17.11.08

10 Teses sobre a crise da avaliação docente



Tenho dedicado algum tempo nos últimos dias a escrever sobre as mais recentes evoluções do processo da avaliação dos professores. A escrever na blogosfera, onde se reage de forma rápida e espontânea a notícias, a tomadas de posição, a provocações. Onde, necessariamente, somos polémicos, às vezes agressivos, onde nos irritamos com o que os outros dizem e irritamos os outros com o que dizemos. Onde cada comentário é fragmentário e às vezes parece o que não é. Onde somos sempre lidos como simplistas, e/ou tendenciosos, e/ou injustos. Assim sendo, e porque não prescindo da minha condição de cidadão, e de opinar sobre o que me parece importante para o país, mas não gosto que tomem o meu dedo mindinho pelo meu corpo todo, decidi tomar a responsabilidade de organizar as minhas ideias gerais sobre esta questão num único texto. Longo. Que agora aqui deixo.

Nas 10 (pomposamente chamadas) teses, que se seguem, começo por abordar algumas questões que dizem respeito à concepção da própria democracia que subjaz às minhas posições nesta matéria, opino sobre algumas questões de método que penso deveriam ser esclarecidas neste debate – e termino com algumas sugestões quanto ao futuro deste debate nacional. Os subtítulos têm carácter meramente editorial: as "teses" devem ser lidas como um todo.

Peço aos que o leiam que não o julguem uma opinião sobre "os professores" ou sobre qualquer grupo. Mas que também não pretendam que alguém esteja acima da crítica. É uma opinião sobre um problema. E só vale a pena falar de problemas sérios com frontalidade.


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Democracia e participação

1. Os professores têm direito à contestação e à luta. Como todos os cidadãos. Isso não impede que, quanto à apreciação da legitimidade dos métodos, haja uma diferença entre defender direitos e liberdades fundamentais ou defender interesses especificamente profissionais. Certos métodos, mesmo extremos, podem justificar-se plenamente no primeiro caso: até a revolução é admissível. Mas os critérios serão outros para defender causas profissionais: o direito ao boicote, à desobediência, ao desrespeito pela lei, não encontra a mesma justificação neste caso. E essa desproporção de meios está a acontecer neste caso. O boicote orquestrado ao funcionamento normal das escolas, em desafio à legalidade e mesmo aos acordos firmados livremente, incluindo o clima de insulto generalizado, é desproporcionado como meio de reivindicação profissional em democracia.

2. Os interesses profissionais dos professores, como de qualquer outro grupo profissional, devem poder ser objecto de negociação séria. O governo deve entender que a formação de uma solução para um problema tem mais hipóteses de sucesso se for negociada com os interessados. E essa participação é, para os profissionais envolvidos, parte dos seus direitos de cidadania. E esse valor é de primeira importância. Por isso mesmo: primeiro, isso implica direitos e deveres para ambas as partes. A negociação de má-fé, por exemplo praticada como técnica de gestão de calendário, foi usada neste caso e isso é criticável. E, segundo, nem todas as negociações podem ser bem sucedidas; algumas não devem mesmo ser bem sucedidas. Porque os poderes públicos têm obrigação de não ceder naquilo que julgam ferir o interesse geral; o governo será julgado, democraticamente, pelos seus juízos nessa matéria. Mas está no seu papel ao assumir esses juízos e governar em conformidade. É ilegítimo contrapor ao exercício da autoridade democrática um outro exercício, o da concertação social, como se esta pudesse anular ou substituir aquela.

3. Num Estado democrático, tal como o concebo, as corporações não têm um papel político de primeiro plano. Chamo corporações a grupos, de base sectorial incluindo "capital" e "trabalho", ou de base profissional, que pretendem tomar o poder de definir as regras de funcionamento de uma parte da sociedade ou de uma parte do Estado em função dos seus próprios interesses, fazendo-os prevalecer sobre os interesses legítimos de outros grupos. Neste caso concreto, alguns entendem que cabe aos agentes educativos definir as políticas para a escola, falando como se o governo fosse um intruso na escola e como se a educação fosse dos professores. Numa sociedade democrática aberta, os grupos existem, e devem existir, e desempenham um papel no apuramento da opinião e das soluções, e podem ter variados níveis de autonomia na gestão dos assuntos que lhes concernem - mas, quando toca a questões de interesse geral, não podem definir "reservas territoriais" onde pretendam reinar com exclusão de todos os outros interesses e de onde queriam excluir a autoridade democrática representando o interesse geral segundo as leis da república. Em última instância, o interesse geral, avaliado pelos poderes públicos constituídos democraticamente, deve sobrepor-se ao interesse sectorial avaliado por grupos específicos.

4. A opinião democrática não é uma opinião técnica. Um mesmo problema de sociedade pode ser abordado a vários níveis e o nível técnico não pode legitimamente tentar eliminar o nível político. Assim, não é aceitável que alguns professores procurem desvalorizar as críticas à sua luta com argumentos do género: "vocês não sabem o suficiente do modelo para opinar". Isso equivale a uma tentativa de transformar um debate político num debate técnico - para depois monopolizar a opinião nesse debate ("ninguém sabe melhor do que os professores como as coisas se passam, logo nenhuma opinião pode contrariar a dos professores"). Para os termos do debate democrático, neste caso concreto, posso saber várias coisas sem entrar nos detalhes do modelo. Por exemplo. Nenhum modelo é perfeito, logo tentar eliminar um modelo por ele não ser perfeito equivale a tentar matar antecipadamente todos os modelos que venham a ser tentados. Mais: nenhum modelo pode ser aperfeiçoado apenas em teoria, pelo que é na prática que ele vai mostrar os ajustamentos necessários e, nunca passando à prática, nunca chegamos a apurar nenhum modelo. (“Faz-se caminho ao andar.”) Existindo estruturas de acompanhamento da implementação deste modelo, e não tendo os representantes dos professores investido em apresentar casos de dificuldade para os tentar resolver, faltaram a uma parte significativa das suas responsabilidades sociais e, quem assim age, indica que para si (não digo que seja para todos os professores) o problema não é "esta" avaliação, mas "a" avaliação - porque deixaram por mostrar o seu empenho num aperfeiçoamento progressivo e cauteloso. Estando acordado um calendário para, já em 2009, voltar a negociar sobre os resultados da primeira fase de implementação, os representantes dos professores, ao quebrar agora o diálogo, partindo agora para a recusa total, mostram que verdadeiramente acham que podem impor ao país a sua solução, só essa e mais nenhuma. Este debate é um debate democrático, não é um debate técnico: tentar fazer dele um debate técnico para afastar os discordantes é pouco democrático. Os professores devem ao país uma participação cidadã responsável nos mecanismos institucionais criados para aperfeiçoar o modelo de avaliação.


A avaliação docente na escola democrática

5. O que está essencialmente em causa é a própria existência de avaliação com consequências. Sublinho: com consequências. Afirmar que "sempre houve avaliação" é um mero jogo de palavras. (E processar o PM como "mentiroso" por causa disso é um sinal de "falta de rins" no debate político democrático.) A avaliação "à antiga" tendia a colocar a esmagadora maioria dos professores no mesmo patamar e tinha uma influência muitíssimo insuficiente em termos de progressão na carreira segundo o mérito e o desempenho. Ligar fortemente a avaliação à progressão diferenciada na carreira é essencial para que a avaliação tenha significado efectivo na vida das escolas. A pretensão de que todos os professores possam atingir o topo da carreira, aquilo que Ferreira Leite chama "não haver quotas administrativas", é um incentivo a voltar às piores práticas burocráticas da administração. E é uma exigência absurda comparada com qualquer outra classe: era como se todos os militares pudessem ser generais (ou marechais?) e todos os juízes pudessem ter um lugar no Supremo, ou todos os professores universitários pudessem ser catedráticos. Essa exigência é um absurdo, e essa exigência é um factor decisivo nas verdadeiras motivações para a contestação dos professores. Uma classe docente dinâmica terá de aceitar mais diferenciação, assente na avaliação do mérito e do esforço, ultrapassando o quadro mental que julga sempre preferível o igualitarismo burocrático.

6. A cultura de avaliação é um elemento fundamental da cultura profissional e da cultura de organização. A desvalorização deste tópico reflecte o atraso da cultura organizacional predominante no nosso país (tanto no sector privado como no público). A expressão tão ouvida nestes dias – “Deixem-nos ser professores” – quer dizer basicamente isto: o nosso trabalho é ensinar, não é avaliar os colegas, a avaliação é desperdiçar tempo que seria útil a ensinar por causa de coisas inúteis que são laterais à nossa função. Mas essa ideia está radicalmente errada: a escola é uma organização, os professores trabalham em equipas e, em qualquer organização e qualquer equipa deve haver cooperação e, para isso, parte das tarefas essenciais são precisamente organizativas. Como, vitalmente, é o caso da avaliação. É por causa de o exercício avaliativo ser intrinsecamente inerente ao exercício profissional qualificado que a avaliação interna pode eventualmente ser complementada, mas não substituída, por uma avaliação externa. Por outro lado, a confusão perniciosa entre relações profissionais e relações pessoais, misturada com uma concepção paternalista das relações de trabalho, alimenta o medo da avaliação rigorosa. Escrever que “a avaliação fomenta problemas interpessoais entre professores” (Daniel Sampaio, Pública, 16/11/08) é tentar infantilizar os professores, como se eles fossem incapazes de fazer da avaliação um exercício profissional (como fazem tantos outros profissionais altamente qualificados) e só pudessem cair na armadilha de fazer da avaliação profissional uma questão de conflito pessoal. Avaliar-se, avaliar as equipas em que participa, participar no exercício colectivo de avaliação, são componentes centrais do exercício profissional qualificado em organizações focadas em missões.

7. A desestabilização radical da escola pública, nos termos em que tem acontecido ultimamente, poderá tornar-se a breve prazo na justificação há muito esperada pelos que pretendem levar avante um forte movimento de privatização da escola pública. A percepção, por parte da opinião pública, de que a escola pública foi tomada por um grupo profissional que coloca os interesses gerais a reboque de interesses particulares, motivada pela preservação de condições profissionais de que mais ninguém goza, poderá ser uma poderosa alavanca para a promoção dos interesses privatizadores, que a prazo tenderiam a acentuar o papel da escola como mecanismo de reprodução das desigualdades sociais prevalecentes. E, na verdade, quando se chega a uma situação de bloqueio institucional, quando se esgotam as vias de modificação pacífica de um estado de coisas que não satisfaz, a tentação da “bomba atómica” pode prevalecer. Contudo, a reacção adequada não é reforçar o carácter centralista e uniformizador do sistema. É urgente colocar em novos moldes, decididamente, a questão da autonomia das escolas, centrando essa autonomia na missão educativa, na competição pela qualidade para todos (e não só para os afortunados), na inserção local – e definindo desse modo o conteúdo da responsabilização, da avaliação e dos prémios ao esforço.

Para uma negociação verdadeira

8. Uma negociação que aspire ao sucesso (acordo substancial e sustentável) tem de centrar-se nos verdadeiros problemas que preocupam as partes – e não restringir artificialmente o cardápio dos problemas ou das soluções, porque isso empurra as partes para posições de fachada, destinadas apenas a evitar adiar um prejuízo temido. Dotar as negociações de um cardápio de verdade pode implicar reabrir dossiers considerados fechados, por muito que isso desagrade ao ME. Por exemplo, a percepção de que o preenchimento dos lugares de professor titular deu lugar a injustiças, seja em muitos ou poucos casos, é um factor de envenenamento de todas as situações conexas. Questões ligadas à autoridade dos professores na escola, por exemplo, podem também ter de ser invocadas. Pode ser necessário alargar o âmbito da negociação actual, de forma a colocar em jogo todos os factores que realmente pesam nas posições de fundo das partes, condição indispensável para uma negociação em bases verdadeiras.

9. Uma negociação efectiva só é possível entre verdadeiros representantes das posições em presença. Na actual situação, a unidade dos professores é em larga medida uma unidade pela negativa: a unidade dos professores contra o ME esconde reais e profundas divergências, no seio da classe, acerca da avaliação propriamente dita e acerca do próprio modelo de escola que convém ao país. Continuar a conceder o exclusivo da negociação aos sindicatos, quando há sectores dos professores que não se reconhecem neles, é insusceptível de facilitar uma viragem positiva que interesse a todas as partes. O quadro convencional e legal não facilita a mudança imediata desta realidade, mas é preciso encontrar alguma forma de fazer emergir representações das diversas posições que existem no seio da classe. A crise do modelo tradicional de sindicalismo caiu com força em cima desta negociação – e ela não terá sucesso sem atender a essa questão que só aparentemente é instrumental.

10. Uma negociação efectiva só pode ocorrer entre propostas alternativas que representem as diferentes visões de forma suficientemente global para tirarem da sombra todos os pressupostos negociais. Uma negociação assimétrica, em que uma das partes assume todo o risco da proposição e as outras partes só têm de contrariar as propostas apresentadas, está condenada a ser uma negociação meramente táctica: uma guerra de trincheiras, concentrada apenas em minorar perdas, incapaz de colocar em cima da mesa o essencial – e, portanto, insusceptível de gerar um acordo genuíno, sólido, sustentável e duradouro. Uma negociação efectiva entre o ME e os professores tem de centrar-se em alternativas coerentes, articuladas, que representem diferentes visões globais, e que apareçam à luz do dia para serem escrutinadas – e só essa negociação poderá ser leal e produzir resultados.