24.6.22

Ucrânia e UE: os variados prémios à Rússia e o engodo dos momentos históricos


 
 
Com o estatuto de candidato atribuído à Ucrânia, e com um clima onde já há quem fale de uma Confederação Europeia, com uma série de países candidatos ligando-se a Bruxelas numa versão ligeira, num círculo exterior à mesa dos Estados-Membros, há muito quem fale em "momento histórico" enquanto se apressa a juntar-se à fotografia. Infelizmente, o problema dos "momentos históricos" é que é muito comum vir primeiro a festa e só mais tarde o banho de realidade que decorre do que acontece nesses momentos. A política hipermediatizada dos nossos dias é, muitas vezes, uma mera política de "gestos", faltando muitas vezes a coragem para parar para pensar. Quando as consequências acontecem, a maior parte dos actores já saiu da fotografia do momento histórico e deixa que sejam outros a lidar com os efeitos de tão espectaculares "gestos".  
 
O Conselho Europeu decidiu aceitar a Ucrânia como país candidato à União Europeia. Esse acto, mais do que uma tradicional decisão acerca de quem queremos que pertença a esta organização regional, é uma mensagem com um conteúdo mais focado, mais estreito, mais centrado no presente. A decisão é uma mensagem dirigida à Rússia, dizendo que o agressor não pode obter um prémio, que a UE não dará um prémio ao invasor. A recusa do estatuto de candidato daria, neste momento, a mensagem contrária e, por isso, a decisão neste momento não podia, provavelmente, ser outra. Especialmente quando são raros os que querem raciocinar mais pausadamente sobre o "gesto".

O problema é que há várias formas de dar um prémio à Rússia, um prémio que o invasor não devia ter. 
 
Se a Rússia, com a invasão e a guerra, conseguir desorientar a UE, se  conseguir afectar a coesão interna da UE, se conseguir que dentro da UE se relativizem valores, que se esqueçam princípios, que os procedimentos ad hoc se sobreponham a métodos de decisão apurados ao longo de décadas, se conseguir abanar as instituições da UE, então a Rússia terá obtido um enorme prémio pela sua agressão à Ucrânia. A Rússia quer uma UE fraca, por isso apoia as extremas-direitas que cá dentro trabalham contra as nossas democracias. Se conseguir, por esta via, enfraquecer a UE, a Rússia terá um prémio que o invasor não devia obter. A benevolência com que hoje se olha para Estados-Membros que não respeitam o Estado de direito, como a Polónia e a Hungria (a par da simpatia com que, na NATO, se lida com as pretensões da autocracia turca) é um sinal perigoso desse risco de erosão da União Europeia (o risco de voltarmos ao estilo da guerra fria, onde todo o julgamento político se resume a "está por nós ou está contra nós?" face ao "outro lado").

Neste quadro, qualquer tentação de passar por cima dos critérios estabelecidos para ser membro da UE (os chamados critérios de Copenhaga) para facilitar a adesão da Ucrânia contém o risco de um terramoto institucional, imediatamente reconhecível ou não. No bojo desse risco jaz a possibilidade de fazer renascer profundas divisões numa União Europeia, provocadas pela assimetria de impactos da inflação galopante e pelos previsíveis confrontos acerca da receita a ser aplicada pelo BCE.
 
Ainda por cima, nada garante que entrar numa década de complicadas negociações à procura de uma nova arquitectura institucional para o espaço europeu seja aquilo que os povos europeus esperam neste momento de aflição. Não será fácil convencer as pessoas de que aquilo que o momento precisa é um novo tratado.

 
 
Porfírio Silva, 24 de Junho de 2022
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9.6.22

Morte assistida

10:00



Hoje, por iniciativa do Grupo Parlamentar do Partido Socialista, a Assembleia da República volta a debater (e a votar) as condições em que a morte medicamente assistida não é punível. Deixo aqui a minha intervenção no plenário do Parlamento quando os projectos de lei relativos a esta matéria foram discutidos e votados na generalidade, a 20 de Fevereiro de 2020. Esta intervenção ainda espelha a minha posição. E a minha posição não consiste numa indiferença liberal face aquilo que outras pessoas possam fazer com as suas vidas. A minha posição assenta na sociedade que eu defendo: uma sociedade onde se respeitem os outros, com base numa empatia indispensável ao laço social, uma sociedade onde a compaixão tenha lugar e faça sentido.

***

Permitam-me, senhores deputados, que comece por reflectir sobre a intervenção que o senhor deputado António Filipe aqui nos trouxe, centrada nas obrigações do Estado.

Na iniciativa do PS, o respeito pela autonomia da pessoa é uma dimensão fundamental, mas há, sem dúvida, uma dimensão social, colectiva, desse valor. Há uma irredutível dimensão ética neste debate e a verdade é que não me reconheço numa ética individualista. Transpondo uma ética de responsabilidade partilhada para um raciocínio acerca das obrigações do Estado, eu não apoiaria uma legislação que fosse indiferente à disposição de morrer, por qualquer motivo e em qualquer circunstância, porque creio que a legislação deve expressar um equilíbrio entre o plano individual e o impacto social das normas. E por isso valoro positivamente a proposta do PS. Mas também não creio que seja produtivo voltar às teses de oposição entre direitos individuais e direitos colectivos, porque, historicamente, tais concepções redundaram em regimes de esmagamento das liberdades individuais.

Senhores Deputados,
Não há lugar para nenhuma arrogância quando tratamos da vida e da morte, e a morte faz parte da vida, a morte é mesmo uma etapa muito importante da vida.
Dúvidas todos temos, porque a morte natural há muito que deixou de ser a morte mais comum, rodeados como estamos por fármacos e máquinas, por um aparato técnico-científico capaz de transformar o direito à vida num dever de viver. Mas a vida humana não é só biologia, e nem toda a técnica e toda a tecnologia, juntas, conseguem aliviar toda a dor. E quem somos nós para julgar o sofrimento dos outros?

Em matéria tão importante de ponderação de direitos, não podemos fechar-nos em falsas fronteiras. Por isso convoco a este debate o teólogo católico Hans Küng, que defende a possibilidade de a pessoa escolher a eutanásia, como forma de nos deixarem assumir uma responsabilidade pessoal na passagem para a morte. Küng cita, do livro do Eclesiastes, esta frase: “há um tempo para viver e há um tempo para morrer”, um pensamento que junta significativamente a responsabilidade pela nossa vida e a responsabilidade pela nossa morte.

Longo de vários anos vai o debate, na sociedade civil e no parlamento, em torno da despenalização da morte assistida. É compreensível que nada suspenda em definitivo todas as nossas dúvidas. Mas o que eu pergunto, senhoras e senhores deputados, e pergunto a todos e cada um, em todas as bancadas incluindo a minha, o que eu pergunto é: temos o direito, face às pessoas concretas que esperam poder tomar responsabilidade pela sua morte, temos o direito de as fazer esperar um ano atrás do outro, uma legislatura atrás da outra, repetindo uma e outra vez o mesmo ciclo de argumentos só para retardar uma decisão?

Todos temos dúvidas, e elas têm de ser trabalhadas na especialidade, mas não temos o direito de exigir a ninguém o martírio. Penso naqueles que tomam uma decisão sobre a sua morte, mas não podem concretizar o que decidiram, porque fisicamente já não são capazes sozinhos. Será justo deixar para outro ano, para outra legislatura, uma resposta à sua opção?

Ninguém decide morrer porque sim. Ninguém decide morrer de ânimo leve. Toda a vida tem dignidade. Mas eu não quero impor a outra pessoa a minha visão da dignidade, tal como não quero sofrer, eu, essa imposição.

É isto que nos move, tão simplesmente.


Porfírio Silva, 20 de Fevereiro de 2020


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1.6.22

Ressentimento: a palavra-chave no artigo de Cavaco Silva

16:13
 
 
Lemos hoje um artigo de Cavaco Silva no Observador. A frase mais importante para perceber o interesse do artigo no actual contexto político, considero eu, é a seguinte: "Como é sabido, depois de um forte combate eleitoral entre dois grandes partidos apodera-se do derrotado um certo ressentimento que o leva a fugir ao diálogo construtivo com o partido vencedor."
 
E, nessa frase, a palavra-chave é "ressentimento". Ressentimento explica o artigo e explica os riscos que corre o PSD na actual conjuntura - já que não é possível ignorar que Aníbal Cavaco Silva esperou pela eleição de Luís Montenegro para responder a um discurso de António Costa que já foi proferido há várias semanas, indicando que o seu artigo do ressentimento se destina a "ajudar" a nova liderança do PSD a traçar um rumo.
 
Se o ressentimento pela derrota eleitoral condicionar o PSD, corremos o risco de que o maior partido da direita democrática opte por uma linha de desvalorização da sua inserção institucional, consubstanciando um risco de desinstitucionalização do PSD. Não é certo que isso aconteça, o PSD pode ainda ter forças internas para evitar essa deriva, mas há sinais que convém acompanhar. Dou dois exemplos.
 
O primeiro exemplo é o facto de Luís Montenegro ter, recentemente, defendido uma comissão de inquérito parlamentar ao chamado "caso de Setúbal", relativo a uma eventual ocorrência de uma intervenção inapropriada de cidadãos russos no acolhimento de refugiados ucranianos no concelho de Setúbal. O entretanto eleito líder do PSD defendeu (defende?) uma comissão parlamentar de inquérito quando a Assembleia da República já fez um conjunto alargado de audições que, até agora, não confirmaram nenhum caso - e muito menos produziram alguma coisa que indique existirem outros casos. Quando há investigações em curso para apurar o que realmente aconteceu. Quando a competência de fiscalização das câmaras municipais é das respectivas assembleias municipais. Quando o desempenho exemplar de Portugal no acolhimento de refugiados, designadamente refugiados ucranianos, é reconhecido quer pelas associações de imigrantes ucranianos no nosso país, quer pelo próprio Presidente Zelinski. Quando tudo isto significa que a tentativa de transformar o "caso de Setúbal" numa nuvem de escândalo nacional é algo que só pode ser característico de um partido extremista como o do protofascista. Foi isso que fez o partido do protofascista, apresentando uma iniciativa parlamentar que traduz a declaração de Luís Montenegro. O que fará o PSD na Assembleia da República: vai atrás do protofascista?
 
O segundo exemplo do risco de desinstitucionalização do PSD é a tentação que se sente em alguns sectores do PSD para aproveitar o (mau) exemplo da Câmara Municipal do Porto para tentar fragilizar, e eventualmente desmembrar, a Associação Nacional de Municípios Portugueses. O álibi é a divergência entre municípios e governo acerca do financiamento da descentralização. É natural que essas divergências existam, mas elas têm de ser negociadas e resolvidas entre as partes - não aproveitando a circunstância para destruir o historial de trabalho conjunto, não aproveitando para enfraquecer as instituições.
A ANMP existe desde 1984, tem vivido bem com diferentes maiorias no poder local, é dirigida por autarcas de todos os partidos, tem agido em grande independência do governo e do poder central: por exemplo, a ANMP dá parecer desfavorável aos Orçamentos de Estado em 2020, 2021 e 2022 e esses pareceres foram aprovados por unanimidade. Isto mostra que seria um enorme erro sacrificar a ANMP a uma divergência, que existe, mas que tem de ser resolvida pelo diálogo e pela negociação. Esperemos, por isso, que o PSD, como principal partido da oposição, se recuse a ir por este caminho - mas temos de estar atentos a esse risco. 
 
Tudo isto por uma razão simples: se o ressentimento (para usar a palavra escolhida por Cavaco Silva) se revelar a base da nova fase do PSD, o risco de desinstitucionalização existe. Existe o risco de que o PSD alinhe na conversa anti-sistema, esquecendo que "o sistema" é, precisamente, o sistema democrático. Queremos crer que o PSD tem todas as condições para evitar esse risco. É preciso é que tenha para tanto vontade política.
 
 Porfírio Silva, 1 de Junho de 2022
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