10.9.25

O que é isso rearmar a Europa?

10:00


1. O território europeu conhece de novo a guerra: convencional, mas envolvendo potências com capacidades nucleares. Guerras próximas, como a do Médio Oriente, mostram a profundidade do duplo padrão (político e moral) da UE e seus Estados-membros. A oscilação dos EUA face à Europa exibe a traços fortes a relação assimétrica que existe entre esses parceiros de longa data e o guarda-chuva atlântico arrisca ser levado pelo vento. A questão da força nas relações internacionais emerge como urgência. A pergunta pelo rearmamento da Europa faz, pois, sentido – mas essa pergunta é cega se não for uma pergunta pelo nosso lugar no mundo.


2. A representação do mundo desejável a que mais frequentemente é exposto um cidadão de um país ocidental é a “ordem internacional liberal”.

A “ordem internacional liberal” consiste num conjunto de organizações internacionais (de perfil político, como a ONU, com ramificações importantes como a OMS, a OIT ou a FAO; económico-financeiro, como o FMI ou a OMC; jurisdicional, como o Tribunal Internacional de Justiça ou o Tribunal Penal Internacional) e num conjunto de tratados e convenções internacionais (como a Carta das Nações Unidas, a Convenção de Genebra sobre direito humanitário, o Tratado de Não Proliferação Nuclear, a Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar e muitos outros). Este sistema foi sendo construído ao longo dos anos, com base no impulso original dos EUA após duas guerras basicamente europeias (mas chamadas mundiais) de que esse país emergiu com o estatuto de potência mundial aspirante à hegemonia global.

A esta “ordem” os EUA gostam agora de chamar “ordem internacional baseada em regras”, para a associar a uma narrativa de uma certa superioridade moral das democracias no plano das relações internacionais. Essa narrativa tem os seus problemas.

Um desses problemas é que a pretensão de superioridade moral resiste mal à tentativa de justificar porque é que (por exemplo) a China tem um problema com os direitos humanos (mas não interessava quando Nixon se aproximou do presidente Mao) e a Arábia Saudita serve perfeitamente como aliado. Porque é que o autoritarismo da Rússia é condenável e o da Turquia de Erdogan serve perfeitamente os critérios da NATO, tal como serviram as ditaduras espanhola, portuguesa e grega. Ou porque é que a Rússia deve ser condenada pela invasão da Ucrânia (e deve) e Israel merece compreensão enquanto comete genocídio na Palestina. Ou porque é que o Irão deve respeitar a não proliferação nuclear e Israel nem por isso. 

Outro problema é que a invocação da legalidade internacional se mostra demasiado moldável às oportunidades, como se exemplifica pela intervenção da NATO no Kosovo (1999) e pela invasão do Iraque (2003), qualquer delas sem qualquer cobertura no direito internacional. Ou pelo facto de nenhum dos cinco Estados mais populosos do mundo e nenhuma das “grandes” potências atuais fazer parte do Tribunal Penal Internacional, significando que a sua jurisdição não abrange os nacionais da China, Índia, EUA, Indonésia, Paquistão e Rússia, resultando em que praticamente só africanos são perseguidos por esse tribunal e as suas decisões são repetida e frequentemente desrespeitadas. 

Há ainda o problema de os EUA, a partir de um dado momento, terem desacreditado de que o livre-comércio servia os seus interesses (cf. a adesão da China à OMC) e desertado (com estrondo) das teses que andaram tanto tempo a promover. Se Montesquieu convenceu muitos de que “o efeito natural do comércio é conduzir à paz” [1], outros entendem hoje que os fatores de conectividade global (longas redes de abastecimento, finanças, migrações, Internet, pandemias, alterações climáticas) são, em si mesmos, razões e vetores de conflitualidade distribuída [2] . Não é de estranhar que novos atores globais, capazes de explorar novos vetores de competição proporcionados pelas novas conectividades, os usem para compensar vantagens tradicionais que favorecem potências mais antigas – como o benefício desproporcionado que o papel do dólar como reserva e moeda dominante nas transações comerciais internacionais, designadamente do petróleo, e nos mercados cambiais, confere aos EUA, que o transforma em arma pelo recurso às sanções financeiras como instrumento de política internacional (e foi explorando esse benefício que chegaram aos défices comerciais crónicos de que agora se queixam).
Nestes termos, a crença numa globalização benevolente constitui uma ingenuidade perigosa. Já que a globalização não é uma casa acolhedora, precisamos de amigos – pelo menos, de aliados – se não queremos, simplesmente, acatar a ordem imposta pelos mais poderosos. Pertencer, e ter uma palavra, numa região do mundo dotada de organização, é a possibilidade que nos resta de usarmos a nossa soberania em algo mais do que exercícios proclamatórios. A questão é a de saber em que lugar do mundo pertencemos. 


3. Concretizada, a questão é esta: “é um equívoco falar do Ocidente como se fosse uma entidade política unificada e com interesses inteiramente convergentes. (…) O que faz mover os norte-americanos é o seu interesse nacional e a manutenção da hegemonia global. Esses não são exatamente os interesses e as motivações dos europeus.” [3]

Exemplos rápidos, ao tempo desta avaliação: os EUA retiram do Afeganistão sem coordenação com os aliados, ignoram os interesses da UE com o acordo AUKUS para fornecer (com o Reino Unido) submarinos nucleares à Austrália, adotam uma lei de redução da inflação desfavorável a indústrias europeias… e podíamos acrescentar todas as demonstrações recentes do segundo mandato de Trump.

De qualquer modo, convém ter presente que esta situação não é episódica, nem recente. A Guerra Fria, que funcionou como uma neblina que só deixava ver os grandes vultos e disfarçava as nuances e as gradações, conduziu os aliados europeus dos EUA a uma certa insensibilidade ao facto de sermos apenas uma das peças do jogo global dos EUA. Mas isso foi sempre desse modo desde o fim da segunda guerra mundial. A NATO foi criada em 1949,  cobrindo a Europa e a América do Norte, mas os EUA envolveram-se em outras alianças de segurança com outros países em diferentes regiões do mundo: no Pacífico, a ANZUS (com a Austrália e a Nova Zelândia, 1951); no Sudeste Asiático, a SEATO – Southeast Asia Treaty Organization (com Austrália, França, Nova Zelândia, Paquistão, Filipinas, Tailândia e Grã-Bretanha, de 1954 a 1977); no Médio Oriente, com o Pacto de Bagdad, o CENTO – Central Treaty Organization (com Reino Unido, Turquia, Irão, Paquistão e Iraque, os EUA eram observadores, de 1955 a 1979); nas Américas, o TIAR – Tratado Interamericano de Assistência Recíproca, também chamado "Tratado do Rio" (envolvendo muitos países das Américas, com dissidências ao longo do tempo, 1947). Além de uma série de tratados de segurança bilaterais, com o Japão (1951), com a Coreia do Sul (1953), com as Filipinas (1951), com a Tailândia (1962), e com Israel (vários, especialmente após 1973). Para além dos SOFA (Status of Forces Agreements), espalhados pelo mundo, que garantem presença militar, mesmo fora de grandes tratados.

Esta ocupação global do terreno da segurança pode ser lida a par da formulação sucessiva de uma série de doutrinas de política externa dos EUA, todas elas cumprindo o papel de afirmar o alcance planetário dos interesses vitais desse país, por via do qual se justificaria qualquer intervenção que viesse a ser decidida em qualquer ponto do globo, segundo a perceção que os EUA fizessem em cada momento da melhor forma de prosseguir os seus interesses.

A Doutrina Truman (de Harry S. Truman), 1947, anunciada no contexto das crises na Grécia (guerra civil, com uma possível vitória comunista, parte importante da resistência contra os alemães, sobre os partidários da monarquia) e na Turquia (soviéticos exigindo bases militares nos estreitos de Bósforo e Dardanelos, na rota estratégica entre o Mar Negro e o Mediterrâneo, e um ajuste de fronteiras no leste da Anatólia), justifica a ajuda económica e militar a países considerados alvos da expansão do comunismo, inaugurando a ideia da política de contenção.

A Doutrina Eisenhower (de Dwight D. Eisenhower), 1957, é formulada após a crise do Suez, num contexto que se pode resumir como segue. Depois de, em 1956, o Egipto de Nasser nacionalizar o canal do Suez, antes controlado por uma empresa anglo-francesa, e Israel atacar o Egipto, seguido por Reino Unido e França,  merecendo a condenação de EUA e URSS, que forçaram a retirada dos atacantes, torna-se claro que as potências ocidentais (França e Reino Unido) não estavam em condições de controlar o Médio Oriente, enquanto a URSS oferece apoio económico e militar ao Egipto e dispõe-se a apoiar outros países árabes, um caminho de mais influência na região. No início de 1957, Eisenhower apresentou ao Congresso a sua doutrina, que consistia em oferecer assistência económica e militar a qualquer país do Médio Oriente que a solicitasse com o objetivo de resistir a potências favoráveis ao comunismo, incluindo a possível implicação direta de forças militares americanas na região. A primeira intervenção no quadro desta doutrina ocorreu no Líbano, em 1958: tendo o Egipto e a Síria formado a República Árabe Unida (RAU), fortalecendo a influência de Nasser na região, parte da população muçulmana do Líbano reivindicava maior alinhamento com o bloco árabe, a que se opunha o presidente pró-ocidental Camille Chamoun, o qual, após confrontos armados entre fações, acusou a RAU de conspiração para o derrubar e pediu ajuda aos EUA, que enviaram cerca de 14 mil marines e paraquedistas para Beirute (retirados alguns meses depois, resolvida a crise com a eleição de um novo presidente menos envolvido no confronto entre fações). 

Embora sem uma proclamação formal, pode falar-se da Doutrina Johnson (de Lyndon B. Johnson), nos anos 1960, que, por outro lado, pode ser vista apenas como um desdobramento da Doutrina Truman para a América Latina. Na prática, está em causa o episódio de 1965 na República Dominicana: um presidente eleito democraticamente (em 1962) é deposto por um golpe militar (1963), provocando (em 1965) um movimento para repor o presidente legítimo, algo que os EUA consideravam perigoso, porque podia incorporar influências comunistas – desencadeando o envio de 20 mil soldados para impedir a reposição do presidente democraticamente eleito. No seu discurso transmitido pela televisão a 2 de maio de 1965, e depois de, anteriormente, ter justificado o envio de tropas para a República Dominicana com a informação de que as autoridades militares desse país se consideravam incapazes de proteger as vidas dos cidadãos norte-americanos aí residentes,  o presidente Lyndon B. Johnson avança uma justificação de outro nível político: citando uma frase do presidente John F. Kennedy, proferida “menos de uma semana antes de sua morte”, enuncia [4] : “Nós, neste hemisfério, devemos também usar todos os recursos ao nosso alcance para impedir o estabelecimento de outra Cuba neste hemisfério.” A ação foi legitimada posteriormente por uma força interamericana enviada pela OEA.

A Doutrina Nixon (Richard Nixon), 1969, enuncia a transição de uma política de contenção por intervenções militares diretas dos EUA para a procura de distribuição do esforço com aliados regionais em cada caso, permitindo, em tese, uma maior seletividade do intervencionismo (o envolvimento direto deixava de ser a regra). A aplicação imediata foi a vietnamização da guerra do Vietnam, que era impopular, cara e sem garantias de vitória, mas foi tendo outras aplicações noutras regiões (como a apoio militar massivo ao Irão de Reza Pahlavi e à Arábia Saudita como aliados no Golfo Pérsico ou o reforço do apoio à Coreia do Sul, Taiwan e outros aliados asiáticos).

A Doutrina Reagan (anos 1980), quando, após um período de reveses dos EUA e avanços da URSS em conflitos externos, a influência da União Soviética está ameaçada pela estagnação económica, os EUA vão pressionar: de política de contenção à política de reversão (derrubar governos amigos dos soviéticos), intervindo em vários países (como Afeganistão, Angola, Nicarágua, Camboja) com base numa retórica forte (“Império do Mal”) e recurso a todo o tipo de meios, legais e ilegais. Sob esta doutrina, os EUA conseguiram aumentar a pressão militar, económica e política sobre a URSS, agravando os grandes problemas internos, a todos os níveis, que essa potência enfrentava, em parte devido ao imobilismo induzido pela própria natureza burocrática e repressiva do regime. A que preço? Ações que violaram a soberania de outros países. Apoio a grupos implicados em violações de direitos humanos. Escândalos como o Irã-Contras, quando servidores do governo norte-americano venderam armas secretamente ao Irão e desviaram os recursos assim obtidos para financiar ilegalmente os Contras. Tudo em nome do “Ocidente”. 


4. Deveria, hoje, ser claro que a Europa nunca teve, para os EUA, a centralidade em que os europeus quiseram acreditar. A centralidade da Europa no interesse global americano era contingente às circunstâncias estratégicas globais (designadamente, a proximidade ao território da URSS) e, adicionalmente, à facilidade de lidar com parceiros com regimes políticos comparáveis (mas sem recusar incluir ditaduras entre os aliados).

O ponto do equívoco de “falar do Ocidente como se fosse uma entidade política unificada e com interesses inteiramente convergentes” não está apenas no tabuleiro dos interesses de segurança. Há uma visão do mundo, como civilização global, onde as marcas diferenciadoras são nítidas e relevantes.

Podemos observar um aspeto importante dessa questão comparando os posicionamentos da UE e dos EUA no que toca a um conjunto de tratados e convenções internacionais sobre Direitos Humanos [5] . Vejamos:
- Pacto Internacional sobre os Direitos Económicos, Sociais e Culturais, 1966. Os EUA nunca ratificaram. Todos os EM da UE ratificaram.
- Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher,1979. Os EUA nunca ratificaram. Todos os EM da UE ratificaram.
- Convenção sobre os Direitos da Criança, 1989. Todos os EM da UE ratificaram. Os EUA são o único país do mundo que não ratificou esta convenção. 
- Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, 2006. Todos EM da UE ratificaram. Os EUA não ratificaram.

O Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos reporta a adesão dos países a 18 tratados internacionais de direitos humanos. Distingue quatro grupos de países, quanto ao número desses instrumentos que cada um ratificou. Dos 27 membros da UE, 19 estão no grupo de topo (são parte de 15 a 18 instrumentos), os outros 8 estão lá perto (nenhum EM da UE ratificou menos de 13 desses instrumentos). Os EUA ratificaram 5. 

Observemos ainda este aspeto da ordem mundial, de outro ângulo: convenções internacionais sobre meio ambiente e sustentabilidade, uma dimensão vital para o futuro da humanidade [6] :
- Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar, 1982. Só o Egito, o Sudão e os EUA nunca ratificaram. Todos os EM da UE são partes. 
- Convenção das Nações Unidas sobre a Diversidade Biológica, 1992. Com a exceção dos EUA, todos os Estados‑Membros da ONU são partes.
- Convenção de Estocolmo sobre Poluentes Orgânicos Persistentes, 2001. As suas disposições foram integralmente assumidas no direito da UE, por Regulamento, em 2004, com atualizações posteriores. Os EUA não ratificaram.
- Convenção de Basileia sobre o Controle de Movimentos Transfronteiriços de Resíduos Perigosos e o seu Depósito,1989. A UE (então, CEE), enquanto tal, aprovou a convenção em 1993 e todos os EM são partes. Os EUA não ratificaram.

Neste âmbito, vejamos o que se passa quanto ao processo que enquadra a dinâmica mais visível no momento, a Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudança Climática, de 1992, que foi o primeiro tratado global a lidar explicitamente com a mudança climática e deu origem a vários acordos climáticos subsequentes, como o Protocolo de Quito, de 1997 (primeiro tratado climático juridicamente vinculativo, incluía compromissos de redução de emissões para os países desenvolvidos, mas não para grandes emissores como a China ou a Índia) e o Acordo de Paris, de 2015 (prevê que todos os países definam as suas metas de redução de emissões, com o objetivo de impedir a temperatura média global de ultrapassar certos limites e de alcançar a neutralidade carbónica na segunda metade do século).

Os EUA ratificaram o instrumento de 1992, não ratificaram o Protocolo de Quioto e têm andado dentro e fora do Acordo de Paris. Quer dizer: os EUA aderiram ao Acordo de Paris por procedimento executivo (ato apenas do Presidente, sem passar pelo Senado), com Obama (em 2016); Trump revogou a decisão (anunciou a decisão de retirada em 2017 e a retirada tornou-se efetiva em 2020), Biden voltou a aderir (em 2021 assinou a ordem executiva para voltar a integrar o Acordo e a reintegração tornou-se efetiva em pouco tempo) e Trump (2025) voltou a iniciar o processo de retirada (que se tornará efetiva em 2026). A UE, os Estados-Membros, ratificaram Quioto e Paris, cumprem os acordos em bloco e de forma coordenada, participam nas conferências de partes como dinamizadores de mais ambição, contrastando com o frequente papel de travão dos EUA.

O presidente da comissão de defesa do parlamento dinamarquês já opinou publicamente que comprar sistemas de armas aos EUA é um risco de segurança [7] . E outros responsáveis de países da NATO deram sinais no mesmo sentido [8]. O “Ocidente” é um cobertor demasiado largo para cobrir as diferenças de segurança, mas também as diferenças de perceção do mundo (como vimos com os tratados sobre direitos humanos e sobre ambiente) entre os EUA e a UE. 


5. A questão das armas, quer elas cheguem a ser usadas ou não, não é irrelevante. Uma fonte [9] estima: para defender a Europa (face à Rússia) sem os EUA precisamos de mais 300 mil soldados (apenas guerra terrestre). E alerta: um cenário de acordo de paz entre a Rússia e a Ucrânia seria muito desafiador para a Europa, porque a Rússia acumularia a sua produção que agora gasta com a Ucrânia. Há qualquer coisa de trágico neste raciocínio, onde um acordo de paz surge como ameaçador.

Contudo, a máquina não tem estado parada. De acordo com o SIPRI [10], a despesa militar mundial atingiu 2 718 mil milhões de dólares em 2024, um aumento de 9,4 % em termos reais face a 2023, o décimo ano consecutivo de subidas e a subida anual mais acentuada desde, pelo menos, o final da Guerra Fria. Os gastos militares aumentaram em todas as regiões do mundo (em mais de 100 países), com um crescimento particularmente rápido quer na Europa quer no Médio Oriente.

Na UE [11] , as despesas totais dos Estados-Membros com a defesa aumentaram mais de 30% entre 2021 e 2024. De 2023 para 2024, os investimentos no domínio da defesa aumentaram 17 %, alcançando um máximo histórico de 72 mil milhões de euros, e o volume de negócios gerado pela indústria europeia de defesa aumentou 16,9%.

Debater a segurança na Europa focando principalmente a questão dos níveis de despesa militar dos Estados (que terá efeitos não negligenciáveis no financiamento de outros sectores económicos e sociais) esconde muitos outros obstáculos reais. Fragmentação: por exemplo, os países da UE operam 12 tipos de grandes carros de combate, enquanto os Estados Unidos têm apenas um. Proteção das indústrias nacionais: os EM com indústrias de defesa fazem o possível para que as encomendas fiquem no seu território, os números da produção são baixos e isso ajuda a manter altos os custos unitários (e um aumento de procura neste ambiente de competição limitada aumentaria ainda mais os preços e as rendas das empresas). Atraso tecnológico: tecnologias decisivas não estão ao alcance da produção europeia ou estão muito atrasadas em relação aos EUA (aviões de combate mais avançados, certos sistemas de defesa aérea, comunicações por satélite, informações, recurso a IA e a sistemas de robôs autónomos).

Um estudo [12] sublinha as lacunas da Europa no que toca a capacidades estratégicas requeridas pelas formas de guerra contemporânea, tecnologicamente avançadas, complexas, exigindo investimento elevado e planeamento, e que, em alguns casos, são necessariamente transnacionais, tais como capacidades conjuntas de comando e controlo, redes de inteligência e comunicações baseadas em satélites, sistemas de armas para uso integrado por vários países como defesa aérea estratégica, transporte aéreo em larga escala e logística marítima, mísseis e dissuasão nuclear.

Não será fácil, sequer, falando no contexto da EU, encontrar, sem colisão com as regras atuais dos tratados, os métodos e os montantes de financiamento necessários para produzir grandes sistemas partilhados. E, neste contexto, é evidente que a Europa é mais do que a UE. Sem complicar muito, considere-se o interesse da cooperação com o Reino Unido, a Suíça ou a Noruega – o que tem suscitado propostas para a criação de novas instituições, incluindo ressuscitar a Comunidade Europeia de Defesa, de 1952, que nunca funcionou porque dois fundadores da CEE (França e Itália) não ratificaram o respetivo tratado [13] .

De qualquer modo, mesmo dentro do atual quadro institucional, os esforços de integração produzirão, possivelmente, novos perdedores. Por exemplo, novos sistemas de armas podem não gozar de interoperabilidade com alguns dos sistemas existentes, que se tornariam obsoletos, o que provavelmente afetaria de forma assimétrica diferentes países. Ora, é difícil partilhar um “interesse comum” se ele chocar assimetricamente com interesses das partes.

Se quisermos enunciar brevemente os riscos que as democracias correm em consequência desta situação, num clima de nova guerra fria e onde frequentemente se desvaloriza a via negocial como forma de resolver conflitos, devemos considerar o perigo de reduzir os fatores de segurança às questões de defesa. Num relatório [14], encomendado para estudar como melhorar a preparação e prontidão civil e militar da UE, a curto, médio e longo prazo, o antigo presidente da Finlândia, Sauli Niinistö, identifica um conjunto de desafios que a região enfrenta, nomeadamente: a erosão das instituições globais, ameaçando a efetividade da cooperação multilateral; as alterações climáticas e os fenómenos meteorológicos extremos; a instabilidade geopolítica, destacando a ameaça russa; as ameaças híbridas (ciberataques, manipulação de informação, interferências estrangeiras com recurso a tecnologias de informação e comunicação); a competição estratégica crescente por matérias-primas críticas e por tecnologias disruptivas; os fluxos migratórios e o controlo de fronteiras; os riscos de novas pandemias, designadamente decorrentes de inovação biotecnológica para desenvolver patogénicos sintéticos. Para falar sensatamente de segurança, na situação atual da Europa e dos europeus, este leque de preocupações não pode ser encurtado.

A desconsideração do carácter multifacetado da segurança, desligando as questões da defesa de outras questões fulcrais para as pessoas e para a humanidade, pode originar novos e desafiantes conflitos democráticos. Exemplifiquemos.

O discurso de Donald Tusk ao Parlamento Europeu, para apresentar as prioridades da presidência polaca no primeiro semestre de 2025, destaca o apelo a uma Europa armada capaz de se defender, o que não espanta, mas inclui também um forte ataque ao Pacto Ecológico, a estratégia europeia para alcançar a neutralidade carbónica até 2050. Assim, num quadro marcado pela retirada dos EUA do Acordo de Paris, por ação de Trump, Tusk dá voz aos sectores da direita europeia que tentam desmantelar a regulamentação ambiental introduzida nos últimos anos, culpando-a pela falta de competitividade da região e pelos preços da energia (cuja subida foi impulsionada pelas consequências da invasão da Ucrânia). Qualificando o Pacto Ecológico na caixa das “ideias ingénuas” e das “doutrinas rígidas e ideologias”, Tusk, falando em nome da presidência de turno, esquece o peso da dependência dos combustíveis fósseis importados, bem como a lenta adoção de sistema de energias renováveis em muitas regiões europeias [15]. Opor segurança e sustentabilidade ambiental é caminho seguro para um conflito democrático.

Outro exemplo: um estudo já aqui citado [16], falando de “regulamentos nacionais e europeus que dificultam o aumento das capacidades de produção de defesa”, dá como exemplo que “as regras nacionais podem dar aos eleitores locais poder de veto sobre a expansão das unidades de produção” e ilustra com a notícia da empresa de armamento Diehl que demorou um ano de negociações a conseguir das autoridades da cidade alemã de Troisdorf o acordo que lhe permitiu expandir a produção local de munições. Os poderes locais democráticos e os direitos de participação dos cidadãos podem ser encarados como um entrave ao esforço de defesa?

O mesmo estudo aponta conflitos com outras políticas públicas. Insiste na questão ambiental: as regras ambientais podem tornar mais dispendiosos materiais críticos, como o “aço verde” (aço produzido com métodos e tecnologias amigas do ambiente). E passa à Inteligência Artificial: as regras da UE sobre IA podem, lê-se, prejudicar o desenvolvimento de sistemas de armas, por exemplo relacionados com inteligência e com sistemas de comunicações imunes à guerra eletrónica. A sugestão, implícita, é que essas regras não deveriam manter-se, por serem obstáculos ao esforço de defesa. Esta visão desalinha e prejudica as tentativas de posicionar a UE como a única região do mundo que pretende liderar em normas globais para a IA que não sacrifiquem a ética, a transparência, a responsabilidade e os direitos humanos à promessa de rapidez do avanço tecnológico [17]. Numa matéria de grande impacto civilizacional, é preocupante que os opositores de sempre a uma IA responsável como tarefa da UE usem, agora, a questão da defesa para tentar reverter o caminho (lento, incipiente) que se tem feito nesta região do mundo como em nenhuma outra.


6. Quando os EUA se viram mais claramente para a região Ásia-Pacífico, a Europa sente que lhe viram as costas. Se, como europeus, acreditamos que vale a pena lutar pelo nosso modelo de sociedade e pela nossa ideia de relações internacionais – mesmo que nada disso seja perfeito e avaliemos apenas em termos diferenciais –, é tempo de perguntarmos pelo nosso lugar no mundo. Para que valha a pena procurar e encontrar uma resposta a essa questão, importar reforçar os fatores de autonomia desta região. Para isso, a Europa, e a União Europeia, precisa de encontrar o rumo político que nos permita sair da falsa narrativa moral da “ordem internacional liberal”, abandonar o vergonhoso duplo padrão em relações internacionais, investir em reverter a desagregação das organizações internacionais multilaterais e trabalhar para que a via negocial se torne o caminho real para resolver situações de conflito, sob o princípio de que só há verdadeira segurança na vigência de um sistema de segurança comum acreditado por todas as partes.

Para podermos escolher o nosso lugar no mundo, não devemos cair na ilusão liberal da ordem espontânea (de que a crença em que o comércio traz a paz é apenas uma instância). Também na ordem internacional, o poder conta. E a força é também fator de poder. E, se a força não é redutível ao poderio militar, passa também por aí. Desde que o poderio militar continue a ser, exatamente, um instrumento. Desejavelmente, instrumento de um caminho justo. O que, claro, não está garantido. Por isso permanece como tarefa política a exigir compromisso.



NOTAS

[1]  Cf. Montesquieu, De l’Esprit des Lois, 1748, Livro XX, primeira frase do capítulo 2 (disponível em https://gallica.bnf.fr/ark:/12148/bpt6k9737646k)

[2] Cf. José Pedro Teixeira Fernandes, O Fim da Paz Perpétua, Lisboa, Zigurate, pp.92ss

[3] Idem, ibidem, pp. 69-70







[9] Alexandr Burilkov e Guntram Wolf, “Defending Europe Without the US: First  Estimates of What is Needed”, Kiel Policy Brief 183, Kiel Institute for the World Economy, fevereiro 2025, pp.4-5

[10] Stockholm International Peace Research Institute, “Trends in World Military Expenditure, 2024”,  SIPRI Fact Sheet, abril 2025, https://doi.org/10.55163/AVEC8366

[11] A política de defesa da UE em números, https://www.consilium.europa.eu/pt/policies/defence-numbers

[12] Wolff, G., A. Steinbach and J. Zettelmeyer (2025) ‘The governance and funding of European rearmament’,  Policy Brief 15/2025, Bruegel, abril 2025

[13] Federico Fabbrini, Sylvie Goulard et al (2025), “Getting Serious about Defense Integration: the European Defence Community Precedent”, Dublin European Law Institute, Dublin, 2025

[14] Sauli Niinistö, “Safer Together. Strengthening Europe’s Civilian and Military Preparedness and Readiness”, (Report to the President of the European Commission), 2024


[16] Bruegel Policy Brief 15/2025

[17] Cf. Porfírio Silva, “Entre a Democracia e a Oligarquia”, in Finisterra, 96 (maio 2025), pp.51-64




Azenhas do Mar, 13 de agosto de 2025
Porfírio Silva


* * *


Porfírio Silva, 10 de setembro de 2025
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6.9.25

Mini-podcast 6 - Uma comissão para o 25 de novembro?

10:00




Regresso do mini-podcast Machina Speculatrix após a pausa estival. 

O mini-podcast do blogue Machina Speculatrix tem uma linha geral simples: textos publicados são objeto de curtas conversas que exploram o seu conteúdo.

O número 6 debruça-se sobre o texto de opinião da autoria de Porfírio Silva, publicado na rubrica “Duelo” do Expresso de 5 de setembro de 2025, em resposta à questão: "É preciso uma comissão para os 50 anos do 25 de novembro?".

Desta vez, uma variante: um texto meu é discutido com uma voz favorável e uma voz desfavorável aos meus argumentos. 





Porfírio Silva, 6 de setembro de 2025
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5.9.25

É preciso uma comissão para os 50 anos do 25 de novembro?

11:23

Não sou fã da designação desta rubrica - Duelo - , mas trata-se de um espaço tradicional de opiniões contraditórias no Expresso. Na edição de hoje, na habitual página 2, opino quanto ao expediente de criar uma comissão para comemorar o 25 de novembro. Deixo aqui, para registo, o texto.


***


Entre o derrube da ditadura e a institucionalização da democracia, a liberdade andou à procura dos seus caminhos e essa procura teve percalços: 28 de setembro de 1974, 11 de março e 25 de novembro de 1975. Comemorar o 25 de abril é comemorar o resultado: a democracia constitucional vivida em paz. É sarar feridas entre democratas. Pelo contrário, insistir nos passos em falso, nas divisões, é salgar as feridas por despudor político.


No 25 de novembro houve duas classes de perdedores. Os que perderam, porque se achavam os donos da legitimidade revolucionária e queriam sobrepor a legitimidade revolucionária à legitimidade democrática, aferida pelo voto popular em eleições livres. Esses perderam, porque no 25 de novembro prevaleceu a continuidade do processo de construção constitucional e foi afastado o cenário de o rumo político do país poder ser imposto por correntes minoritárias apoiadas em sectores militares. Também perderam, por outro lado, aqueles que queriam aproveitar a oportunidade para mutilar o pluralismo político-partidário e voltar a atirar para a clandestinidade uma parte da esquerda portuguesa: os que quiseram ilegalizar o PCP (ou, talvez: começar por ilegalizar o PCP).


Os únicos que saíram vencedores do 25 de novembro foram aqueles que permaneceram fiéis à ideia de que a democracia representativa é para todos. Foi o caso do PS, sob a liderança de Mário Soares, entre os civis. Foi o caso de Melo Antunes e os seus colegas do Grupo dos Nove, entre os militares. Aí não temos, pois, lições a receber de ninguém.


O país não merece ficar pendente da guerrilha dos que tentam relativizar a importância histórica singular do 25 de Abril. O 25 de novembro é um momento do processo aberto a 25 de abril de 1974 e é nesse quadro que o devemos lembrar e sobre ele refletir. Como, sobre isto, dizia o General Ramalho Eanes há alguns anos: “Os momentos fraturantes não se comemoram, recordam-se apenas para refletir sobre eles.”


Mário Soares entregou o bastão de marechal a Spínola e apoiou a amnistia a Otelo, duas personagens envolvidas com promotores de atividades terroristas. E explicou que, compreendendo a legítima discordância das vítimas, “não podemos viver 20 anos a pensar sempre no passado; temos de olhar para a frente e dar passos no sentido da reconciliação nacional”. Fechar feridas. Tudo o contrário de criar comissões para confortar politicamente quem se sente incomodado com o 25 de Abril e quer produzir, artificialmente, alternativas à sua comemoração, para a diminuir.


Porfírio Silva

(Deputado do PS)



Porfírio Silva, 5 de setembro de 2025
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