19.11.08

INSTITUIÇÃO, Maurice Merleau-Ponty



A Instituição, Manuel Botelho, 1985,
carvão sobre papel, colecção Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa
(clicar para aumentar)


A propósito do Colóquio Internacional de Filosofia e Ciências Humanas [CORPOS E SIGNOS], comemorando pela reflexão o centenário do nascimento de Claude Lévi-Strauss e de Maurice Merleau-Ponty, que vai decorrer entre amanhã 20 e 22 no Institut Franco-Portugais de Lisboa (Avenida Luis Bivar, 91; entrada livre; mais informações no sítio do IF-P) deixo aqui uma reflexão/relato sobre um texto de Merleau-Ponty que é um dos fundamentos filosóficos da investigação que actualmente desenvolvo em Robótica Institucionalista.

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Maurice Merleau-Ponty, em L’institution dans l’histoire personnelle et publique (1954), proporciona-nos um alargamento do horizonte filosófico de uma noção (“instituição”) que, se calhar, damos por adquirida (pensando em instituições sociais) e, desse modo, não consideramos com suficiente detença e proveito.

O que está em causa filosoficamente em (Merleau-Ponty 1954) é a consciência, ou, mais precisamente, na expressão que abre o texto: “a vida pessoal considerada como vida de uma consciência” (Merleau-Ponty 1954:33). E o que está no centro das propostas do filósofo face a essa questão é a recusa de uma consciência constituinte, recusa da ideia de que só descobriríamos no mundo aquilo que tivesse sido constituído pelas operações dessa mesma consciência.

O que se opõe a “constituição” é “instituição”, em várias dimensões: na relação do sujeito ao mundo, “há sujeito instituído e instituinte, mas inseparavelmente, e não sujeito constituinte”; na relação do sujeito ao outro, o outro não é a minha negação (não temos uma relação constituído/constituinte), mas eu projecto-me nele e ele em mim (uma relação instituído/instituinte); na relação do sujeito ao fazer, porque o fazer não é guiado pela eficiência pura, pelo dirigir-se directamente para certos fins, mas comporta o valor simbólico que tem para os outros; na relação do sujeito ao tempo: nem posso abarcar todo o passado, nem posso projectar todo o futuro, mas não estou fechado no meu instante e posso estabelecer pontes de ligação no tempo, participando no que foi instituído e participando nesse instituir (Merleau-Ponty 1954:34-36).

Propondo-se introduzir directamente a noção de instituição, Merleau-Ponty escreve: “instituição significa estabelecimento numa experiência (ou num aparelho construído) de dimensões (no sentido geral, cartesiano: sistema de referência) em relação às quais toda uma série de outras experiências terão sentido e formarão uma sequência, uma história” (Merleau-Ponty 1954:38). Pela instituição o sentido deixa de ser da minha interioridade: o sentido é depositado, não como resíduo mas como produtividade. É que, enquanto o constituído só tem sentido para mim e para o mim deste instante, o instituído tem sentido sem mim.

Em Merleau-Ponty, “instituição” tem um duplo sentido: acção de dar um começo, de fundar (o que não acontece num acto, num só golpe, mas se dá no alongamento do tempo); estado de coisas estabelecido (por exemplo, no campo social, político ou jurídico).

O que é interessante é a expansão aberta por este duplo sentido. Merleau-Ponty fala-nos da instituição na ordem do vivo, na medida em que o desenvolvimento do organismo não resulta apenas do desdobramento de uma estrutura inata, mas também de uma plasticidade que responde às circunstâncias que são dadas contingentemente no tempo e no lugar (essa plasticidade tem toda a margem entre os limites da espécie e da monstruosidade). Fala-nos da puberdade para defender que “a própria pessoa deve ser compreendida como instituição”, mas com o mesmo exemplo afirma que “a instituição não liquida absolutamente o que a precedia” (Merleau-Ponty 1954:47,60). Fala-nos da instituição de um sentimento através da sua própria história: um amor fica ligado aos acontecimentos contingentes onde se começa a formar, onde cresce, onde se transforma, onde morre. Fala-nos da instituição de uma obra, como no pintar ou no escrever: no princípio há um vazio; depois o projecto começa mas não está desde logo formado na cabeça do artista, vai sendo reconhecido nas realizações parciais; depois vai-se alimentando dos encontros com os outros, embora o sentido externo não exclua o sentido interno. Por exemplo, um livro “é uma série de instituições e manifesta que toda a instituição tende para a série”; o livro exemplifica como a instituição é instalação da diferença, desvio pessoal dentro da norma, fazer de uma nova norma em relação à qual novos desvios são possíveis (Merleau-Ponty 1954:41). Na obra de arte há um cruzamento da instituição pessoal e da instituição colectiva (Merleau-Ponty 1954:78). Fala-nos da instituição de um saber, contra a ideia do saber como apropriação progressiva de ideias eternas, intemporais, quando o saber é ele próprio histórico – e, a esse propósito, sublinha o duplo aspecto da instituição, como abertura e como restrição (Merleau-Ponty 1954:43).

Cabe sublinhar que o instituir não é um procedimento que obedeça a um cânone racionalizado. A propósito da instituição da obra de arte, escreve: “a pintura não é a lógica da pintura” (Merleau-Ponty 1954:82). Quer dizer: o pintor faz escolhas, mas não lhes faz a teoria; avança por meio de certos afastamentos expressivos em relação a uma certa norma, mas isso não é necessariamente logo uma nova norma ou uma tese. O instituir, a instituição, avança em ziguezagues, não é uma linha recta dirigida a um fim (Merleau-Ponty 1954:87).

Enriquecida por esta dimensão menos usada, a noção de instituição é então pensada naquele lado que nos parece mais familiar: os corpos do Estado, as leis orgânicas. Mas o que é afinal tudo isso? Desde logo, “a instituição não é apenas o que foi fixado por contrato, mas isso mais funcionamento” (Merleau-Ponty 1954:43). Depois, a instituição tem dois lados: é universalizante, porque torna possíveis séries de acontecimentos que têm uma certa unidade, torna possível uma historicidade; mas também é particularizante, porque estabelece diferenças, porque não vai a caminho de um horizonte único. Pela instituição, a história torna-se relação entre pessoas mediada por coisas (Merleau-Ponty 1954:47). A instituição instala-nos de uma certa maneira na história: nem estamos fechados no nosso presente (não estamos numa ilha na história, podemos penetrar no horizonte dos outros), nem podemos ver como síntese toda a existência humana (não nos elevamos nunca acima da história como espectador absoluto); não há criação pura e incondicionada (por isso está errado o relativismo cultural radical), mas as instituições também não são apenas limites, porque também possibilitam e abrem história (Merleau-Ponty 1954:105-107,118-119). Também para este sentido de “instituições” será pertinente dizer que “o homem é ao mesmo tempo mais ligado ao seu passado do que o animal e mais aberto ao seu futuro” (Merleau-Ponty 1954:57) – porque as instituições são a materialização dessa forma de ser histórico. E essa materialidade das instituições é importante, porque “o modo de existência da instituição (…) não é conteúdo de consciência” e as ideias dos humanos só existem nos aparelhos que as fixam e nenhum a fixa inteiramente (Merleau-Ponty 1954:58,98).

O texto de Merleau-Ponty, fazendo a ponte entre as “instituições” sociais e o “instituir” – de si próprio como pessoa, das suas obras, dos saberes, dos sentimentos – reforça uma articulação que se recusa a dar lugar de destaque a certas oposições: entre o interior e o exterior do indivíduo, entre o indivíduo e o colectivo, entre o corpo e a inteligência, entre o sujeito e o objecto, entre o presente e o imaginário, entre o natural e o cultural. A instituição – o instituir e o instituído – misturam tudo isso, desfazendo falsas polaridades, no tempo, já que “o tempo é o próprio modelo da instituição” (Merleau-Ponty 1954:36).


REFERÊNCIA

(Merleau-Ponty 1954) MERLEAU-PONTY, Maurice, “L’institution dans l’histoire personnelle et publique”, in MERLEAU-PONTY, Maurice, L’Institution. La Passivité. Notes de cours au Collège de France (1954-1955), s.l., Belin, 2003, pp. 31-154 (Fixação do texto por Dominique Darmaillacq e Claude Lefort)