O Teatro da Cornucópia vai apresentar, a partir de 12 de Fevereiro, o seu novo espectáculo "Lisboa Famosa (Portuguesa e Milagrosa)", a partir de uma mistura de cenas de diferentes Autos quinhentistas e seiscentistas (de Gil Vicente, Anónimos, Baltesar Dias, Afonso Álvares, etc.). Aí se fala da vida social da cidade de Lisboa (ou de muitas cidades, a propósito de Lisboa), passando por motivos como os Santos populares e milagres de Santo António, fado, sardinha assada, porto de mar, com gente de todo o mundo, mas também terra dos corvos de São Vicente, dos terremotos, da fome e da mentira e corrupção.
O Teatro da Cornucópia tem vindo a alimentar, com carinho e inteligência, uma relação com o público que, por fugir à lógica comercial, se torna genuína e maravilhosamente subversiva. Um novo passo nessa relação são os "ensaios abertos". Hoje foi o primeiro. Fomos lá e estamos aqui a dar conta.
Recebendo as pessoas que quiseram ir assistir ao ensaio de hoje, Luis Miguel Cintra explicou que não querem ter a mera relação comercial com os espectadores. Querem cumplicidade. Que maravilhoso conceito, este de cumplicidade! Maravilhosa cumplicidade, por quê? Porque, creio eu, "cumplicidade" começa por ter um tom negativo, como se fosse relação de criminoso com criminoso, conspirando para o mal, numa certa escuridão, fazendo planos para prejudicar alguém. Mas a compreensão profunda entre humanos transforma essa noção numa outra cumplicidade: uma cumplicidade à luz do dia, uma cumplicidade sem planos, sem estratégias, sem truques. Uma cumplicidade sem um objectivo, apenas uma atitude: disponibilidade, confiança, querer que o outro possa falar e crescer no meio de toda a fauna e toda a flora do mundo. A cumplicidade dos amantes distribuída por tanta outra gente. Luis Miguel Cintra não fez estes rodriguinhos, não quero estar aqui a dar-lhe essa responsabilidade, mas fez-me pensar assim quando disse que queria a cumplicidade entre pessoas na vida e que também queria cumplicidade entre público e companhia de teatro.
E disse mais: este espectáculo é mesmo sobre a cumplicidade. Os Autos quinhentistas e seiscentistas que dão a carne para este espectáculo eram praticados em círculos fechados, na corte, em casas de nobres, em igrejas, círculos restritos onde havia mais contacto e mais interacção entre quem representava e quem circunstanciava. Até por, muitas vezes, não serem peças completas, fechadas, e terem uma estrutura que facilitava essa ligação (como se dá quando se canta). E este espectáculo quer soprar na fogueira dessa cumplicidade recriando esse ambiente. Pelo que pude ver neste ensaio aberto, acho que consegue.
Cintra explicou o significado dos ensaios abertos. O público vê o espectáculo a construir-se, a entrar nos actores. Vendo os ensaios, o público pode sentir as palavras a encorpar, a fazerem corpo com o corpo dos actores. A ideia é que a Cornucópia faça ensaios abertos em quatro momentos diferentes da construção de um espectáculo: (1) o primeiro contacto com o texto, quando se está à mesa a ler os textos; (2) quando se sai da mesa e se começa a passar para a implicação do corpo nas palavras, quando os actores, para usar a expressão de Cintra, comaçam a dizer o texto como se fossem palavras inventadas por eles próprios; (3) quando o jogo já está estabelecido, esboçado, mas não funciona ainda inteiramente, quando ainda se experimenta, corrige, repensa, quando ainda nem toda a gente sabe inteiramente o seu papel, se engana ou esquece, ou ainda anda com os papéis na mão; (4) quando se está próximo do ensaio geral, com todos os elementos a funcionar, incluindo as roupas como finalmente completam o boneco das personagens.
O ensaio aberto de hoje correspondeu à terceira fase das quatro enunciadas acima. O próximo ensaio aberto de "Lisboa Famosa (Portuguesa e Milagrosa)" será no dia 7 de Fevereiro, correspondendo à quarta fase. Para assistir não é preciso jogar no euromilhões: basta telefonar para lá e marcar um lugar. Vale a pena, pelo menos para quem gosta de perceber melhor como funciona o teatro por dentro. Para mim, depois da experiência da Ilusão, é sempre uma emoção voltar àquela casa. (Mas uma emoção não desprovida de razão.) Aprende-se ali tanto de tanta coisa... Voltar a ver Cintra a desdobrar a dramaturgia ali à nossa frente... é uma delícia para todas as partes da pessoa que somos.
O teatro que se faz na Cornucópia é, sempre, para quem queira pensar e não, simplesmente, entreter-se. Mas, por vezes, nota-se nas encenações de Cintra o desejo de atingir um dos cúmulos da arte, que é juntar a máxima metafísica na máxima leveza aparente. Desta vez, dizem eles sobre este espectáculo que aí vem: "Espectáculo leve, brincado, uma brincadeira ligeira que pode ser uma óptima introdução ao português antigo e à primeira fase do teatro português."
Faz-me lembrar aquela frase: "o mundo é um brinquedo sem dono". E a metafísica regressa a galope.
Não se distraiam dos ensaios abertos da Cornucópia.