19.6.25

Mini-podcast 2 - Mário Soares, a adesão europeia e os revisionistas



O artigo discutido neste número do mini-podcast encontra-se aqui: Mário Soares, a adesão europeia e os revisionistas .


Porfírio Silva, 19 de junho de 2025
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18.6.25

Mário Soares, a adesão europeia e os revisionistas



Para registo, fica o artigo que publiquei ontem (17-06-2025) no jornal Público (p.6). (A qualificação do autor está incorrecta: devia ser apenas "deputado do PS", como pedi. A "cara" também está desactualizada... Mas o texto é mesmo meu.)

***

Mário Soares, a adesão europeia e os revisionistas


A 12 de junho comemorámos 40 anos da assinatura do Tratado de Adesão de Portugal à (então) CEE. Mas nem tudo foi bonito nesse dia. Com estupefação, vimos afloramentos de uma tentativa para desvalorizar o papel decisivo de Mário Soares nesse passo.


Testemunhei ao vivo, na Conferência “No Centenário de Mário Soares - Orgulhosamente Acompanhados - 40 anos de Portugal na União Europeia”, o MNE, Paulo Rangel, tentar menorizar o papel de Mário Soares no processo de adesão, mostrando-se agastado com o relevo de Soares na memória histórica. Dizer que outros também eram europeístas – é verdade, mas não autoriza deslustrar o motor político dessa adesão.


Há, na nossa integração europeia, factos que todos conhecemos. Apenas entrado em plenitude de funções, o I Governo Constitucional avançou para a Europa e, em poucos meses, preparou e, com apoio do Parlamento, formalizou o pedido de adesão, apesar dos conselhos receosos dos economistas. Soares colheu o que semeou, ao assinar o Tratado de Adesão.


Contudo, compreender o papel singular de Mário Soares implicar saber algo mais.


Em 1976, o programa eleitoral do PS alongava-se sobre a centralidade da adesão de Portugal à CEE no rumo pretendido para o país. O PS tomava essa opção como um novo eixo estruturador do posicionamento de Portugal no mundo.


Por contraste, o programa do PPD, das 5 páginas sobre o posicionamento de Portugal no mundo, reservava menos de 20 palavras à adesão à CEE. A parte internacional do programa do PPD tinha 6 parágrafos, com 6 prioridades. A adesão à CEE não merecia nenhum dos seis parágrafos, não se destacava como uma das prioridades. A brevíssima referência à adesão à CEE aparecia, como questão subordinada, enxertada num subparágrafo.


Nesse ano de 1976, enquanto o programa do PS colocava a integração europeia como estruturante de uma visão de desenvolvimento e de consolidação da democracia, no programa do PPD a questão da adesão à CEE era diluída numa miscelânea de temáticas, encravada na questão das relações ibéricas e misturada com a revisão do Pacto Ibérico.


O percurso político anterior de Mário Soares explica como, chegado o momento de governar, fazia diferença a sua visão clara e a sua determinação europeísta. Durante os muitos anos de oposicionista à ditadura, as lideranças democráticas europeias tornaram-se interlocutores privilegiados de Mário Soares. Escrevendo na imprensa europeia, publicando fora de portas, discursando nos congressos e conferências dos socialistas (e dos federalistas), reunindo com governantes, unia o futuro democrático de Portugal à integração no concerto das democracias europeias. Como fez, também, discursando no Conselho da Europa, em 1970.


O primeiro programa doutrinário do PS, de 1973, ainda na clandestinidade, punha a Europa democrática como horizonte de um Portugal democratizado – embora criticando a falta de uma “Europa Social”, de uma Europa dos trabalhadores.


Logo a 3 de dezembro de 1974, o Le Monde destacava a afirmação de Mário Soares: “O nosso objetivo a longo prazo é a integração na CEE.”


O melhor do nosso europeísmo floresceu por contraste com o fechamento cinzento e pesado da ditadura de Salazar e Caetano – e amadureceu na necessidade de garantir a democracia representativa. Várias personalidades, antes e depois de Abril, de diferentes ideologias, juntaram a sua voz e a sua ação a uma visão europeísta do nosso futuro comum. Honra lhes seja feita por terem enfrentado os isolacionistas, quer os do triste “orgulhosamente sós”, quer os das visões redutoras e simplistas da soberania nacional. O governo que assinou a adesão não era monocolor.


Contudo, ninguém teve o desejo e o ensejo de ser tão decisivo e tão definidor nessa adesão à União Europeia como Mário Soares. A história diz-nos isso. É, pois, inaceitável a tentativa, pequena e sectária, de tentar menorizar, ou sequer relativizar, o papel de Mário Soares no processo de integração europeia.  





Porfírio Silva, 18 de Junho de 2025
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16.6.25

Portugueses vírgula

17:18



Está nas salas o mais recente filme de Vicente Alves do Ó, “Portugueses”. É um musical, e eu não costumo gostar de musicais. Mas fui ver e quero dizer-vos algo sobre o filme, a ver se vos convenço a ir ver, enquanto não “desaparece” … algo que acontece muito aos filmes portugueses.

“Portugueses” é uma sequência de cenas da história contemporânea de Portugal, nos aspetos relacionados com o facto de termos vivido sob uma ditadura e de nos termos livrado dela. E, também, relacionados com o facto de que nem todos viviam igualmente cómodos – nem todos igualmente esmagados – pela repressão. Havia quem vivesse quentinho à sombra da conjuntura. E havia quem pagasse as favas com língua de palmo. Havia, também, os desgraçados que lambiam as migalhas da miséria como quem estivesse à mesa do senhor. É dessa matéria que se alimenta o filme – e digo “sequência de cenas” por o filme não conter, exatamente, uma história que se lhe seja propriamente exclusiva. A história está contada e recontada mil vezes: é a história do 25 de Abril de 1974, das razões que o tornaram necessário, de algumas coisas que se fizeram no imediato depois.

Sendo um musical, facilmente chega a ser visto como uma sequência de cenas, com o seu quê de descosido. Como habitual nos musicais. Acontece isto e aquilo e, às tantas, uma personagem desata a cantar uma canção que conhecemos bem e que fala com clareza naquele momento e naquela situação. Aqui, esse carácter fragmentário dos musicais não me doeu tanto como costuma doer nos musicais em geral, porque, em vários desses momentos de colocar a música a contar a história, conseguiu-se não matar o ritmo, conseguiu-se que a canção fizesse parte do enredo, que a canção acrescentasse mais alguma coisa. Não se conseguiu sempre – e foi-se conseguindo menos com o avançar do filme. Podiam ter-se sacrificado alguns “quadros”, evitado quinze minutos finais perto do meramente decorativo (ou, vá lá, comemorativo), conseguido uma economia mais enxuta e manter o conjunto mais perto de uma narrativa. Não se conseguiu sempre, mas conseguiu-se vezes suficientes para o conjunto valer a pena.

O filme não tem a sua história própria por viver da história que temos na cabeça. A dificuldade está em que nem todos temos essa história na cabeça. Ou a história não é a mesma em todas as cabeças. Quando “Portugueses” renuncia a ter a sua própria história, entrega-se nas mãos das histórias que cada um de nós tem na sua cabeça. Não será assim mesmo que tudo se passa sempre quando oferecemos uma história a um público? A questão é saber qual é a obra mais verdadeiramente aberta: será a obra que aparenta ser mais aberta ou será a obra que se apresenta como mais fechada? Umberto Eco dir-vos-ia. 

De qualquer modo, e com todos estes “ses”, “Portugueses” tem, para mim, um valor incalculável, neste tempo que é meu e que é vosso. É que o filme “Portugueses” permite desesteticizar uma série de canções que traduziam realidades brutais da repressão da ditadura e que acabam, com a distância temporal, por se tornar objetos estéticos onde o que mais facilmente captamos é a beleza da sua expressão. Ouvimos cantar sobre Catarina Eufémia e aquilo é bonito: o poema e a música. Mas aquilo é sobre o assassinato estúpido e gratuito de uma mulher jovem, de uma trabalhadora rural. Um assassinato real. Ouvimos cantar sobre o soldadinho que volta dentro de uma caixa de pinho e, mais uma vez, é bonito o poema e a letra é bem servida pela música. Mas aquilo é sobre a realidade brutal de que se morria jovem, aos milhares, numa guerra imposta ao povo português em nome de um império que era uma ficção atroz. Quer dizer: canções que nasceram para lutar contra brutalidades absurdas que nos eram impostas tornaram-se, com o tempo, objetos estéticos cuja esteticidade ameaça esvaziar o seu sentido germinal. O filme “Portugueses”, para quem tenha caído nessa armadilha (inevitável?) da esteticização da canção de luta, lembra, quer dizer, mostra aspetos do que foi a referência direta dessas canções. Esta foi, para mim, a principal interrogação que o filme me deixou: como funcionam estas marés de esteticização e desesteticização dos objetos de luta. 

No princípio do filme, há uma linha prometedora que assoma, mas depois é abandonada. Em paralelo com as músicas, de intervenção, que são o fio condutor da obra, aparecem músicas de fundo, fragmentos, vindos de outros horizontes de sentido: uma cançoneta na rádio (é identificável, mas não me lembro qual seja) e, depois, uma canção de igreja. São música, mas estão fora do plano de sentido que nos é proposto pelas canções assumidas por personagens. Fiquei à espera dessa luta de canções, as de dentro e as de fora da leitura assumida pelo realizador, mas esse desenvolvimento não aconteceu. Sabe-se lá onde poderia levar…

A cena onde cabe a interpretação d’A Tourada é de antologia: tão disruptiva como poderia ser lida a estupidez de uma censura prévia que não percebia o que estava a deixar passar, a deixar cantar. No conjunto, vale a pena ir ver “Portugueses”.

Digo “Portugueses vírgula”, ou “Portugueses,” por o realizador explicar que é uma espécie de arranque de um discurso aos portugueses, solene, como quando o Presidente se dirige à nação em comunicação formal. Então, Vicente Alves do Ó diz “Portugueses,” e arranca para um discurso que nos faz. E que vale a pena ir ouvir.


Porfírio Silva, 16 de Junho de 2025
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15.6.25

Aqui começa o mini-podcast Machina Speculatrix

10:08
O novo mini-podcast do blogue Machina Speculatrix tem uma linha geral simples: textos publicados neste blogue são objecto de curtas conversas que exploram o seu conteúdo.
O número 1, que ora se publica, debruça-se sobre o apontamento "Jim e James", que publiquei há dias, e que se encontra aqui: De Jim a James (no dia que, para alguns, já foi da "raça").





Porfírio Silva, 15 de junho de 2025
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10.6.25

De Jim a James (no dia que, para alguns, já foi da "raça")

16:13


As Aventuras de Huckleberry Finn é uma obra de Mark Twain publicada ainda no século XIX (1884 no Reino Unido, 1885 nos Estados Unidos), narrando as aventuras que vivem, juntos, um miúdo (o próprio Huck Finn, narrador) e um escravo fugitivo (Jim), ao longo do rio Mississípi e nas suas imediações. 

Embora a posição do narrador na história seja fundamentalmente determinada pelo facto de ser um miúdo em fuga do pai abusador, a principal questão social que atravessa todas as peripécias, e que emerge uma e outra vez na consciência de cada uma destas personagens centrais, é a questão da escravatura. Há, em princípio, uma proteção mútua entre o miúdo branco e o homem negro, mas a sua relação de entreajuda não é linear, sendo continuamente marcada por um conflito interior entre a moral dominante (própria do regime esclavagista) e a relação humana entre duas pessoas concretas que, não estando completamente embrutecidas pelas taras da sociedade, partilham uma ilha de sentido contra o resto do mundo: o escravo, se for apanhado, provavelmente verá chegar o fim dos seus dias; o miúdo fingiu o seu próprio assassinato, para desencorajar que o procurem; nas suas diferentes fraquezas, cada um precisa do outro para sobreviver no mundo hostil. O miúdo Huck pensa por vezes que é seu dever fazer com que o negro volte aos seus donos. Jim oscila entre a amizade pelo miúdo e a radical oposição entre a condição do branco e a condição do escravo. As hesitações do miúdo, bem como as do escravo, contribuem para a reflexão acerca da hipocrisia social face a questões tão fundamentais como a da unidade da espécie humana, questão essa que atravessa toda a narrativa.

Note-se que, quando o livro foi publicado, a escravatura já fora oficialmente abolida há cerca de 20 anos nos EUA, depois de terminada a Guerra Civil Americana, da qual tinha saído vencedor o Norte, industrializado e antiesclavagista, e vencido o Sul, rural e esclavagista. Mesmo assim, não só a prática social estava longe de refletir essa condição legal, como os Estados do Sul, passado um período de contenção, legislaram no sentido de uma feroz discriminação dos negros, baseada na ideologia da supremacia branca, impondo a segregação racial e a violência institucionalizada, exacerbada pela ação de grupos como o Ku Klux Klan, que gozavam da complacência das autoridades e de muitos “cidadãos cumpridores”. A exploração económica e a exclusão social prolongavam a escravatura. A ação do livro decorre quando a escravatura ainda era legal, permitindo extremar as peripécias para o núcleo central da questão da escravatura como sistema legal (embora se notem, nas opções das personagens, a situação diferente nos Estados do Sul e nos Estados do Norte). 

Uma das características literárias mais salientes da obra constitui, ao mesmo tempo, um dos elementos mais marcantes do ponto de vista social escolhido por Mark Twain. O tom é permanentemente coloquial, refletindo as condições sociais dos protagonistas. Huck é um miúdo pobre, fracamente escolarizado, vivendo numa sociedade rural e sem uma pertença familiar propriamente educativa. A forma como fala reflete tudo isso. Pelo seu lado, Jim é um escravo, é negro, e fala como um escravo negro. (Encontra-se aqui, precisamente, uma das grandes dificuldades no trabalho de tradução desta obra.) Outras personagens usam dialetos locais, mas o seu peso no ambiente global do texto é menos importante. 

Sendo, superficialmente, uma obra de aventuras, As Aventuras de Huckleberry Finn pode ser lido, precisamente, como um livro de aventuras para adolescentes (uma espécie de continuação do também famoso As Aventuras de Tom Sawyer, do mesmo autor, sendo que Tom também aparece neste livro). É, contudo, ao mesmo tempo, oportunidade para pensar coisas mais sérias, submersas na incrível sucessão de peripécias mais ou menos rocambolescas.

Li quando era um rapazinho (não me lembro se antes ou depois de ler Um dia na vida de Ivan Denísovitch, de Aleksandr Soljenítsin) e voltei agora a ler As Aventuras de Huckleberry Finn. Agora, passadas nem sei quantas décadas, foi um exercício de preparação para ler outra obra, recente: James, de Percival Everett. Não é que não se possa ler esta sem ler aquela, mas, creio, seria uma pena desperdiçarmos essa oportunidade de ver a funcionar um exemplo de intertextualidade tão explicitamente produzido.

Jim é o diminutivo de James. O James do James de Everett é o Jim d’As Aventuras de Huckleberry Finn de Twain. Só que tratar um adulto apenas pelo diminutivo é uma forma de o infantilizar – coisa que  tipicamente se faz a um escravo – e James não aceita esse truque da linguagem. Aliás, a operação central deste James, enquanto espelho d’As Aventuras de Huckleberry Finn, é uma volta que se dá à linguagem. Em James, James só fala “à preto” quando os brancos estão a ouvir. E apenas por ser isso que os brancos esperam – ou acreditam que é “natural”. James, a comportar-se como ele sabe, fala com mais correção do que Huck Finn. Mas esconde isso. James, em James, sabe ler. E lê. A malandrice que faz ao branco seu dono é ler-lhe os livros da biblioteca. Lê os autores do Iluminismo. Sonha com Voltaire e com Locke. Conversa com eles em sonhos. Sabe escrever e o seu crime central é apoderar-se de um lápis de um branco – e, também, de alguns livros. Aliás, o narrador agora é James, já não é o miúdo branco. Como os leitores podem ser brancos, e o escritor é negro, o autor exagera um bocadinho na cena em que se explica como funciona a dupla forma de falar de James, porque não fazia falta ser tão explicativo, nós iriamos perceber – mas talvez o autor nos esteja a dizer, aos leitores brancos, “tenho de vos explicar isto, porque os vossos preconceitos podem não vos deixar perceber” …

A obra de Twain leva uma grande volta no fim. A obra de Everett também. Mas isso não vai ser contado aqui, porque não queremos estragar o prazer da leitura. As peripécias continuam a ser muitas. Algumas das peripécias em James são as mesmas das peripécias em As Aventuras de Huckleberry Finn, mas contadas de outro ponto de vista. Além disso, algumas das peripécias em James são novas, porque o miúdo branco e o escravo nem sempre estiveram juntos e, portanto, não viram sempre a mesma coisa. De qualquer modo, há, entre as duas obras, uma intertextualidade fortíssima, muito mais forte do que é habitual nas intertextualidades que encontramos em tudo o que lemos (a intertextualidade não está só na cabeça de quem escreve, está também na cabeça de quem lê). E esse dispositivo faz andar a obra e leva-a a percorrer o seu caminho. 

A meu ver, a questão central deste James é a exposição do mecanismo perverso da naturalização. A naturalização do que não é nada natural. Naturalizar um fenómeno social é tratar como dado pela natureza das coisas algo que não assenta na natureza, mas no funcionamento da sociedade. Naturalizar a escravatura é tratar esse fenómeno social, algo que depende das nossas escolhas coletivas, como se ele resultasse simplesmente da natureza das coisas: como se a pretensa superioridade dos brancos e a pretensa inferioridade dos negros (ou dos índios, por exemplo) fosse um dado biológico, um dado da natureza, algo que estaria inscrito na materialidade do real e não nas nossas escolhas traduzidas na organização da sociedade. A naturalização do que é social é uma máscara habitual para disfarçar a iniquidade: naturalizar a condição dos pobres é tratar os pobres como se eles fosse naturalmente inferiores e, portanto, menos merecedores de viver uma vida boa – em lugar de reconhecer que a pobreza resulta da má organização da sociedade e da nossa aceitação cúmplice dessa ficção; naturalizar a exploração das mulheres é tratar as mulheres como se elas fosse “geneticamente determinadas” para fazer certas coisas diferentes daquelas que a sociedades distribui aos homens como papel social.

Em James, o sinal mais visível do erro da naturalização está no dispositivo do “falar à preto”: os brancos acham que os negros falam de uma determinada maneira porque essa é a sua linguagem, embora a personagem James só fale “à preto” com esforço, por decisão sua, para se conformar exteriormente ao estereótipo. E, nesse dispositivo artificial, acaba por cometer o erro, involuntário, de se esquecer de “falar à preto” e falar com maior correção do que certos brancos. Contudo, há um outro dispositivo, mais episódico, mas mais explícito, que vai diretamente ao cerne da questão da naturalização, da falsidade da naturalização. É o caso do grupo de cantores “Virginia Minstrels”.

Os Virginia Minstrels foi um grupo de canto e comédia, criado em 1843, em Nova Iorque, formado por cantores brancos que se pintavam de preto, para parecerem negros, cuja atuação se baseava em fornecer pretensas imitações de negros a cantar e a atuar. Podiam oferecer versões de verdadeiras canções do repertório negro, tal como podiam interpretar versões adulteradas ou pretensas canções negras, destinadas a agradar aos estereótipos dos preconceitos dominantes acerca dos negros. Historicamente, houve também grupos de negros que participavam na mascarada, reforçando o preconceito de base.

Ora, esse grupo aparece em James, integrando um homem de “raça” negra cuja fisionomia o fazia passar por branco (as aspas em “raça” devem-se ao facto de, cientificamente, a humanidade não se dividir em raças humanas, havendo, apenas, a “raça” humana). Ora, a personagem James é adquirida pelos Virginia Minstrels e é pintado de preto para parecer negro – quando ele já era negro… para aparecer como um branco disfarçado de negro. Em especial, todo o capítulo 1 da Parte 3 da obra lida detalhadamente com esta questão, que dá ocasião para uma série de peripécias narrativas. Sendo que, no essencial, obriga a pensar no erro da naturalização de fenómenos sociais, algo que permanece de atualidade na crítica social fundamental.

Vale a pena ler James, de preferência tendo ainda alguma memória d'As Aventuras de Huckleberry Finn.

*

(Não me lembro em que edição li, pela primeira vez, a obra de Mark Twain. A edição que possuo de As Aventuras de Huckleberry Finn foi adquirida muito mais tarde, é da coleção Geração Público – Livros que Ajudam a Crescer, editada há muitos anos pelo jornal Público. É uma edição descuidada, cheia de erros tipográficos tontos e facilmente evitáveis com um mínimo de cuidado na revisão. Infelizmente, já senti isso em outros volumes da mesma coleção. A edição portuguesa de James é da Livros do Brasil e é uma edição esmerada.)


Porfírio Silva, 10 de junho de 2025
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28.5.25

Reflexão, todos pedem reflexão. Em que é que o PS tem de refletir?

14:58




No espaço do PS, multiplicam-se os apelos à reflexão, à mesma cadência que se multiplicam as acusações de que a eleição rápida de novo Secretário-Geral significa que não vai haver reflexão nenhuma. Multiplicam-se as responsabilizações instantâneas de um dos dois anteriores SG, Pedro Nuno Santos e António Costa, cada um deles tomado como bode expiatório consoante as preferências. E progride a caricaturização do, até agora, único candidato a próximo SG do PS, José Luís Carneiro, classificando-o como o mais à direita que o PS alguma vez teve (se vencer). Queria deixar algumas notas sobre essas questões, porque respostas apressadas podem prejudicar o que há a fazer.


1. Eu também gostaria de poder começar, imediatamente, uma reflexão sobre tudo aquilo que o PS tem para refletir (até já fiz, noutros textos, breves recenseamentos de tópicos indispensáveis dessa reflexão). Gostaria de ter um ano à nossa frente, um ano calmo e simples, para podermos pensar em conjunto tantas coisas que temos andado a adiar pensar há demasiado tempo. Só que o PS não é um clube de reflexão, que reflete no que lhe apetece quando lhe apetece. O PS é um partido político e o seu ritmo não pode ignorar o país. Digo isto em dois sentidos.

Primeiro, vamos ter eleições autárquicas e elas impõem-se, não apenas porque temos de as vencer, mas porque elas são, para lá de uma disputa por votos, um massivo momento de reflexão acerca da vida de cada território, de diálogo enraizado entre cidadãos e candidatos a seus representantes no poder local, focado em soluções concretas para os problemas específicos de cada freguesia e de cada concelho. Umas eleições autárquicas pressupõem uma reflexão largamente distribuída por todo o país, acerca de todos os assuntos sérios da democracia nos territórios – e é justo que não queiramos roubar às pessoas esse momento de reflexão, sobrepondo-lhe as nossas reflexões internas de um partido. Não sou dos que pensam que os nossos autarcas têm sempre razão, mas creio que, neste ponto, estão com a razão do seu lado.

Segundo, no plano nacional, o PS tem de se definir, sem demora, acerca do seu lugar na legislatura que está prestes a começar: não ganhamos sempre e não podemos transformar as nossas derrotas em bloqueios institucionais, o regime constitucional inaugurado com a Constituição de 1976 está em causa e esse é um perigo maior, temos de assumir as nossas responsabilidades como partido fundador da democracia – e essa reflexão é urgente e tem de concluir numa decisão estratégica sem tardança, não pode esperar um congresso, tem de se fazer mobilizando todas as nossas forças disponíveis e os mecanismos institucionais que não foram interrompidos. 

Há, portanto, reflexão a fazer. Mas não é uma reflexão em abstrato, desligada das tarefas imediatas e inadiáveis. Num partido político responsável, pensar não é um luxo de laboratório; a reflexão faz parte da ação e dela não se pode desligar. Podemos começar pelo que é mais urgente e, depois, continuar com a reflexão mais alargada, sobre tantas matérias que já esperaram décadas para serem pensadas. Não podemos é fazer de conta que o país espera por nós: vamos começar a refletir por onde temos de começar a agir. Pessoas e partidos habituados a não terem qualquer peso nas responsabilidades nacionais podem refletir o que quiserem e quando quiserem, independentemente do que se passa na vida de todos: mas, felizmente, o PS não se pode dar a esse luxo da irrelevância.


2. Uma coisa é certa: a crítica fácil, e lapidar, a Pedro Nuno Santos, ou a António Costa, tomando-os como bodes expiatórios das nossas dificuldades atuais, pode resolver problemas biliares, mas é politicamente insana. Ambos cometeram erros, claro está. Só que clamar por reflexão e, no minuto seguinte, já ter conclusões dessa “reflexão”, condenatórias deste ou daquele, mostra alguma inconsistência. Se alguém pensa que adotar uma linha política de dar tudo a todos ao mesmo tempo seria, ou teria sido, a solução para todas as dificuldades do país e dos portugueses – esse alguém está, então, a subscrever a governação em modo de campanha eleitoral que foi aquilo a que se dedicou a AD nos últimos meses. Eu não vou por aí. 


3. A caricatura de José Luís Carneiro que alguns andam a fazer merece uma palavra. Não fui apoiante de José Luís Carneiro no passado. Neste processo, não sou admirador da forma rápida como quis ocupar o terreno e condicionar outros candidatos. Não posso, contudo, recusar que tem legitimidade para se candidatar – não apenas por já o ter feito no passado, mas porque qualquer um poderia avançar se assim o entendesse. (E ainda pode.) E porque tem cumprido as suas obrigações de animador de uma corrente dentro do partido, algo que muito valorizo, na medida em que sou um entusiasta do pluralismo que sempre animou o PS.

Provavelmente, não estarei de acordo com JLC em várias matérias de orientação política. Será exato dizer que me considero bastante à sua esquerda em várias questões da nossa responsabilidade como socialistas. Mas a um líder do PS não cabe substituir o partido, não cabe dominar, cabe-lhe, sem deixar de ter a sua marca pessoal, ser o rosto da pluralidade, da diversidade, da complexidade. Representar a síntese de opiniões diferentes, de territórios diferentes, de gerações diferentes, de atividades diferentes – e ser um multiplicador, nunca um divisor. A etiquetagem facilita a descarga emocional, especialmente quando se quer transferir a angústia para os ombros de alguém, mas não faz avançar o barco. Foi bastante prejudicial para o PS que alguns tivessem passado o tempo a dizer que PNS era radical, quando ele mostrava todos os dias moderação. Querem fazer o mesmo com JLC, se ele chegar a SG, rotulando-o assim, sem mais, de direitista? Ou isso será apenas aliviar a carga do que temos para resolver, sem fazermos a nossa parte construtiva?

4. A obrigação de cada partido é saber responder a cada conjuntura política com a sabedoria dos seus valores, dos seus princípios, da sua história – sem se deixar levar por ilusões voluntaristas.

Em 2015, a solução maioritária que permitiu desalojar o governo da troika, que impediu a continuação da governação radical de Passos Coelho e Paulo Portas, teve como protagonista António Costa, mas teve um sinal público de possibilidade pela voz de Jerónimo de Sousa, então SG do PCP. O PCP não deu esse passo por gosto, porque a maioria do PCP nunca perdoou ao PS que nos tivéssemos sempre guiado pelo princípio “pode haver democracia sem socialismo, mas não pode haver socialismo sem democracia”. O PCP deu esse passo porque tinha mesmo de evitar, ao país e a si mesmo, a continuação do programa radical de Passos e Portas (e tinha de evitar o esmagamento do movimento sindical). 

Hoje, é o PS que está confrontado com a necessidade de saber identificar o essencial e agir em conformidade. O essencial é evitar a destruição do regime democrático-constitucional resultante da Constituição de 1976. Evitar a subversão constitucional. Não tem qualquer valia política continuar a ter na mira umas futuras eleições antecipadas, para tentar reverter fora de calendário as opções da AD, quando o país precisa de estabilidade para evitar o contínuo sobressalto de que se alimenta a extrema-direita e o PS precisa de tempo para se renovar. A meu ver, o PS deve dar estabilidade política à direita democrática, desde que, com isso, garanta o regime constitucional e impeça mais um brinde eleitoral à extrema-direita.

Neste quadro, entender-se-á que eu diga que é deslocado etiquetar José Luís Carneiro “de direita” por ele estar, se bem o compreendo, a explanar a estratégia política que referi acima. O PS perdeu as eleições, um partido democrático não pode ter a tática de andar sempre a querer repetir eleições a ver se o resultado muda com a mera passagem do tempo. É preciso dar tempo para que se vejam as consequências das erradas opções do governo da AD – e isso não se faz com eleições todos os anos.

Repito: temos de responder à conjuntura política cientes do essencial e sem nos deixarmos levar por ilusões voluntaristas. Em 2015, isso pôde fazer-se com um acordo com os partidos parlamentares à nossa esquerda, porque ganhámos espaço e tempo para dar respiração ao país. E isso não significou que tivéssemos, de repente, deixado de ter divergências grandes com o PCP e o BE. Em 2025, dar estabilidade ao país, permitindo que governe uma coligação da direita tradicional, não significa que nos tenhamos convertido às suas soluções: significa que respeitamos a alternância e que ela nos dará o tempo que precisamos para sermos alternativa.

5. Quem me conhece não se espantará por eu não ter hesitado em mencionar aqui o PCP. Nunca escondi que fui um entusiasta da Esquerda Plural, aquilo que alguns ainda chamam Geringonça. E não me arrependo, porque foi uma solução política que devolveu a esperança ao país e que o país apoiou, maioritariamente, com espírito aberto e vontade de avançar (embora esteja por fazer mais essa reflexão: o que levou ao fim dessa fórmula de governação, algo que ainda nunca debatemos de forma estruturada e consequente). E aproveito para deixar esta nota final: é pena que alguns aproveitem a confusão deste período pós-eleitoral para repetir falácias há muito desmontadas acerca dessa fórmula política, querendo atirar a explicação de todos os males do mundo para a decisão de governar com o programa do PS e com o apoio dos partidos à nossa esquerda, como iniciámos em 2015.  Querer fazer deste momento, indiscutivelmente difícil, um tempo de requentado ajuste de contas com debates passados (requentado, quando nada avança de novo, apenas repisa), além de incorrer em simplismo e reducionismo analítico, é sinal perturbador de que há quem continue a olhar mais para trás do que para o caminho que temos para andar. 

Vamos lá ultrapassar isso e encetar a caminhada.


(A ilustração deste apontamento foi produzida por IA, segundo pedidos do autor do texto.)


Porfírio Silva, 28 de Maio de 2025
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23.5.25

Carta aberta a José Luís Carneiro

12:50


1. Aparentemente, camarada José Luís Carneiro, serás candidato único a Secretário-geral do PS e, nessa medida, serás o próximo líder do nosso partido. Desejo-te sorte, porque bem precisamos – tu e nós – para os anos difíceis que estamos a viver. (Se estou enganado quanto ao lote de candidatos, o que te digo a ti diria a qualquer camarada nas tuas circunstâncias.)

Nos anos que levo de vida política ativa (tirando uns anos na juventude, a minha vida partidária de militância assídua recomeçou em 2014 e, tendo voltado a ser eleito deputado desta vez, ela continuará ainda por algum tempo), fiz o que pude para assumir a minha pertença ao coletivo partidário (o que implica nunca esquecer que a minha opinião pessoal não pode sempre prevalecer e que devo evitar torpedear as decisões coletivas com comportamentos individuais) e, simultaneamente, nunca me deixei acomodar ao líder do momento (sem nunca fraquejar na lealdade aos órgãos a que pertenci e na solidariedade ao conjunto plural dos socialistas, e também sem nunca virar a cara ao debate político franco e frontal dentro da minha agremiação, nunca renunciei a dar a minha opinião, ora nos órgãos internos, ora no espaço público, e também nunca deixei de tentar refrear a autocomplacência entre nós, porque a autocomplacência é sempre o principal inimigo de um político democrático que não queira ficar míope). 

A minha atitude como militante e como dirigente socialista (creio que serás, disto, testemunha, pela proximidade em que trabalhámos na direção do partido) sempre se pautou por dois valores: um padrão de comportamento pessoal e uma ideia acerca do que é o Partido Socialista. Pessoalmente, não prescindo da minha liberdade pessoal e trato sempre de a viver em conjunto com um profundo sentido de fraternidade com aqueles que estão no mesmo barco na luta por uma sociedade mais justa. Quanto à ideia que tenho de partido, resumi-a na introdução a um dos meus últimos livros, quando escrevi: “o PS é sempre o mesmo: uma heterogénea coligação dinâmica de progressistas e democratas de muitas sensibilidades convergindo para um processo sempre inacabado de tornar Portugal um país melhor para viver, especialmente para aquele que vivem do seu trabalho” (in Esquerda Plural, Legislatura e Meia, Âncora Editora, 2024, p. 9). Quanto ao padrão de comportamento pessoal, já não tenho idade para o mudar – e não desejo mudar nesse ponto.

Quanto à minha conceção de partido, ela implica que, na minha visão, cada líder, trazendo, indubitavelmente, a sua marca pessoal, tem, também, a missão de encarnar a pluralidade e a diversidade do partido. Sempre achei um erro que, volta e meia, apareça alguém a pretender ser “o novo PS” – porque essa pretensão acaba por se traduzir numa tentativa de culpar alguém (um líder anterior) pelos males do mundo, o que, como se tem visto, não garante renovação nenhuma e serve apenas de gáudio e arma para os nossos adversários. Isto para dizer que espero de ti, além do mais, que não caias no erro de aliviar o fardo que carregarás atirando as culpas do céu e do inferno para o Pedro Nuno Santos e/ou para o António Costa.

2. Parecerá, com o que acabei de dizer, que quero evitar o debate no partido sobre os sucessos e os fracassos passados? Nada disso. Defendo precisamente o contrário. Se entendo a opção por uma candidatura única à liderança, dada a proximidade com as autárquicas e a necessidade de olharmos rapidamente para fora, confesso que tenho a seguinte preocupação: esta circunstância não nos autoriza a voltarmos a “andar para a frente” sem fazer uma avaliação fundada sobre o nosso anterior período (especialmente quando governámos). Fazendo-se rapidamente a eleição do próximo líder, ficas “com a faca e o queijo na mão”: podes querer evitar os debates de fundo e avançar com as tuas próprias ideias acerca do nosso caminho coletivo, que certamente terás. Mas podes, em alternativa, criar, a seu tempo, os momentos e os meios para uma avaliação estruturada do que fizemos no último ciclo governativo da nossa responsabilidade: o que fizemos bem (e foi muito), o que fizemos mal por más escolhas políticas (que também existiu) e o que fizemos mal porque servimos mal nas nossas funções (que foi, a certa altura, um fator de peso). Tendo tu sido um ministro importante de António Costa, e seu Secretário-geral Adjunto, compreenderás a importância dessa reflexão estruturada.

Poderão, alguns, acreditar que essa avaliação é fácil e rápida. Não concordo: algumas opções políticas tiveram contextos complexos e não é evidente onde esteve exatamente o erro de avaliação feito na altura. Três exemplos: porque demorou tanto tempo a acelerar a nossa aposta na habitação; porque demorámos tanto tempo a perceber a dinâmica que estava a ter a imigração; porque não conseguimos ser nós a resolver a questão do tempo de serviço dos professores e salvar a nossa missão com a escola pública. É fácil fazer tiro ao alvo e dizer que a culpa foi deste ou daquele ministro (em geral, culpar o ministro das finanças resulta bem como retórica política, mas, frequentemente, a explicação é curta para as necessidades). Mais difícil é aprofundar a análise e fazer uma avaliação séria e que nos dê lições para o futuro. Nesta matéria, o que espero que consigas fazer é promover no seio do PS um debate sério acerca do que temos a aprender com os sucessos, e também com os insucessos, do nosso último ciclo governativo – e que garantas que essa avaliação não seja nem autocomplacente nem cínica.

3. Não sei se seres candidato único a Secretário-geral era a situação desejada por ti ou se terias preferido disputar a liderança num contexto mais diversificado. Eu, pessoalmente, não sou entusiasta de congressos unanimistas, nem de congressos onde as diferenças passam nas entrelinhas. Eu teria preferido um congresso com alternativas: não consigo, nem quero, evitar a minha preferência por cenários de debate aberto, de competição cooperativa. Como o “povo socialista” é plural, eu também prefiro congressos plurais. De qualquer modo, isso agora não interessa nada, porque com a realidade é que temos de trabalhar. Ora, uma vantagem de seres (eventualmente) candidato único é, se tu quiseres, poderes enfrentar com clareza os problemas internos do nosso partido. Como, para seres eleito, não precisas de apascentar os caciques, podes fazer coisas que nos evitem estarmos tanto a olhar para dentro e para as pequenas lutas internas e que nos incitem coletivamente a abrir mais o partido ao pulsar da sociedade, virar o partido para as dinâmicas sociais emergentes, criar pontes entre o fora e o dentro, dar atenção às razões que têm aqueles que nos consideram ultrapassados, cuidar da diversidade que está lá fora (pessoas diferentes, gerações diferentes, territórios diferentes, condições sociais diferentes, expectativas diferentes, necessidades diferentes – não podem ser tratadas sem curar dessa diferença). E, se, afinal, não fores candidato único, este desafio não deixará de importar ao nosso futuro como corrente política progressista.

Creio que sabes, pela tua experiência anterior, que é preciso cuidar do partido. A todos os níveis. Criar mecanismos para valorizar os militantes, mas que travem aqueles que vivem apenas de controlar as estruturas e impedir o acesso. O PS não pode ser uma coleção de exércitos a trabalhar para senhores feudais (desculpe-se a figura…).

Temos de fazer confluir, nesta instituição que é o PS, duas dinâmicas diferentes: organização e rede. A organização tem sempre alguma rigidez, necessária para garantir eficiência e controlo democrático. Um bom exemplo de organização interna é a Associação Nacional de Autarcas do PS, que, com o tempo, consolidou formas permanentes de coordenação entre autarcas socialistas. Cada autarca continua a ter a sua autonomia de ação, no seu território (e sabemos como os autarcas são ciosos dessa autonomia), mas encontram-se, de facto, organizados e isso reforça e potencia a sua ação, através do apoio mútuo baseado na experiência de cada um. Não deveríamos pensar em dar ferramentas desse tipo a outras dimensões da nossa ação política? Por outro lado, precisamos de redes, porque precisamos de mais fluidez e mais adaptabilidade para reforçarmos a nossa presença em certos sectores da vida pública. O exemplo, que tu conheces por experiência, é a rede de “socialistas na educação”: nunca foi um departamento, nunca teve propriamente uma estrutura rígida, nem teve ação pública, mas permitiu manter o contacto, recolher e fazer circular informação, ouvir as pessoas, organizar debate interno (debate democrático, onde nem sempre se estava conforme com as opções governativas), estudar coletivamente algumas matérias. Esta componente “rede” é, em alguns casos, um bom complemento a formas mais tradicionais de organização e permite alimentar mais diversas militâncias reais. Permite alimentar a militância que não está necessariamente interessada em conquistar o poder nas estruturas, mas está interessada em fazer avançar os nossos valores na sociedade.

Tenho a esperança de que te interesses por este investimento em injetar vida nova numa organização que está demasiado agarrada ao plano interno e um tanto distraída de variadas dimensões da vida que se passa lá fora.

4. Em momentos de viragem precisamos de pensar, também, ideologicamente. Pensar ideologicamente não é pensar rigidamente. Não apelo a nenhuma conceção fixista dos valores do socialismo democrático. Só que, creio, é na compreensão do caminho que andámos para aqui chegar que temos de encontrar forças para atualizar os nossos valores e renovar o nosso compromisso com os portugueses. Pensar ideologicamente não é repetir frases feitas que ecoam na nossa memória das lutas passadas. Nem deverá ser perder a memória! Muito menos perder a nossa identidade! Deverá ser, isso sim, um olhar de novo para os nossos valores e olhar para o mundo e buscar as condições reais para deixarmos uma marca efetiva da nossa luta na vida das pessoas e na vida da sociedade. 

Publiquei, recentemente, o livro História das Declarações de Princípios do Partido Socialista (Âncora Editora, 2025). Consegui apresentá-lo no Porto, na Federação do PS, antes desta crise política, e, agora, vou continuar um esforço de o levar aos socialistas de outros pontos do país. Os momentos de evolução dos princípios declarados foram sempre momentos de ganhar balanço para o que faltava fazer. Desde 2002 que a nossa Declaração de Princípios permanece inalterada. Concordarei que, no essencial, os nossos valores de socialistas democráticos não mudaram. Contudo, cabe perguntar: não seria tempo de pensarmos outra vez no modo como nos apresentamos ao mundo? Não terá o mundo, desde 2002, mudado o suficiente para precisarmos de refletir de forma estruturada acerca do nosso bilhete de identidade fundamental? O pragmatismo é necessário se o entendermos como a capacidade para distinguir quais das nossas ideias não estão a funcionar no mundo real, e para perceber porquê e atualizá-las, e quais das nossas ideias funcionam bem quando levadas à prática, e continuar a aplicá-las e a melhorá-las. Espero, camarada José Luís Carneiro, que o pragmatismo (que, se bem te entendo, é algo que prezas) não dispense a capacidade para levar o PS a pensar ideologicamente nesta nova encruzilhada em que nos encontramos. O PS e o país.



Porfírio Silva, 23 de Maio de 2025
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22.5.25

PS, não nos esgotemos em etiquetagem

12:43



𝐒𝐞𝐫𝐢𝐚 𝐛𝐨𝐦 𝐪𝐮𝐞 𝐨 𝐏𝐒 𝐝𝐞𝐬𝐭𝐚 𝐯𝐞𝐳 𝐧ã𝐨 "𝐝𝐞𝐬𝐩𝐚𝐜𝐡𝐚𝐬𝐬𝐞 𝐨 𝐂𝐨𝐧𝐠𝐫𝐞𝐬𝐬𝐨",  𝐢𝐧𝐯𝐞𝐧𝐭𝐚𝐧𝐝𝐨 𝐭𝐞𝐦𝐚𝐬 𝐪𝐮𝐞 𝐬ó 𝐬𝐞𝐫𝐯𝐞𝐦 𝐩𝐚𝐫𝐚 𝐞𝐯𝐢𝐭𝐚𝐫, 𝐦𝐚𝐢𝐬 𝐮𝐦𝐚 𝐯𝐞𝐳, 𝐮𝐦𝐚 𝐫𝐞𝐟𝐥𝐞𝐱ã𝐨 𝐞𝐬𝐭𝐫𝐮𝐭𝐮𝐫𝐚𝐝𝐚 𝐬𝐨𝐛𝐫𝐞 𝐨 𝐪𝐮𝐞 𝐚𝐧𝐝𝐚𝐦𝐨𝐬 𝐚𝐪𝐮𝐢 𝐚 𝐟𝐚𝐳𝐞𝐫.

Antes de se ter iniciado a anterior campanha interna para o Congresso do PS, alertei para a necessidade de não nos reduzirmos a rótulos uns aos outros, porque a etiquetagem serve muito para cimentar tribos, mas não ajuda nada à reflexão e ao debate aberto e livre. (Esta notícia velha que deixo linkada AQUI serve para lembrar isso, que, infelizmente, se mantém actual.) A história de que uns são moderados e outros são de esquerda é apenas um inibidor de pensamento, um dispositivo para evitar discutir os problemas a sério e ficarmos pela rama.

Hoje, repetir o mantra da divisão entre "moderados" e "esquerdistas" (ou centristas e geringonços) dentro do PS é apenas insistir num erro conhecido: a repetição ad nauseum dessa conversa prejudicou muito o esforço de PNS para recentrar o seu próprio discurso (PNS cometeu erros, claro que sim, mas fez um trabalho consistente para tirar razão a quem previa que ele iria radicalizar a orientação política do PS, coisa que não fez, pelo contrário).

Por outro lado, esse tipo de conversa desvia-nos de outros debates necessários. Por exemplo, a prioridade parece-me, agora, saber como evitamos que perder as eleições se traduza em perder também o regime constitucional em que vivemos.

E, ainda por exemplo, esse tipo de conversa desvia-nos, também, da necessária discussão sobre o estilo organizativo anquilosado e o aparelhismo atroz que limita a capacidade política do PS.

Para dar apenas outro exemplo, também precisamos de debater a perda ideológica que faz com que, no PS, hoje, se ignore aquela parte da nossa tradição mais libertária e menos estatista, deixando campo aberto a que os liberais de direita pareçam a única alternativa a um discurso nosso demasiado centrado no Estado e pouco atento à iniciativa social. 

Nada disto se debate a sério se continuarmos a repetir rótulos para evitar ir mais fundo.



Porfírio Silva, 22 de Maio de 2025
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19.5.25

Renovar o PS em tempos difíceis

15:51





1. Na qualidade de diretor dos órgãos de imprensa partidária do PS (jornal Acção Socialista e revista de reflexão política Portugal Socialista), proposto à Comissão Nacional para essas funções pelo Secretário-Geral Pedro Nuno Santos (funções nas quais tive sempre o seu apoio e nenhuma tentativa de interferência), integrei o Secretariado Nacional por ele liderado e, nessa medida, integrando também a Comissão Política Nacional, sou, no coletivo, corresponsável pelos últimos tempos do partido (mesmo não tendo sido deputado neste período, o que me retirou alguma capacidade de intervenção). Como sempre fiz no passado, assumo o coletivo e procuro agir com lealdade institucional nas funções que desempenho, não andando pelas rádios e televisões a minar o trabalho dos meus camaradas, procurando exprimir as minhas opiniões nos órgãos que integro. Do mesmo modo, a intensidade da minha militância depende apenas das minhas capacidades e da oportunidade, não depende da ocupação de cargos políticos nos órgãos da República, como demonstrei no último ano. Agora, tendo o Secretário-Geral anunciado a sua demissão, e abrindo-se um novo período decisório no PS, entendo dever dar abertamente o meu contributo sobre várias matérias que considero relevantes para a democracia portuguesa e para o papel do partido na República Democrática.  

2. Primeiro está a democracia. A democracia não é só o voto. A democracia não se faz de estarmos todos de acordo quanto ao rumo das políticas públicas. A democracia vive da garantia dos direitos fundamentais de todas as pessoas, do Estado de Direito, do respeito uns pelos outros e da preservação dos mecanismos institucionais que valorizam a diversidade e o pluralismo como dinâmica central de uma sociedade aberta. Para que isto seja uma realidade exige-se uma consequência: para um partido da esquerda democrática, a aceitação da alternância no poder faz parte do cuidado pela democracia. Consequentemente, a nossa ideia de República Democrática passa pela capacidade de trabalhar com a direita democrática. Mesmo quando – e especialmente quando – ela possa ter a tentação de cair nos braços da extrema-direita. Se é verdade que o PSD atravessa uma fase da sua história que não faz jus aos sociais-democratas que fazem parte do seu património, o PS tem obrigação de tentar manter a direita democrática agarrada à Constituição de 1976, que é a Constituição que nos trouxe até à República Democrática, que é uma Constituição progressista que nunca impediu nenhuma fórmula política governativa escolhida pelo soberano que é o povo. Como disse várias vezes nos órgãos políticos do PS, a persistente incomunicabilidade entre o PS e o PSD é um problema para a democracia portuguesa. Embora seja justo reconhecer que o PSD tem mais culpa do que o PS nessa situação, tarda o momento em que o próprio PS reconheça com clareza que a incomunicabilidade entre PSD e PS é um problema que tem de ser resolvido se queremos preservar a democracia de Abril. Não é suposto que tenhamos os mesmos projetos políticos: é suposto que saibamos colocar a saúde da democracia portuguesa acima das diferenças.

3. Se a democracia é do povo, o tempo da democracia tem de ser o tempo do povo e o tempo do povo não pode ser atropelado pelo tempo das apressadas elites político-partidárias. Devia ser claro para qualquer responsável político que a sucessão quase anual de eleições legislativas acabaria num terramoto. Marcelo ou não viu isso ou quis isso. O PS tinha obrigação de ter mais juízo do que Marcelo. A anterior maioria absoluta do PS deveu-se, não à convicção esmagadora de que os socialistas eram espetaculares, mas, em grande parte, à necessidade que o eleitorado sentiu de travar a instabilidade e “deixá-los governar”. Não havia nenhuma razão para pensar que, desta vez, o povo já queria mandar Montenegro para casa passados apenas uns meses do seu governo. Todas as políticas erradas que o PS denuncia (e denuncia bem) só serão como tal julgadas pelo povo quando os seus efeitos se fizerem sentir na vida das pessoas. Esse julgamento não se fará por mero efeito do nosso anúncio. O juízo sobre as políticas da AD será feito pelo povo quando o povo sentir as consequências, não por efeito do nosso discurso – nem da nossa pressa. Montenegro cometeu o erro de prometer resolver tudo em poucos meses, mas o povo sabia que isso era demagogia e dava o desconto: deixa-o tentar, que “os outros” tão-pouco resolveram. É pura ilusão pretender que as pessoas tenham, graças à nossa denúncia, uma antecipação de dois ou três anos das consequências das políticas em curso.

É preciso dar tempo ao tempo. Desta vez, o PS descurou tudo isso. A sucessão infernal de campanhas eleitorais é o paraíso dos populistas, que só sabem berrar e estão, por natureza, sempre em campanha. Esperemos que desta vez se perceba isso e não se caia de novo na tentação de querer antecipar calendários eleitorais que fazem parte das regras da democracia. A governação de António Costa também foi atropelada pela manipulação dos calendários eleitorais, com a inefável ajuda de uma justiça com muitas aspas, para gáudio do inquilino de Belém ao serviço da sua família política, e disso podemos com propriedade queixar-nos. Não devemos é tentar replicar o processo, porque nós sempre fomos o partido que mais fielmente defendeu as instituições democráticas – e assim devemos continuar.


4. O foco do PS é o país, não é o país que deve esperar pelo PS. Todas as eleições são momentos de encontro entre os políticos e o país, mas é responsabilidade dos políticos pensarem primeiro no país. Aproximam-se umas eleições autárquicas. As autarquias são o terreno onde se joga muito da vida concreta das pessoas. A razão do sucesso autárquico do PS é a capacidade dos nossos autarcas responderem às pessoas município a município, freguesia a freguesia. Muito do que se joga nos territórios pode ser prosseguido com relativa autonomia da agenda política nacional, razão pela qual o PS pode voltar a focar-se nos trabalhos autárquico, dando-lhe agora a prioridade que nunca devíamos ter descurado. Para que isso se possa fazer, não faz sentido que o PS entre num processo eleitoral interno em paralelo com as autárquicas. O PS é uma instituição, tem órgãos em funcionamento, tem procedimentos – tem, portanto, os meios para ser dirigido, interinamente, deixando para depois das autárquicas a reflexão (que precisa de tempo) e a decisão maturada sobre o rumo a seguir nos próximos anos. Agora precisamos de foco nas autárquicas – sem distrações. Depois precisamos de reflexão, debate, decisão com sentido de futuro – sem pressa e sem concorrência de um ato eleitoral decisivo. 


5. A democracia passa por tempos difíceis. Infelizmente, não é só em Portugal. Seria miopia política pretendermos ter soluções bem identificadas – quando nem o diagnóstico está claro. Dizer que a avalanche populista é culpa deste ou daquele líder em particular, é estultícia. Pretender que são apenas as dificuldades materiais das pessoas comuns que as transformam em extremistas (tara de certa esquerda que teima em explicar tudo em última instância pela economia), é tese desmontável pelo estudo das realidades eleitorais. Ignorar as zonas cinzentas das batalhas culturais – onde querermos converter toda a gente aos padrões de comportamento das elites urbanas dá tão mau resultado como ignorar a importância da educação democrática básica nos bancos da escola – tem sido consequência de um debate político sempre dominado pelos que berram mais alto, o que é a própria negação do debate. Precisamos de caminhos onde haja mais povo-povo na política.

Ora, o primeiro instrumento do povo na política são os partidos democráticos. Como sou militante socialista, isso questiona-me, antes de mais, acerca do PS. Infelizmente, há dirigentes do PS que têm em pouca conta o PS como coletivo, como instituição, como realidade social enraizada na história da democracia portuguesa. Quer dizer, há quem veja o PS como um campo de expansão de uma ou de meia dúzia de personalidades geniais. Mas a forma apropriada, e democrática, de ver o PS é como a plataforma comum dos democratas progressistas portugueses com vocação para construir soluções para as injustiças e as insuficiências da nossa vida coletiva, com as pessoas concretas tal como elas existem e com humanidade, sem exclusões.

Não falo de aparelho, nem de aparelhismo, no modo em que alguns destratam assim os dirigentes socialistas, a qualquer nível que se considere (nacional, federativo, concelhio, local), porque tenho em elevada consideração muitos dirigentes, em todos os níveis de decisão partidária, que prejudicam a sua vida pessoal em serviço dedicado ao coletivo partidário e às suas missões na sociedade. Mas, sim, há no PS um certo aparelhismo em fenómenos que estão identificados e temos de erradicar:

- os órgãos colegiais do partido têm de funcionar, com regularidade, a todos os níveis, servindo substantivamente para estudar e preparar as decisões a tomar e não apenas para ratificar aquilo que o “chefe” (a qualquer nível) já decidiu em “petit comité”;

-  as escolhas de representação democrática (candidatos a autarcas ou a deputados, por exemplo) têm de ser guiadas para potenciar a capacidade de intervenção em nome de todos, não podem ser instrumentos de luta interna (não faz sentido escolher um candidato em vez de outro com a “encomenda” de ganhar assim posição privilegiada para uma disputa interna numa federação ou numa organização autónoma, não faz sentido afastar um candidato a presidente de câmara com potencial vencedor por ele não apoiar este ou aquele numa disputa interna);

- não faz sentido subordinar a representação exterior do partido a mensagens táticas que não respeitam a permanência e a pluralidade do partido (como a inédita substituição de todos os eurodeputados numa eleição, em completa incompreensão das condições de eficácia da delegação no parlamento europeu)

- não faz sentido tentar penalizar camaradas por delito de opinião;

- não faz sentido afastar autarcas em funções de uma recandidatura porque “escolheram mal” numa eleição interna (ou recorrendo a misteriosas “sondagens locais” como cortina de fumo) …

Erradicar o aparelhismo-grupismo tem de vir a par com uma renovação do próprio funcionamento do PS: como é possível não termos um secretário nacional, de primeiro plano, para as questões do trabalho, que dialogue quotidianamente com os sindicalistas socialistas? Ou não termos um forte secretário nacional para as autarquias? Como é possível não termos falado de educação durante toda a campanha eleitoral (e de termos desprezado o trabalho interno anteriormente realizado nessa frente)? Como é possível não falarmos de alterações climáticas numa campanha eleitoral e depois queixarmo-nos de que a juventude se desinteressa de nós? Como é possível não termos nenhum trabalho organizado com os milhares de socialistas envolvidos em dinâmicas associativas por todo o país?

Aparentemente, empobrecemos a nossa tradicional diversidade de pensamento, as nossas raízes em inspirações diversas, e acabámos por nos acomodar a uma espécie de centralismo político que só valoriza as dinâmicas sociais empurradas pelo Estado, desvalorizando as dinâmicas de iniciativa das pessoas e das comunidades (deixando, desnecessariamente, o campo livre aos liberais de direita, quando há espaço na tradição socialista para as dinâmicas de iniciativa de baixo para cima).

Para mudar a política, é preciso mudar o partido. Mas, mudar o partido não passará, de modo nenhum, por desvalorizar o que fizemos antes. Reconhecer os erros, passados e presentes, é necessário. Avaliar o que fizemos e o que deixámos por fazer. Mas isso não é compatível com apontarmos apenas os erros dos outros camaradas, implica reconhecermos também os nossos próprios erros e não desvalorizarmos os erros de alguns só porque pertencem ao “nosso grupo”. E nunca deixarmos por mãos alheias os créditos do que fizemos pelo país, no passado mais antigo e, também, no passado mais recente. Não voltemos a cometer o erro de, por tática interna, menosprezar o muito que este partido deu ao país, em cada um dos nossos governos, em cada uma das nossas lideranças.


6. Só é vencido quem desiste de lutar. Só é vencido quem desiste de votar. Só é vencido quem desiste. Os militantes do PS farão com que a esquerda democrática não seja vencida de forma permanente. Estamos na luta, como sempre estivemos. Mas, cuidado: os que se apressem a avançar para a liderança do PS, por favor, não acreditem, ingenuamente, que basta navegar nas derrotas do Secretário-Geral cessante para ganhar o partido e conseguir renovar o PS. Aos putativos candidatos apelo a que não sejam complacentes consigo mesmos, não se sintam contentinhos com o que temos, porque o que há a fazer é muito profundo. Duro. Lento. Difícil. Mas indispensável. Salvar a democracia exige renovar o partido, na sua essência de movimento popular. E, aí, todos teremos uma palavra a dizer.



Porfírio Silva, 19 de Maio de 2025
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17.3.25

Trump e a paz

21:40


Não acredito numa palavra de Trump, não acredito que queira a paz, nem que lhe interesse minimamente o respeito pelo direito internacional. Quando Trump afirmou, em campanha, que conseguia a paz entre a Ucrânia e a Rússia em 24 horas, estava, claro, a mentir – o que não se estranha.

 

No entanto, temos de admitir que Trump demonstrou que era possível agir para empurrar a Ucrânia e a Rússia para uma negociação. Trump é uma marioneta de Putin - compreende-se, eles são, superficialmente parecidos em termos de desrespeito pela democracia. Por isso mesmo, Trump não vai procurar uma paz justa, vai procurar beneficiar – mais precisamente, lucrar – com todo o processo. Até por isso, seria melhor que outros tivessem tomado a iniciativa de levar a Ucrânia e a Rússia para a mesa das negociações.

 

Então, porque é que Biden não tomou essa iniciativa? Porque é que a União Europeia não tomou essa iniciativa? Teria sido preferível que essa necessidade – provocar negociações para a paz – tivesse sido preenchida por gente mais fiável do que Trump. É incompreensível que tenham ficado à espera de Trump para que esse passo fosse dado.

 

Tudo isto tem, na base, um problema: o chamado "Ocidente", com a derrocada da União Soviética, passou a desprezar as preocupações de segurança da Rússia. A arrogância "ocidental”, convencida de que podia "entalar" a Rússia, encostá-la à parede, aproveitando esse momento de aperto, foi uma atitude míope. O "Ocidente", literalmente, enganou Gorbatchev, aproveitando a fraqueza do seu país nesse momento, e tirou tudo o que podia da situação, numa mesquinhez de vistas curtas, desprezando as garantias que sugeriu ao homem da perestroika.

 

Qualquer estadista que tivesse feito a escola primária das relações internacionais sabia que isso não podia durar no longo prazo. A Rússia, por muitas fraquezas que tenha, é uma potência com um pé na Europa e a Europa só pode ser segura para todos se todos sentirem que têm garantias de segurança. Cercar sistematicamente a Rússia, encostar-lhe armas às suas fronteiras, é irresponsável.

 

A Rússia é uma ditadura horrível. Mas nunca foi com isso que o "Ocidente" governamental se preocupou. O "Ocidente" foi oportunista, foi irresponsável, distraiu-se do ponto básico: só há segurança para nós se houver segurança para todos. A Rússia desprezou o direito internacional ao invadir a Ucrânia e o "Ocidente" esteve certo em colocar-se do lado do invadido. Certo. Mas não chega. Era preciso ter começado a preparar uma saída razoável para todas as partes. Era preciso ter levado a sério o futuro, não apenas a crise presente.

 

A guerra é um limite existencial. A guerra é a suprema irracionalidade. A guerra é o motor por excelência do sofrimento humano. É insuportável ouvir falar de "vamos dar a vida por isto e por aquilo" - sendo que só dizem isso aqueles que nunca irão à guerra ficar estropiados e morrer. Ter esperado que chegasse Trump para começar a pensar como acabar com a guerra, foi simplesmente uma irresponsabilidade e uma desumanidade. Não alinho nos falsos pacifismos ingénuos, não é desarmados e à mercê das armas dos outros que podemos contribuir para a paz; se não tivermos força nada podemos determinar de positivo no avanço para a paz. Precisamos, na Europa, dos nossos próprios meios para nos autodeterminarmos - mas temos de usar da nossa força para construir uma segurança comum, porque não existe segurança só para um dos lados.

Parece que quase todos os dirigentes políticos da Europa esperaram pela chegada de Trump para compreender isso. Desgraçadamente.


(A ilustração acima foi gerada por Inteligência Artificial, a pedido.)

Porfírio Silva, 17 de Março de 2025
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15.3.25

Por uma radical defesa das instituições


Deixo aqui, para registo, o editorial que publiquei ontem (14/03/2025) no Acção Socialista.

***

Há algumas semanas, aquele que chefia o partido de extrema-direita no nosso país, acossado por mais um dos escândalos de grosso calibre que têm minado uma larga fatia do seu grupo parlamentar, recorreu à sua manobra habitual: partir para o insulto para tentar desviar a atenção. Um dirigente do seu partido estava acusado da prática de sexo com menor a troco de dinheiro e o presidente da agremiação, em vez de começar pela sua casa política a “limpar Portugal”, decidiu insultar, repetidamente, dois antigos deputados, antigos ministros, antigos dirigentes socialistas: Paulo Pedroso e Eduardo Ferro Rodrigues, este último ex-Secretário-Geral do PS e recente (2015-2021) Presidente da Assembleia da República. Os insultos foram proferidos nas instalações da Assembleia da República e foram distribuídos entre o próprio hemiciclo, no plenário, e os Passos Perdidos. 

O atual Presidente da Assembleia da República (PAR), José Pedro Aguiar-Branco, não se deu por achado. O que estava em causa não era apenas uma expressão política mais forte, nem uma mera deselegância. Era insulto. Era pura difamação. Não era uma opinião política, era mais uma mentira, uma calúnia soez. 

Na primeira oportunidade em plenário, o Grupo Parlamentar do PS, pela voz do seu vice-presidente Deputado Pedro Delgado Alves, não apenas denunciou a situação, que qualificou como “mentira” e “difamação de servidores públicos toda a vida, de lutadores pela democracia, construtores da democracia", como solicitou que houvesse explicitamente um “reparo”, um “repúdio” do ataque, em defesa do antigo Presidente do Parlamento. 

Apesar dos desenvolvimentos que estão em discussão no que toca ao Código de Conduta dos Deputados, Aguiar-Branco, que não estava a presidir aos trabalhos no momento em que a questão foi suscitada pelo PS, nunca deu qualquer sinal de entender que não podia acomodar-se ao insulto e à difamação de um antigo Presidente do Parlamento. 

Perante o ruidoso silêncio de Aguiar-Branco sobre esta matéria, Eduardo Ferro Rodrigues enviou, a 24 de fevereiro passado – soubemos agora – uma carta à segunda figura do Estado. Aí se pode ler: 

“Doze dias passaram sobre estas calúnias, muitas das quais proferidas no Parlamento de que Vossa Excelência é Presidente, algumas delas em Plenário e lembradas na Conferência de Líderes que Vossa Excelência dirige. 

Foram muito graves institucionalmente as ofensas difamatórias e cobardes proferidas contra mim. 

Fui com muito orgulho e honra Presidente do Parlamento, eleito e reeleito em 2015 e 2019. Nunca ficaria em silêncio perante qualquer insinuação ou calúnia feitas nessa AR contra qualquer dos Presidentes que me antecederam – Barbosa de Melo, Almeida Santos, Mota Amaral, Jaime Gama ou Assunção Esteves. Nunca permitiria que os caluniassem ou ofendessem, em nome de qualquer "liberdade de expressão". 

Estou seriamente ofendido e indignado. Sinto-me atingido na minha honra pelas palavras de quem me caluniou e também pelo silêncio do Presidente da Assembleia da República. 

Espero que atempadamente ainda se pronuncie sobre tudo isto, também em defesa do prestígio da Instituição que tem a responsabilidade de representar.” 

Embora tenha lido referências noticiosas, não vi na sua integralidade a resposta de Aguiar-Branco a Ferro Rodrigues, razão pela qual não a vou comentar. O que sei, porque isso todos podemos constatar, é que o atual PAR, Aguiar-Branco, não deu nenhum sinal público de entender que este caso devia mobilizar o seu dever de defesa do Parlamento. Não deu nenhum sinal público de entender a gravidade da calúnia contra um antigo PAR. Parece que tudo continua a caber na liberdade de expressão dos deputados. 

Como ontem disse no Parlamento a deputada do PS Isabel Moreira (ver notícia nesta edição), ao vivermos tempos em que, “em nome de uma falsa liberdade de expressão, se permite um palco de calúnia e difamação”, enquanto se apelidam de “fake news” notícias que incomodam, temos aí sinal de estarmos num “momento de degradação do regime”. 

Um sinal claro dessa “degradação do regime” é a incapacidade das pessoas que exercem funções da mais alta responsabilidade assumirem o cuidado que lhes é devido pela integridade das instituições. Trata-se da incapacidade para entender a qualidade especial das instituições humanas. Qualquer cidadão com 18 anos pode ser eleito deputado e qualquer deputado pode ser eleito presidente do parlamento, não é preciso pertencer a nenhuma casta de iluminados para exercer essa função; ser presidente do parlamento tão-pouco transforma essa pessoa num ser humano diferente dos outros, não se lhe pede que transcenda a natureza humana, nem que seja um super-herói. Mas a pessoa colocada nessa posição tem de assumir a especificidade da sua função. Exercer o seu papel. Especificamente, a segunda figura do Estado não pode colocar as outras dimensões da sua vida em prejuízo da sua responsabilidade institucional. Tem o dever de ver e ler as situações do ponto de vista da Constituição e da lei, que é o que conforma, neste caso, o seu lugar institucional, e não de qualquer ponto de vista particular. 

José Pedro Aguiar-Branco, mais recentemente, colocou outra pedra nesta degradação, ao proferir, numa reunião partidária, teoricamente à porta fechada e na prática audível para todos os jornalistas circunstantes, a consideração, noticiada e não desmentida, de que o Secretário-Geral do PS fez “pior à democracia em seis dias do que André Ventura em seis anos”. Pedro Nuno Santos respondeu com grande sentido de Estado e grande elevação, recusando que tal episódio prejudique as relações institucionais entre ambos, verbalizando até alguma compreensão pelo estado de espírito em que tão desastrado pronunciamento fora proferido. Louvo Pedro Nuno Santos pela elevação, mas isso não nos impede de afirmar, claramente, que um Presidente da Assembleia da República não deixa de o ser por se encontrar numa reunião partidária ou em qualquer outra reunião – e, portanto, não é admissível qualquer intervalo no decoro que deve praticar na sua relação com os deputados. Já não bastava o descuido em condenar que deputados insultem outros deputados, acresce um pronunciamento político desequilibrado, desajustado, injusto, acerca do líder do maior partido da oposição. 

Gritar pela liberdade não chega para ser democrata. Não é possível ser democrata sem defender as instituições próprias da democracia. É por isso que, se conquistámos a liberdade a 25 de Abril de 1974, só conquistámos a democracia, como regime, com a Constituição e com as instituições conformadas de acordo com a vontade popular expressa e com as regras legítima e legalmente consagradas. Gritar pela liberdade e manter-se passivo perante os ataques às instituições, ou, mesmo, minar por dentro o próprio funcionamento das instituições, não é um comportamento democrático. Vivemos tempos difíceis, também, porque chegaram às mais altas responsabilidades concidadãos que não têm a clareza destes pontos a guiar a sua ação. 

A defesa radical das instituições democráticas – radical, quer dizer, plena e sem tergiversação, sem cedência aos interesses partidários de curto prazo – é tarefa de primeiro plano na defesa da própria democracia. Que não nos cansemos de o defender e de o praticar. 

 

(Ligação para a publicação original: Por uma radical defesa das instituições.)

(A ilustração foi gerada por uma ferramenta de IA.)


Porfírio Silva, 15 de Março de 2025
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