8.11.08

crescer atrás da cortina de ferro, de Peter Sís


O álbum que hoje nos faz falar é de Peter Sís, que escreve e desenha The Wall, Growing Up Behind the Iron Curtain, no título do original norte-americano de 2007, publicado pela Frances Foster Books. A edição que possuo é italiana, de Setembro de 2008, na editora Rizzoli.





Peter Sís cresceu na Checoslováquia comunista e apresenta-nos mais uma obra da vaga de obras de BD que pensam e divulgam a história contemporânea recente a partir dos olhos de uma criança. Em 1982, Peter Sís foi a Los Angeles para trabalhar num filme para o governo checo e, uma vez lá, optou pelo exílio - como muitos outros foram fazendo ao longo da história.





A história que nos conta, apesar de tentar partir do olhar de uma criança, é densa - e o autor faz alguma coisa para nos levar para mão, fornecendo vários elementos de contexto. Não é, contudo, história que um adolescente desprevenido possa compreender cabalmente como quem lê "histórias aos quadradinhos" ...





Graficamente, o que temos como elemento básico são desenhos a preto e branco, sugerindo uma atmosfera cinzenta - política, cultural e socialmente cinzenta. Muitos dos desenhos têm pormenores a uma única cor, o vermelho - funcionando o vermelho quase sempre como marca do poder comunista, por exemplo nas bandeiras, nos símbolos (foice e martelo, estrela), no lenço ao pescoço da "farda" dos pioneiros. Dado este ponto de partida, os poucos elementos fortemente coloridos são marcas de ruptura, normalmente festiva ou pelo menos "agitada", de momentos em que a contestação às normas imperantes é vivida como um gozo suplementar da vida. A cor é o outro lado da vida (do muro): "tudo o que vem do Ocidente parece colorido". A cor é também o que distingue os desenhos que Sís faz desde miúdo.





As duas páginas inteiras que reproduzimos de seguida, constituindo uma única imagem, aparecem na narração da Primavera de Praga. A Primavera de Praga foi, em 1968, uma tentativa do partido comunista local para seguir uma via democrática para o socialismo, afastando-se da ortodoxia soviética. Esta imagem, com esse colorido pop, e por contraste com o preto e branco com pormenores de vermelho do grafismo dominante, dá uma conotação fortemente festiva a essa possibilidade de liberdade, possibilidade que foi frustrada pela invasão dos tanques do Pacto de Varsóvia, o bloco militar do leste comunista da Europa liderado pela União Soviética.





A representação dessa invasão segue o plano gráfico dominante: preto e branco com o vermelho do poder a salpicar: neste caso os elementos vermelhos são os tanques invasores espalhados pela cidade como um vírus que toma conta de um corpo.





Esta obra de BD não é de leitura imediata para quem esteja demasiado alheado do contexto da época e de algumas referências históricas. Vemos abaixo a referência a um concerto dos Beach Boys, de uma pequena tournée que fizeram por aquelas bandas alguns meses depois da invasão antidemocrática, a qual teve o condão de ainda dar um pequeno sopro à esperança de que talvez não se tivessem fechado todas as portas.





Nos desenhos que se seguem, que são parte de uma sequência um pouco maior, há uma luta entre o preto e branco do grafismo dominante, representando o cinzentismo do regime, e a cor como representante da expressão que alguns tentaram que fosse livre. Os grafitos que os anónimos tentam pintar nas paredes são coloridos e as peripécias do confronto com a polícia - entre pintar e apagar, e voltar a pintar - são um ir e vir entre a sobrevivência e a extinção da cor.










A queda do Muro de Berlim, datada de 9 de Novembro de 1989, é o fim desta história. Uma história que, neste álbum, passa pela insurreição popular na Hungria em 1956, esmagada pelos "aliados" soviéticos; pela construção do próprio Muro em 1961; pela crise dos mísseis em Cuba em 1962; pela visita do Presidente Kennedy dos EUA a Berlim em Junho de 1963 e pelo assassinato desse mesmo presidente em Dallas mais tarde nesse mesmo ano; pelo papel de Alexander Dubcek, líder do partido comunista checoslovaco em 1968 e verdadeiro herói da Primavera de Praga, quando "tudo parecia possível"; depois do fim, ou depois do princípio do fim, pelos estudantes checos Jan Palach e Jan Zajic que se imolaram pelo fogo no centro de Praga "para despertar a nação da letargia"; pela Carta 77, o grupo dissidente formado em 1977 e que contaria com alguns dos heróis da futura revolução democrática. A queda do Muro de Berlim é o fim desta longa e amarga história, um fim que não é só uma data, mas um conjunto de datas para várias revoluções no leste europeu, assinaladas junto a estes desenhos (mas aqui não visíveis). É um fim apropriado para uma narrativa que não é só uma história da Checoslováquia recente - mas uma história de uma parte importante da Europa e das suas vicissitudes num período de cerca de meio século.

É um pouco pena que a narrativa seja, do ponto de vista ideológico, um pouco unilateral - como se todas as desgraças do mundo tivessem a cor vermelha. Por exemplo, logo no início dá-se como definição de "comunismo": um sistema de governo em que o Estado controla toda a actividade social e económica. Mas o regime fascista nazi também era isso, pelo que a definição não faz o trabalho de uma definição. Além disso esquece-se que a história do leste europeu é também a história das derrotas que sofreram certos sectores dos partidos comunistas que tentaram a via democrática. A "insurreição popular" na Hungria de 1956 tinha a cumplicidade da liderança comunista, que foi afastada por pressão e acção soviética. E o mesmo aconteceu na própria Checoslováquia com a Primavera de Praga. E, se é para fazer história, mesmo aos quadradinhos, talvez fosse bem não ver só certas coisas e esquecer sempre outras. Por outro lado, certas coisas que se denunciam como se fossem exclusivas das ditaduras comunistas - não o são. Ser obrigatório fazer parte da organização de juventude do regime, nós por cá também sabemos o que isso é (foi). O mesmo para as actividades da polícia política, da censura. Certas coisas até existem ou existiram em países democráticos, como a obrigatoriedade de hastear a bandeira nas festas oficiais (eu já vivi num país onde isso era assim e ninguém considerava repressivo).
Mas será justo fazer este tipo de críticas a uma obra de BD? Porque não, pergunto eu. A BD é coisa séria. Às vezes, como neste caso, está a apresentar uma visão da história recente, de uma história que ainda interessa muito à compreensão do presente. E, nesse caso, o rigor que se pode exigir é o que se exige a qualquer obra séria.





Como o autor escreve no posfácio: alguns terão dificuldade em compreender que as coisas eram mesmo assim. Estamos a falar de história recente, mesmo muito recente, e muito próxima geograficamente. É também por isso que livros destes são um serviço prestado à memória cívica. Mas parece que não têm muito público em Portugal... Ou há por aí edições que eu desconheça (o que não seria de estranhar, porque sou um mero leigo curioso)?