- I -
António Costa, a propósito da Convenção Nacional “Mobilizar Portugal” que se realiza este sábado em Aveiro, falou ontem com a imprensa sobre a Agenda para a Década. Explicou que o processo de “Mobilizar Portugal” tem várias etapas, vários níveis, sublinhando que não podemos esgotar todas as forças do País a pensar no imediato. E declarou que a “Agenda da Década” é uma peça fundamental do seu projecto para “Mobilizar Portugal”, já que ela deve permitir uma larga congregação de esforços em objectivos estratégicos de longo prazo que não estejam sempre a mudar quando muda o governo – ou, pior, quando muda o ministro, mesmo que seja no mesmo governo.
Reacção, bastante partilhada em vários meios, quer por jornalistas, quer por comentadores de vários feitios: António Costa (ou a Convenção) não quer falar dos temas prementes, como a dívida ou o défice, e quer empatar-nos falando de coisas distantes no tempo. O subentendido, que alguns explicitaram, é: António Costa está a querer enganar-nos, evitando falar dos temas difíceis, talvez por não ter nada para dizer. Merece reflexão esta reacção à proposta de António Costa. E merece reflexão porque estes “comentários” fazem parte do “estado a que isto chegou”, como teria dito Salgueiro Maia. O estado a que chegou o debate público nacional.
- II -
Quem duvida de que “o programa de recuperação do País não se pode esgotar na agenda de uma legislatura”?
Quem duvida de que precisamos de uma agenda que nos permita “olhar em frente e lançar as bases para um País mais próspero, mais eficiente, mais inovador, mais sustentável, mais coeso e solidário, mais culto, mais influente na União Europeia e no Mundo”?
Quem duvida de que “uma ambição desta dimensão precisa de mais tempo, de uma continuidade nas políticas, de objetivos claros e de linhas de rumo bem definidas” ?
Quem duvida de que “uma ambição desta dimensão” precisa de “uma Agenda estratégica para uma década, que mobilize fortemente o conjunto da sociedade em torno de objetivos nacionais comuns”?
Creio que ninguém, que tenha reflectido sobre o Portugal das últimas décadas, duvidará da necessidade desta “Agenda para a próxima Década” e da necessidade de um método político que comece pela estratégia, em vez de começar pelo imediato e pelo curto prazo.
Um exemplo simples. Qualquer análise ao problema das qualificações dos portugueses, e ao seu impacto nas nossas debilidades como economia, mostra que o País precisa de um sistema de formação de adultos, numa lógica de aprendizagem ao longo da vida. Como o problema das qualificações só pode ser resolvido no longo prazo, não faz sentido que cada governo que chega vire de pernas para o ar o que fez o governo anterior, só por uma questão de luta política imediata. Sem prejuízo de que qualquer linha de acção pode sempre sofrer correcções, mas as correcções podem ser incrementais, não têm de querer começar tudo de novo de cada vez. Em vez disso, para continuar no exemplo, usaram-se métodos terroristas para lidar com o programa Novas Oportunidades, confundindo destruição (que se paga cara) com melhorias mais ou menos pontuais (que são sempre necessárias em qualquer obra humana).
- III -
Este problema – vistas curtas do funcionamento do nosso sistema político – está identificado. O problema adicional é que ninguém conseguiu, até ao momento, mudar esta realidade no sentido desejado: dar profundidade estratégica à governação do País. A ideia de António Costa, com a Agenda da Década, é atacar nessa “questão de método” fundamental.
Algumas pessoas, que julgam que o trabalho dos políticos é responder às expectativas dos media, tiveram a atitude preguiçosa de nem tentarem perceber o que estava em causa no que disse AC.
Um dos aspectos mais curiosos dessa vaga reactiva tem a ver com uma afirmação de AC sobre a dívida, lembrando que a dívida não é a causa dos nossos problemas estruturais, mas, antes, foram os nossos problemas estruturais (ligados à produtividade e à nossa inserção no comércio internacional, por exemplo) que foram a causa do problema da dívida. Parece que algumas pessoas acharam bizarra essa declaração. Francamente, o que é bizarro é que ainda haja jornalistas e opinadores que ainda não tenham percebido quão fundamental é perceber precisamente aquilo que disse AC. Seria uma enorme tragédia que se resolvesse o problema da dívida só para, depois, recomeçar a esquecer quais são os estrangulamentos fundamentais que adiam sempre a nossa prosperidade económica e social. Seria uma enorme tragédia que, depois de tudo o que passámos, voltasse a acontecer no futuro que uma crise política interna gerada por mero egoísmo partidário, criada pela vontade de “ir ao pote” (expressão de PPC), nos fragilizasse num contexto de enorme exposição internacional. Seria gravíssimo que o País não se equipasse politicamente para ser capaz de se defender melhor, mais solidariamente, mais organizadamente, na resposta às dificuldades que enfrentamos. É preciso resolver o problema da dívida e do défice – mas é preciso saber para quê. Para mobilizar os portugueses para um percurso, entusiasmante mas exigente, não basta mandar marchar: é preciso saber para onde vamos. Temos de saber definir as metas. E, para isso, a questão fundamental é, exactamente, que País queremos ser daqui a dez anos.
- IV -
Tal como António Costa a apresentou, a “Agenda da Década” tem outra virtualidade política: combinar mudança com estabilidade no quadro de uma democracia madura. Vejamos.
Indiscutivelmente, depois da forma ideológica e insensível como a actual maioria lidou com a crise, precisamos de mudar de políticas, de métodos, de protagonistas. O PSD e o CDS precisam de uma licença sabática para se curarem de uma experiência governativa em que ignoraram a realidade dos portugueses e começaram a pensar, como “explicava” o líder parlamentar do PSD, que é possível o País estar melhor enquanto os portugueses estão pior. E o País também precisa dessa licença sabática, porque estamos cansados desta governação tanto mais agressiva quanto mais desnorteada. Precisamos de uma viragem. Nesse quadro, seria desejável que outros, à esquerda, deixassem de se focar exclusivamente na contestação e começassem a pensar no que poderiam ganhar, para os ideais que os guiam quando pensam no País, se aceitassem pensar em termos de desafios concretos da governação. Não é bom para a democracia que haja uma fatia do eleitorado à esquerda que, há décadas de democracia constitucional, nunca tenha sido envolvida numa solução para governar o País. Eu espero que essa mudança ocorra e tenha consequências no próximo ciclo político (e digo isto há muito tempo).
Contudo, ninguém pensa que a direita vai morrer para a democracia portuguesa. Parece que é tabu, hoje, ser de esquerda e assumir que o PSD não vai ser confinado a um campo de concentração nas Berlengas. A direita precisa da tal licença sabática (nós precisamos de colocar a direita em licença sabática), mas o PSD e o CDS vão voltar a ser alternativa de poder – e ainda bem, porque é disso que vive a democracia. E, portanto, os partidos da direita devem, como outros agentes políticos, e as mais diversas forças sociais, entrar num compromisso estratégico para a década. As reais escolhas, as reais divergências, fazem sentido sobre o pano de fundo de convergências essenciais que devem ser largamente partilhadas pela esmagadora maioria dos portugueses. Para que as divergências façam sentido, e os portugueses tenham alternativas e possam escolher entre elas, é útil que se desenhe primeiro (ou ao mesmo tempo) o pano de fundo das convergências. E, como é claro, no horizonte de uma década, essa convergência não pode ser só de esquerda, nem ser só de direita.
Ora, precisamente, para ser possível essa combinação produtiva entre prazo de uma legislatura e prazo mais longo, estratégico, precisamos da Agenda para a próxima Década proposta por António Costa. Aliás, o que António Costa propõe é um quadro para começar a construir essa Agenda, dizendo que esse processo continuará até, mesmo depois de ser governo, na Concertação Social, para continuar essa construção e lhe dar enraizamento na sociedade organizada, não sendo apenas coisas de partidos.
- V -
Parte essencial da abordagem de António Costa, em todos os “trabalhos” por onde passou, é questão de método. O método de um debate político a vários planos, com diferentes horizontes temporais, onde o curto prazo não obscurece o longo prazo, onde a divergência de hoje não impede a convergência de amanhã, é, a meu ver, parte essencial da proposta que António Costa está a apresentar ao País. É que “Mobilizar Portugal”, como ele se propõe, não é coisa que se faça em modo tecnocrático. “Mobilizar Portugal” não é só conteúdo das políticas, é também o modo de fazer as coisas: respeitas as pessoas, respeitar as instituições, respeitar as diferenças, esquecer o consenso oco e artificial e colocar em marcha a negociação séria, o compromisso nobre e que não apaga as diferenças. E tudo isso só é possível se soubermos levantar os olhos e olhar para a frente. Pelo menos, para o horizonte de uma década.
Se não percebermos isto, não percebemos nada do que António Costa está a propor ao País. O gosto pelos chavões, por títulos que entram facilmente no ouvido, causa estragos notáveis em certos opinadores mais cataventos. Primeiro, António Costa era acusado de aparecer como um “messias”, um “homem providencial” que apostava apenas na aura pessoal para efeitos políticos. Agora, como já se vê que a sua acção política é tudo o contrário de qualquer messianismo ou populismo, quando mostra a seriedade da sua abordagem, não prometendo milagres nem facilidades, mas oferecendo uma via democrática para sair da crise – Mobilizar Portugal –, agora lamentam-se porque o candidato não avança com soluções mágicas, rápidas e de efeito garantido. Eu continuo a preferir a Agenda da Década à “agenda da espuma dos dias”. E acho que a única maneira de conseguir, nesta política que temos, forçar este debate, é não começar pelos temas evidentes. Confio que António Costa não deixará de ir a todos os temas que os jornalistas queriam ouvir hoje – ou ontem. Mas segundo o seu próprio método.
Fico contente por isso.
Já vos disse que o método é, precisamente, uma das razões principais para eu apoiar António Costa?