afirmar que seja inédito): um guarda-redes defender três penaltis no mesmo jogo.


Em declarações no final do jogo, Diogo Costa afirmou ter seguido cegamente o seu instinto (sem prejuízo, claro de ter treinado muito e de ter estudado os adversários). É aquilo que a maior parte das pessoas diria sobre tal situação: quando não sabemos explicar o nosso comportamento, dizemos que foi por instinto. Pelo menos, dizemos isso quando o comportamento deu o resultado esperado (é raro atribuirmos ao instinto uma decisão que deu um resultado que consideramos mau).


Tive uma “conversa” com o chatGPT acerca do que possa existir de investigação científica acerca da forma como guarda-redes defendem pontapés da marca de grande penalidade. O programa respondeu-me em vários planos: os guarda-redes estudam o histórico de execução dos seus oponentes e preparam respostas que consideram apropriadas; estudam posicionamentos iniciais que podem melhorar genericamente a sua velocidade de resposta ao remate; adotam estratégias que não dependem especificamente do que o marcador vai fazer naquele momento, mas que estatisticamente aumentam a probabilidade de ter a reação adequada; usam técnicas (movimentos corporais, gestos ou palavras) para distrair o jogador que vai executar o penalti; e os guarda-redes também podem melhorar a sua capacidade de antecipar o lado para o qual aquele jogador, naquele caso concreto, vai rematar.


Perguntámos, depois, especificamente, sobre investigação existente acerca do último tópico: capacidade do guarda-redes para antecipar o lado para onde será dirigido o remate. Essa capacidade é, por vezes, referida como “antecipação visual”, quer dizer, como é que o guarda-redes capta e interpreta pistas corporais e comportamentais do marcador que denunciam o lado para onde vai rematar. Mais uma vez segundo o chatGPT, há investigação sobre as seguintes questões: como é que os guarda-redes identificam e interpretam pistas corporais no momento da marcação, tais como a posição dos pés e a posição dos quadris, ou o ângulo de aproximação ao remate; onde é que os guarda-redes focam a sua atenção para ter essas pistas: pé de apoio do jogador ou orientação do corpo; como é que os guarda-redes fixam o olhar (mais ou menos longamente) em certos pontos críticos do corpo do rematador, de molde a focarem o que lhes possa dar mais indicações.


A questão seguinte foi esta: a capacidade do guarda-redes de antecipar o lado para o qual o rematador vai chutar pode ser descrita como decisão ou instinto (ou intuição)? A resposta foi: uma mistura de ambos. O estudo do histórico daquele rematador em concreto, o estudo das pistas corporais (pé de apoio, posição dos quadris, dos ombros e da cabeça, corrida de preparação), fornecem elementos para uma decisão. Contudo, há elementos que levam o guarda-redes a uma determinada resposta e que o próprio não consegue racionalizar: dizer que é a experiência que o ensina a reagir de determinada maneira é uma maneira de dizer que há um processamento não consciente da situação, das pistas, da comparação com casos anteriores, a que chamamos instinto por não sermos capazes de interpretar como funciona realmente esse mecanismo.


Nesta fase da conversa, foi preciso clarificar uma questão: é mais apropriado falar de “instinto” ou falar de “intuição” para nos referirmos à parte do comportamento do guarda-redes que não é propriamente decisão racional consciente? Lembramos que se começou aqui por falar de instinto por ter sido essa a expressão usada por Diogo Costa para explicar como determinou as suas defesas, mas que deve ser feita uma reserva a essa uso: instinto aponta para um comportamento inato (com o qual nascemos), regido por um certo automatismo, algo herdado e que não depende da experiência ou da aprendizagem. Não parece apropriado falar de instinto num caso em que, evidentemente, o guarda-redes estudou e treinou para modificar o seu comportamento. É mais apropriado falar de “intuição”, porque também se refere a comportamos que espoletamos sem recorrermos a um processo de raciocínio consciente (muitas vezes não somos capazes de explicar porque fizemos aquela opção), mas a intuição desenvolve-se com a experiência acumulada e com conhecimento adquirido, mesmo que a aplicação posterior dessa experiência e conhecimento seja um processo que não somos capazes de explicitar ou de consciencializar. O guarda-redes desenvolve a intuição com muito trabalho específico: treinando muitas vezes uma gama variada de situações, de tal modo que incorporou informação que depois vai usar muito mais rapidamente do que consegue pensar explicitamente, tomando decisões que são tão rápidas e não conscientes que até parecem automáticas. A intuição pode ser melhorada, com mais experiência e mais conhecimento, não é fixa – ao contrário do instinto.


Um outro tópico seria este: o que distingue a inteligência racional da inteligência intuitiva?


Deixemos isso para outra altura e anotemos as leituras que o chatGPT sugeriu sobre este tópico. O chatGPT sugeriu a consulta de três resultados de investigação sobre esta matéria.

Williams, A. M., & Burwitz, L. (1993). "Advance cue utilization in soccer" 

Este estudo analisou como os guarda-redes utilizam pistas visuais para antecipar a direção do chute. Os resultados mostraram que guarda-redes experientes conseguem identificar e interpretar pistas do movimento corporal do cobrador, como a posição dos pés, quadris e ângulo de aproximação, para prever a direção do chute. Mostraram que a análise consciente de pistas visuais pode ser treinada, mas que a aplicação dessas habilidades em jogo envolve decisões rápidas que muitas vezes se baseiam em instintos refinados. (Para quem tenha acesso, pode consultar aquihttps://doi.org/10.4324/9780203474235 )

 

Savelsbergh, G. J. P., van der Kamp, J., Williams, A. M., & Ward, P. (2005). "Anticipation and visual search behavior in expert soccer goalkeepers". Neste estudo, os investigadores estudaram os padrões de busca visual dos guarda-redes durante os penáltis. Descobriram que os guarda-redes experientes focam a sua atenção em áreas críticas, como o pé de apoio do jogador e a orientação do corpo, o que lhes permite antecipar melhor a direção do remate. Destacaram que os guarda-redes experientes têm padrões de busca visual mais eficazes, uma capacidade que, parecendo instintiva, é desenvolvida através de treino e experiência. (Para quem tenha acesso, pode encontrar aqui https://doi.org/10.1080/00140130500101346 )

 

Rienhoff, R., Tirp, J., Strauß, B., Baker, J., & Schorer, J. (2013). "The 'quiet eye' and motor performance: How skill level influences online and offline performance". Este artigo relata uma investigação sobre a técnica do "olho quieto" (quiet eye), que é o período de fixação visual antes de iniciar um movimento. Guarda-redes de elite mostraram fixações mais longas em pontos críticos (como o pé de apoio do jogador) antes do remate, permitindo uma melhor antecipação da direção. (Não consegui encontrar este artigo, mas há muito trabalho publicado sobre esta problemática.)




Gostariam de dizer algo sobre esta "conversa" com o chatGPT?

Porfírio Silva, 2 de julho de 2024
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16.6.24

A Nova Frente Popular em França



Face à ameaça de uma vitória da extrema-direita, e face à paralisia do campo liberal do presidente Macron, que, depois de ter desmembrado a esquerda e de ter desmembrado a direita tradicional, numa estratégia de “monarca” que despreza as estruturas de intermediação e de formação da vontade política que são os partidos, diversos partidos – e muito diversos são eles entre si – decidiram apresentar-se às eleições legislativas (precipitadamente) antecipadas em França na Nova Frente Popular.

Enquanto a luta, na “direita tradicional”, entre os que querem aliar-se à extrema-direita e os que querem ir autonomamente às próximas eleições legislativas, já vai no tribunal, os principais partidos da esquerda francesa elaboraram rapidamente um programa eleitoral e um esquema de repartição das candidaturas em todo o território nacional, formando a  Nova Frente Popular, destinada a concorrer às legislativas antecipadas que o presidente Macron marcou após constatar a vitória da extrema-direita (e a sua própria derrota) nas europeias deste mês em França.

 Essas eleições serão nos próximos dias 30 de junho e 7 de julho (primeira e segunda voltas).

Neste apontamento queremos deixar algumas anotações sobre este momento, basicamente nos seguintes aspetos: breve recordatória dos momentos mais recentes de cooperação à esquerda em França; descrição básica do processo “Nova Frente Popular” agora em curso em França.


Etapas anteriores

 

Vale a pena passar, brevemente, em revista a dinâmica das tentativas de juntar a esquerda nas últimas décadas da política francesa.

Depois do movimento unificador da esquerda não comunista francesa, que resultou na criação do PSF em 1971, em larga medida graças ao impulso de François Mitterrand, deu-se rapidamente um movimento de aproximação aos comunistas. Cabe lembrar que o PCF, liderado por Georges Marchais, era a força dominante da esquerda francesa, em termos organizativos e eleitorais, apesar da “crise cultural” que passara pelo Maio de ’68.

Assinado em 1972, o Programa Comum de Governo, entre o PSF e o PCF, a que se juntou o Movimento dos Radicais de Esquerda, foi a primeira tentativa séria, depois da guerra, para uma “esquerda plural”. Mitterrand foi o candidato da “esquerda unida” às presidenciais de 1974 (derrotado). Globalmente, o processo espoletou uma dinâmica que prejudicou eleitoralmente o Partido Comunista Francês: o PSF suplantou o PCF em eleições autárquicas e regionais em 1976 e em 1977.

A renegociação do Programa Comum para as Legislativas de 1978 fracassou (um dos principais pontos de desacordo foi o programa de nacionalizações proposto pelos comunistas e recusado pelos socialistas), o PCF rompeu com o Programa Comum, os partidos que o compunham concorrem separados, a direita volta a sair vencedora do escrutínio, mas acontece uma reviravolta: pela primeira vez desde antes da guerra, os socialistas tiveram (em eleições nacionais) mais votos do que os comunistas, emergindo o PSF como a força mais votada à esquerda (com 22%), perdendo o PCF a sua anterior preponderância (com 20%). O declínio eleitoral dos comunistas nunca mais parou e a cooperação entre os grandes partidos de esquerda entrara em crise ainda na oposição.

A nova oportunidade surgiu em 1981, quando Mitterrand foi eleito Presidente da República por toda a esquerda e nomeou um novo governo, com 4 ministros comunistas, seguindo-se uma vitória esmagadora em legislativas antecipadas (graças ao sistema maioritário). Rapidamente, graças ao insucesso do programa económico em contexto de crise internacional, o governo mudou de rumo e recomeçou o afastamento entre socialistas e comunistas – tal como começou uma viragem do PSF nas políticas públicas, num sentido bastante diferente daquele que proporcionara a aproximação aos comunistas.

A fase assinalável seguinte de cooperação à esquerda é a chamada “Esquerda Plural”: para as legislativas de 1997, uma rede de acordos liga o PSF, em entendimentos separados, com os Verdes, os Radicais de Esquerda e o movimento de Jean-Pierre Chevènement (antigo dirigente de uma corrente do PSF, dissidira e criara um movimento). Esses acordos, complementados por uma declaração conjunta do PSF e do PCF, configuraram o que se chamou a Esquerda Plural, que chegou ao governo com ministros e secretários de Estado dos vários parceiros, com o líder do PSF, Lionel Jospin, como primeiro-ministro.

Lionel Jospin foi, depois, candidato presidencial derrotado, não tendo passado da primeira volta, o que constituiu um terramoto na política francesa: a segunda volta das presidenciais foi disputada por dois candidatos da direita (direita tradicional e extrema-direita), apesar de, na primeira volta, o conjunto dos candidatos da esquerda terem recolhido mais de 42% dos votos. A extrema fragmentação da esquerda afastou-a da possibilidade de disputar minimamente o poder.

Mais recentemente, nas legislativas de 2022, que se seguem à reeleição de Macron para um segundo mandato presidencial, Jean-Luc Mélenchon (que foi, no passado, militante do PSF), consegue dinamizar a NUPES (Nova União Popular Ecologista e Social). A NUPES, cuja principal força é a France Insoumise, o partido onde pontifica Mélenchon, conta ainda com os ecologistas, os socialistas e os comunistas. Não constituindo, propriamente, um movimento de renovação da esquerda francesa (nem no plano das ideias, nem no plano da organização), e mesmo sem um verdadeiro sucesso eleitoral, consegue que Macron não tenha maioria absoluta no parlamento. Balanço eleitoral da NUPES em 2022: na segunda volta, a NUPES continuava em jogo em 385 círculos, enquanto, nas eleições de 2017, os partidos que a integram, concorrendo separados, só tinham sobrevivido à primeira volta em 146 círculos.

A NUPES nunca deixou de ser um campo político fragmentado, fragmentação essa muito alimentada pelo radicalismo político e comportamental de Mélenchon, apesar de não ser possível deixar de contar com o partido político atualmente mais representativo da esquerda francesa. Se a France Insoumise é, no atual quadro, incontornável do ponto de vista do peso eleitoral à esquerda, é evidente que Mélenchon é visto por muitos à esquerda como obstáculo a um aprofundamento da cooperação nessa mesma esquerda. Entre os episódios que evidenciam essa questão podemos mencionar as eleições de setembro de 2023 para a renovação parcial do Senado, onde socialistas, comunistas e ecologistas organizam candidaturas comuns, deixando de fora o partido de Mélenchon, que acusou o toque. Posteriormente, a posição de Mélenchon sobre o ataque do Hamas a Israel é considerada, por muitos, no mínimo dúbia, levando os socialistas a suspender a sua participação na NUPES. Nas europeias deste ano, os partidos integrantes da NUPES concorreram separadamente.


 A Nova Frente Popular

 

A Nova Frente Popular é uma coligação pré-eleitoral com um programa partilhado por todas as forças concorrentes (França Insubmissa, Ecologistas, Socialistas e Comunistas) e vai traduzir-se no facto de que em cada círculo eleitoral apresentar-se-á uma candidatura única apoiada por todos estes partidos (e outras organizações mais pequenas que atuam nas proximidades de algumas destas forças). Para isso, fizeram um acordo círculo eleitoral a círculo eleitoral, designando onde se vai tentar eleger quem (em termos de partidos, sendo que cada partido escolhe autonomamente os candidatos aos lugares que lhe couberam na distribuição).

A distribuição das candidaturas será a seguinte: a França Insubmissa terá 299 candidatos (são menos 100 candidatos dos “insubmissos” que na candidatura NUPES em 2022), 175 candidatos dos socialistas (reforçados, até tendo em vista a subida muito substancial que tiveram nas europeias), 92 candidatos dos ecologistas e 50 candidatos dos comunistas.

Entretanto (dificuldades) a França Insubmissa, de Mélenchon, está a ser acusada de sectarismo por ter excluído das suas listas algumas das figuras que são críticas do líder (vários deputados e deputadas atualmente em funções), enquanto mantém nas listas um condenado por violência doméstica (a quatro meses de prisão com pena suspensa).

Quanto ao programa, ou contrato de legislatura, e reconhecendo que preciso de mais tempo de análise para o perceber melhor, posso, desde já, indicar-vos que podem lê-lo na língua original (francês) no sítio da Nova Frente Popular (https://www.nouveaufrontpopulaire.fr/ ). Contudo, como acredito que muitos dos meus leitores não entendem facilmente o francês, deixo o link para o esquerda.net, que creio ter a única versão portuguesa disponível do “contrato de legislatura” da Nova Frente Popular: https://www.esquerda.net/artigo/aqui-esta-o-programa-eleitoral-da-nova-frente-popular/91330.

Não sou, em geral, partidário de “formas de fusão” entre partidos diferentes, preferindo formas de cooperação que preservam a autonomia e as diferenças específicas. Compreendo, no entanto, que um sistema como o francês favorece fortemente a concentração de votos e penaliza a dispersão, embora já não tanto como o antigo sistema maioritário puro. É isso que justifica, para muitos, que um campo tão fragmentado como a atual esquerda francesa tenha de procurar formas de concentração que permitam não desperdiçar as suas forças.

Para terminar, deixo uma imagem da distribuição das candidaturas pelas diferentes forças integrantes da Nova Frente Popular, numa imagem do Le Monde.



A entrega de candidaturas termina hoje.


Porfírio Silva, 16 de junho de 2024
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14.6.24

É tramada, a falta de memória

11:01




O artigo de Carmo Afonso, hoje no Público, começa assim:
"Há dois discursos de António Costa que deveriam ter marcado o final do seu percurso político. Falo, primeiro, do discurso da noite de 5 de outubro de 2015. Nessa noite, António Costa atirou a toalha para o chão. Tinha perdido as eleições para a coligação que mais austeridade impôs ao país, quando se esperava que a vitória fosse sua. Parecia arrumado."

Não vou analisar a sequência do artigo, com o qual posso, genericamente, concordar. Mas este arranque descredibiliza a análise.

Desde logo, não se conhece nenhum discurso de António Costa na noite de 5 de outubro de 2015. As eleições legislativas desse ano foram a 4 de outubro e António Costa fez um discurso importante nesse 4 de outubro. E a 5 de outubro não discursou (já tinha deixado de ser presidente da câmara de Lisboa, onde durante anos discursara a 5 de outubro).

Mas, mais importante, ou Carmo Afonso não se lembra ou não percebeu patavina do discurso de António Costa na noite eleitoral de 4 de outubro de 2015. Para dizer que, nesse discurso, António Costa "atirou a toalha para o chão", a articulista teve a mesma dificuldade que Passos Coelho e Paulo Portas: não percebeu nada do que se disse e não percebeu nada do que esse discurso estava a colocar em andamento (tal como, aliás, o discurso de Jerónimo de Sousa).

Costa não se demitiu (mesmo dentro do PS alguns não perceberam o que isso queria dizer: no dia seguinte Álvaro Beleza manifestava disponibilidade para se candidatar à liderança do PS).

Costa explicou a Passos e Portas que o quadro político tinha mudado ("a coligação tem de perceber que há um novo quadro").

Costa deu a si próprio e ao PS uma tarefa em consequência do resultado eleitoral: o PS vai "garantir que a vontade dos portugueses não se perca na ingovernabilidade".

Tudo vinha na sequência de uma declaração que António Costa tinha dado ao Expresso antes do encerramento da campanha eleitoral: o PS não vai viabilizar um governo minoritário da direita.

Na altura, poucos perceberam. Alguns demoraram algumas semanas a perceber. Nunca pensei que, passados todos estes anos, ainda alguém não tenha percebido: não o que aconteceu depois, nas mesmo o que se disse naquela noite de 4 de outubro de 2015.

É bem certo que não basta ouvir para entender.




Porfírio Silva, 14 de junho de 2024
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17.4.24

Memórias Minhas, de Manuel Alegre




Há dois dias (15 de Abril, segunda-feira) foi a apresentação de Memórias Minhas, de Manuel Alegre. Ontem publiquei, no Acção Socialista Digital, um texto sobre a sessão e sobre o livro. Fica aqui, para registo.

***

Não é – ou, pelo menos, não é apenas – por ser o mais recente livro do Presidente Honorário do Partido Socialista que merece aqui destaque, no órgão informativo oficial do Partido, o lançamento de Memórias Minhas, de Manuel Alegre (nas Publicações Dom Quixote).
A obra Memórias Minhas, de Manuel Alegre, foi apresentada ontem, ao fim da tarde, na Fundação Calouste Gulbenkian, numa sessão onde foram produzidas intervenções, sobre a obra literária e cívica do Autor, por António Feijó (Presidente da FCG), Guilherme d’Oliveira Martins, Isabel Soares e Jaime Gama. A encerrar a sessão, o Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, discursou e condecorou Manuel Alegre com a Grã-Cruz da Ordem de Camões. Manuel Alegre agradeceu a distinção, que disse ser uma surpresa, e afirmou ser esta, de todas as condecorações que recebeu, “aquela que mais fundo me toca”, “dada a minha veneração de Camões, dado o facto de Camões estar sempre presente em mim e estar sempre presente em tudo o que escrevi."
De acordo com Manuel Alegre, Memórias Minhas foi escrito como o título indica, radicalmente: de memória, de memória mesmo, de memória apenas, sem recurso a quaisquer apontamentos ou documentos. Faz justiça ao facto de o autor, na sua vida cívica e política, ter continuadamente chamado a atenção para a importância da memória para a nossa vida coletiva, da necessidade de alimentarmos de memória a inteireza da nossa pertença ao mundo.
O livro traça as raízes históricas profundas do empenhamento cidadão do autor, incluindo os liberais do princípio do século XIX, desenhando a diversidade de pertenças políticas e sociais dos seus antepassados. E vem, também e principalmente, enriquecer o património da nossa vida pública por densificar o conhecimento disponível acerca das décadas mais recentes da nossa vida como povo. Antes e depois de Abril, em campanhas decisivas como a de Humberto Delgado, na sua passagem pelo PCP e na saída provocada de forma mais imediata pela não condenação da invasão soviética da Checoslováquia em 1968, na guerra colonial, no exílio, na prisão, na adesão ao PS, na luta contra o desvio gonçalvista que arriscou levar a revolução para fora do seu impulso democrático original, na camaradagem com Mário Soares e nos momentos de aproximação e afastamento político, na crítica à Terceira Via e à tentação do socialismo democrático pelas teses neoliberais, na voz que falava de Argel pela rádio quando não podia falar cá e na voz que representou sempre uma certa ideia de esquerda dentro do PS, no militante que nunca deixou de ser e contudo protagonizou um movimento de cidadãos que passava ao lado do PS e às avessas com algumas orientações do PS, … são inúmeros os episódios que merecem ser revisitados, em mais uma perspetiva agora exposta nesta obra.
A obra contribui, também, para a nossa compreensão da personalidade política e literária de Manuel Alegre. Não tanto por incluir novidades extraordinárias acerca de factos, mas especialmente por nos abrir um pouco a janela da compreensão do modo como Manuel Alegre vê Manuel Alegre. Jaime Gama, na brilhante oração que fez na sessão de apresentação do livro, disse isso de forma particularmente profunda – e também talvez um pouco provocante – ao afirmar que Manuel Alegre escreve o romance da sua própria vida. A verdade é que, seja ao contar episódios da sua vida pessoal e familiar, seja ao focar a sua escrita em episódios da grande história contemporânea de Portugal, este livro é nitidamente obra de um grande escritor.
Aprecio, particularmente, a forma como Manuel Alegre assume que política e poesia são partes inseparáveis da sua vida, do seu modo de ser, do mundo que lhe faz sentido. Ser poeta pode ser, e no caso de Manuel Alegre é, uma forma de olhar para o mundo que não se esgota nas suas palavras nos seus poemas. Ainda numa parte inicial do livro, essa questão é apresentada em referência a sua tia-avó Maria do Carmo, que “ainda eu não tinha escrito nenhum verso, já ela, referindo-se a mim, dizia ‘o nosso poeta’” (p.28).
Há, de qualquer modo, muito em Memórias Minhas para nos dar que pensar em termos políticos, sem que possamos desligar-nos da poesia do poeta. Nambuangongo é uma referência para quem conheça um pouco da obra de Manuel Alegre. Entretanto, é-nos contado que, a primeira vez que ficou em Nambuangongo, o autor dormiu no quarto de António Arnaut, que tinha na parede duas frases, uma de Fidel Castro e outra do Papa João XXIII. A de Castro rezava assim: “Nem Liberdade sem Pão, nem Pão sem Liberdade” (p. 109). Confesso que não conhecia essa frase de Fidel Castro, e lamento que o próprio líder da revolução cubana não tenha sido fiel a tal pensamento. De qualquer modo, segundo Alegre, foi a primeira vez que falaram de “socialismo em liberdade”. E a liberdade sempre foi uma bússola para o autor de Memórias Minhas, além de ser, também, um compromisso permanente do Partido Socialista.
O que é mais marcante num livro de memórias, quando as memórias são significativas para além do círculo do próprio autor, é que as memórias não são vidas passadas. As memórias fazem as vidas presentes. Há um momento onde, literariamente, isso é expresso, de forma particularmente bela, por Manuel Alegre. Está a contar (p. 35) um período em que, ainda adolescente, viveu em Lisboa com parte da família, mas tendo o pai ficado no Norte. E diz onde viviam em Lisboa. “Morávamos na Rua Padre António Vieira, nº 1, à esquina da Castilho, em frente ao Parque Eduardo VII. A mesma rua onde hoje mora o meu amigo Jorge Sampaio, ex-Presidente da República.” Não respigo este momento pela circunstância de eu próprio viver há bastantes anos nesse mesmo recanto de Lisboa, tendo também memórias vivas – e muito saudosas – da vizinhança com Jorge Sampaio. É que, vejam bem a forma extraordinariamente literária, e poética, como Alegre diz. Em 2024, tendo Jorge Sampaio desaparecido do nosso convívio há alguns anos, Manuel Alegre diz que Jorge Sampaio está lá. Vive lá. Nós temo-lo ali. E assim se diz, tão brevemente e sem adorno nenhum, algo tão belo e tão profundo acerca das nossas vidas e das nossas memórias.
Manuel Alegre é um amante de Portugal. Mesmo quando a sua pátria era diferente da pátria dos opressores. A resistência é em si mesmo uma pátria. Eis uma ideia central neste livro. E uma ideia que ajuda a compreender o seu autor. Um autor que correu os riscos inerentes. Como disse, ontem, na apresentação: “Não me precavi.” Precisamos mais de cidadãos assim.
 


Porfírio Silva, 17 de Abril de 2024
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12.4.24

Não confunda espelhos com janelas, Sr. Primeiro-Ministro!





O editorial de hoje do Acção Socialista Digital, que assino na qualidade de diretor do órgão informativo oficial do PS, é uma reflexão focada no debate do programa do XXIV Governo Constitucional, que decorreu ontem e hoje na Assembleia da República. Para registo, deixo-o aqui transcrito.

***

Não confunda espelhos com janelas, 

Sr. Primeiro-Ministro!


O Professor Alexandre Quintanilha – um renomado cientista que dedicou nos últimos anos muito do seu tempo à política ativa, tendo presidido, indicado pelo PS, mas com aprovação geral, à Comissão de Educação e Ciência da Assembleia da República – usa frequentemente uma adaptação de uma frase cunhada originalmente por Sydney J. Harris, que era sobre educação e, nesta nova criação, é sobre conhecimento: “A principal função do conhecimento é transformar espelhos em janelas”.


Transformar espelhos em janelas, seja propósito da educação, seja propósito do conhecimento, é muito relevante para a convivência democrática em sociedades complexas, onde as diferenças de condições de vida, as diferença de interesses (mesmo considerando apenas os interesses legítimos), as diferenças de opinião e de projeto têm de caber no plano mínimo da cidadania e do respeito pela dignidade do ser humano – e qualquer esquecimento dessa realidade fará perigar o pluralismo sem o qual as sociedades abertas sucumbem. Transformar espelhos em janelas – transformar o fechamento em abertura – terá de ser, então, também, um caminho a fazer pela ação política.


Ora, o debate do programa do XXIV Governo Constitucional, ontem e hoje na Assembleia da República, mostrou um executivo, e, principalmente, um primeiro-ministro que, ao invés do que seria necessário à República, confunde espelhos com janelas. E prefere os espelhos às janelas. Em lugar de entender o valor do empenhamento do Partido Socialista numa oposição responsável e construtiva, quer abusar desse compromisso institucional e exige ao PS que seja uma oposição domesticada. Em lugar de entender que a atitude do PS é exigente, para si próprio e para o Governo, porque requer maturidade e capacidade de compromisso, permanente e sempre renovada, imaginativa e concreta, adota uma soberba autossuficiente para a qual não tem votos. Em lugar de entender que os portugueses que votaram no PS têm tanto direito a serem representados no parlamento como os portugueses que votaram na AD (ou nos outros partidos parlamentares), pretende que os resultados eleitorais só relevam para os deputados que suportam o governo e esquece as obrigações de representação dos deputados que foram eleitos com outros programas. Todas as janelas de diálogo que estavam em condições de serem abertas foram, com estrondo, fechadas por Luís Montenegro.


O primeiro-ministro, desde o primeiro momento do debate, tentou fechar as janelas do diálogo a que só pode estar obrigado, sendo um governo minoritário, e tratou de substituir janelas por espelhos – usando o espelho onde se olha para, sem se espantar por o seu aparente interlocutor ter exatamente a sua face, fingir que dialoga. Fala consigo mesmo e diz que dialoga. Afinal, o debate acabou com o número dois do governo, o Ministro de Estado e dos Negócios Estrangeiros, a desmentir o número um da equipa. Aquilo que ontem, a abrir, Luís Montenegro dizia que era sinal de diálogo – escolher, unilateralmente, avulsas propostas dos outros para embelezar o seu programa de governo – veio Paulo Rangel, hoje, a fechar, dizer que não podia ser feito em diálogo, porque sobre programa de governo não se dialoga. A contradição vale como atestado da ineficiência da sobranceria que a AD julga, erradamente, que compensa os votos que não teve.


De forma bem diversa, e contrastante, o Secretário-Geral do PS, Pedro Nuno Santos, mostrou uma compreensão clara e aguda do que está em causa, em termos de preservação da República democrática: “Contam connosco para defender o regime, a democracia e a Constituição. Não contam connosco para o retrocesso económico, social e cultural.” E também uma compreensão nítida e lúcida do que é ser oposição responsável: “Não é só o governo que tem iniciativa, o parlamento e os grupos parlamentares também têm. Não é só o governo que quer que lhes aprovem as suas iniciativas, os grupos parlamentares também querem.” E anunciou, de imediato, cinco iniciativas parlamentares, que correspondem a compromissos eleitorais do PS. Assim, pela voz do seu secretário-geral, o PS mostra que funciona com janelas: coloca o seu contributo em cima da mesa e vai a jogo para que haja efetivo diálogo e para que saibamos quem é capaz de entendimentos concretos e palpáveis, para lá da retórica.


Ficamos – fica o país – à espera que o Primeiro-Ministro deixe de falar apenas consigo mesmo ao espelho e se chegue à janela do verdadeiro diálogo.


Porfírio Silva, 12 de Abril de 2024
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10.4.24

Acerca do conceito de família natural como arma de guerra

09:46



Os animais sem instituições e com culturas menos sofisticadas que as humanas é que têm "famílias naturais". Na sociedade dos humanos pouca coisa é regida pela "natureza" bruta- e isso é mesmo uma característica essencial da civilização. Libertados das cavernas, podemos assumir muito mais graus de liberdade nas escolhas de vida. Houve um tempo em que era quase consensual que isso era bom. Agora, alguns voltaram ao animalismo do "natural".

Sejamos honestos: não faltam exemplos de conservadores que não são trogloditas e que aceitam a liberdade das pessoas viverem a sua vida fora de "princípios" abstractos que são mantidos apenas por ideologia de controlo social. O que se passa hoje é outra coisa: há cada vez menos conservadores, e/ou pessoas da direita democrática, que tenham coragem para contrariar os reaccionários que berram muito alto e querem tomar o monopólio desse sector da opinião.

Não deixa, pois, de ser oportuno lembrar que, em matéria de liberdades individuais na escolha da forma de vida que cada um acha melhor, já houve líderes dos partidos de direita que não tinham as visões retrógradas que encontramos hoje como ferramenta central de certas estratégias políticas.



«Aliás, 1980 foi para Sá Carneiro, de facto, o ano do seu grande combate, como Homem, para lá do político, que, ironicamente, se tornou numa batalha política.

Os valores e as convenções sociais eram, então, em Portugal, ainda muito marcadamente conservadores, principalmente no universo de que Sá Carneiro era originário, bem como da sua base de apoio (de direita, católica). E o simples facto de o primeiro-ministro viver maritalmente com uma mulher, Snu Abecassis, que não era aquela com que estava ainda casado pela Igreja, foi um escândalo e considerado, por muitos, como uma afronta à moral e à religião.

Por que razão não se divorciara então?

Apenas porque a lei portuguesa na época não permitia o divórcio contra a vontade de um dos cônjuges, antes de decorridos seis anos sobre a separação de facto, como era o caso (a primeira mulher do político opôs-se ao divórcio), tendo Sá Carneiro de esperar ainda mais dois anos até o poder fazer (Snu estava já divorciada do seu primeiro marido).

Apesar disso, ao contrário do que os seus opositores poderiam esperar e mesmo contra a opinião de alguns dos seus apoiantes, o primeiro-ministro assumiu publicamente Snu como a sua mulher, que esteve sempre presente ao seu lado em todos os atos públicos mais importantes, oficiais e protocolares. Ou, pelo menos, em quase todos.»


A propósito da mesma circunstância, há outro texto que explica bem o caso. É o artigo de Fernanda Câncio, "Que diria Sá Carneiro?", no DN de 4 de setembro de 2009, de onde retiro este excerto:

«Portuense, católico, oriundo de uma família abastada, Francisco Sá Carneiro era casado e pai de cinco filhos. Em 1976 conheceu a editora Snu Abecassis, num almoço com a poetisa e então deputada do PPD Natália Correia, que teria anunciado ao político ir-lhe apresentar a mulher da sua vida.

Snu, mãe de três filhos, era divorciada. Sá Carneiro apaixonou-se e foi viver com ela, na casa dela, com os filhos dela. Um dos seus filhos acompanhou-o. A mulher de Sá Carneiro recusou dar-lhe o divórcio, que então, pós-revisão da Concordata (efectuada em 1975), era já possível em casamentos católicos. Sá Carneiro e Snu passaram pois a viver em união de facto. Numa sociedade em que os divorciados eram olhados de lado e as aparências de "respeitabilidade" e moral católica mantidas laboriosamente, um político de centro-direita, que fez em 1979 uma aliança com o democratas-cristãos de Freitas do Amaral e o Partido Popular Monárquico de Gonçalo Ribeiro Teles e com ela ganhou as eleições, não só vivia numa situação que muitos qualificavam de "pecado" como teve a extraordinária coragem, vistas as circunstâncias, de a assumir. Na época em que Sá Carneiro foi líder partidário e primeiro-ministro a regra não era, como hoje, a da abjecta devassa pública das vidas privadas por publicações especializadas nessa intrusão que têm o despudor de invocar para esse efeito o direito à liberdade de expressão; a regra era a de olhar para o outro lado - desde que, bem entendido, "as coisas fossem feitas com discrição". Sá Carneiro não quis ser discreto, quis ser directo. Quis mostrar que o seu conceito de união e de família rimava com a sua liberdade e não dependia da aprovação dos outros. Consciente do risco que corria e do caldo cultural em que se movia, confrontava os seus colaboradores com a sua opção, tornando claro que trabalhar com ele era aceitá-la . Chegou mesmo a dizer, em 1977: "Se a situação for considerada incompatível com as minhas funções, escolherei a mulher que amo."»


Família "natural"? Não. É mais retrocesso artificial. Oportunismo eleitoral. A política como teatro de guerra. É isso que vemos.


E temos de recusar. Combater. Contrariar.



Porfírio Silva,10 de Abril de 2024
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