29.1.10

ainda o governo de Assembleia



O Professor Carlos Blanco de Morais, consultor de assuntos constitucionais do Presidente da República, publicou no último número do Expresso (último em data, claro) um artigo intitulado “O poder legislativo de um governo minoritário”. O artigo, apresentando-se como uma reflexão acerca da geometria variável de um sistema semipresidencialista como o nosso, acabava por ser uma espécie de grito de revolta contra o uso da expressão “governo de Assembleia”. A expressão tem sido usada pelos sectores pró-governamentais para caracterizar o comportamento recente do nosso Parlamento, em actos considerados hostis à aplicação do programa do governo legítimo, embora minoritário, que temos. Dada a insistência com que “gente de Belém” tem interferido no debate político-partidário, ao mesmo tempo que Cavaco Silva mantém o estilo de se pretender acima da política (atitude que em democracia devia ser considerada pornográfica), o artigo merece-nos aqui (apesar de não sermos constitucionalistas, nem sequer juristas, nem tão-pouco politólogos) breves reflexões.
Primeiro, o artigo do consultor de Cavaco foge de elaborar mais solidamente sobre as responsabilidades presidenciais na situação visada (governo sem apoio parlamentar maioritário). É estranha essa fuga, uma vez que se começa por anunciar uma reflexão sobre o semipresidencialismo. Como já defendi aquando do governo de Santana Lopes que Sampaio empossou, às vezes o PR não tem grande escolha, outras vezes tem. Quando tem escolha, torna-se o PR mais directamente co-responsável pelo governo que resulta dessa escolha. Parece-me isto incontornável na actual situação. Cavaco devia assumir que a sua escolha (permitir ao PS formar governo minoritário, sem tentar qualquer outra solução) exige um certo comportamento do PR apenas para manter o regular funcionamento das instituições. O PR podia ter tentado outra solução: não o tentou, ele lá sabe porquê, mas deve assumir as suas opções. Era difícil? Era, mas os titulares não estão lá só para as facilidades. O artigo, nesta questão, encolhe-se todo: parece que não é vinha que interesse a esta vindima. Para reflexão sobre o semipresidencialismo de geometria variável, parece curto por causa dessa omissão.
Segundo, o artigo paira por cima de um problema que não ataca: a distinção entre o legislativo e o executivo. Em certos países essa distinção está muito marcada, em Portugal não está. Já ouve anteriormente recursos para o Tribunal Constitucional acerca da "invasão" dos poderes do executivo pelo legislativo (não sei citar os casos concretos) e o TC não acolheu as pretensões acerca da ilegitimidade da suposta invasão. Deu sopa, disse que não havia problema nenhum. A mim parece-me que esse é mais um dos aspectos em que o constituinte foi demasiado optimista: os constituintes desenharam um sistema que só funciona "calmamente" com maioria absoluta, quando ela é difícil de alcançar.
Lateralmente, em terceiro lugar, o constitucionalista-consultor-de-Cavaco concede, sem pejo, que o Parlamento é, quando haja maioria absoluta, uma câmara de ressonância do PM. E parece que acha isso normal. Ora, eu vejo nisso, precisamente, um problema maior. Por mim nunca daria isso como um pressuposto não problemático. O que, talvez obviamente, um consultor de Cavaco tende a achar normal, é algo que eu tendo a ver como uma doença crónica do sistema.
Por último, um ponto mais filosófico, mas de pouco alcance político imediato: a mistura de escalas temporais entre o legislativo e o executivo tem como consequência, se o legislativo se mistura em decisões de curto prazo, que a Assembleia perde a grande vantagem da representação. Os representantes podem pensar no médio (e até no longo) prazo, não têm de responder de imediato pelas suas escolhas, o que é necessário porque nem todas as decisões são avaliáveis no curto prazo. Uma democracia directa só seria capaz de tomar decisões com efeitos positivos visíveis a curto prazo e a democracia representativa ajuda a corrigir isso. Mas não num "governo de assembleia". Mas isso é uma categoria de problemas que não seriam, de qualquer modo, chamados à colação num artigo de combate político do PR por interposta pessoa. Como, em minha opinião, é o caso.