E antes que Settembrini pudesse chamá-lo à ordem, Naphta começou a falar de piedosos excessos de caridade que a Idade Média conhecera, de casos assombrosos de fanatismo e fervor nos cuidados prestados aos doentes: as filhas de reis haviam beijado as chagas malcheirosas dos leprosos, expondo-se voluntariamente ao contágio da lepra e chamando rosas às úlceras assim contraídas; haviam bebido a água na qual acabavam de banhar-se enfermos purulentos e declarado que nada no mundo lhes sabia melhor.
Settembrini fez menção de ter vontade de vomitar. (...) E a todos aqueles horrores opôs a higiene, a reforma social e os grandes feitos da ciência médica.
Mas essas coisas honrosas e burguesas, replicou Naphta, teriam sido de pouca utilidade para os séculos a que acabava de referir-se; teriam servido de bem pouco, tanto aos doentes e miseráveis como aos saudáveis e felizes que se tivessem mostrado caridosos menos por piedade que pela salvação da alma. Porque uma reforma social coroada de êxito teria privado os afortunados do meio mais importante de que dispunham para justificar-se, e os outros, do seu estado sagrado. A manutenção constante da pobreza e da enfermidade realizara-se, portanto, no interesse de ambos os partidos e esse conceito continuaria sustentável enquanto fosse possível defender o ponto de vista puramente religioso.
Thomas Mann, A Montanha Mágica