1. Dirijo-lhe esta mensagem sobre a sua anunciada candidatura presidencial, porque, evidentemente, não posso ser indiferente a essa iniciativa política de uma militante do partido onde também me mobilizo. Contrariamente ao que se diz e escreve por aí, não tenho notícia de que António Costa tenha mandado calar o PS em matéria de eleições presidenciais. Uma coisa é solicitar aos membros do Governo que não confundam as suas funções com o debate pré-eleitoral; outra, bem diferente, seria solicitar aos socialistas que não se envolvam no debate, o que não aconteceu. Aliás, este debate já começou nos órgãos do PS, os quais, certamente, serão chamados a decidir oportuna e atempadamente sobre esta matéria importante para a nossa democracia.
Pela minha parte, já tive oportunidade de me pronunciar nos órgãos internos do meu Partido, o local que privilegio para a formação de uma orientação coletiva. Contudo, em maio passado, parte da minha intervenção na Comissão Política Nacional sobre as presidenciais foi tornada pública pela comunicação social, de forma razoavelmente rigorosa, como tive de reconhecer na altura.
2. Para esta reflexão que quero partilhar consigo tomo, pois, como ponto de partida, o que naquela ocasião foi público do que disse.
Primeiro, embora a prioridade dos socialistas tenha de ser a recuperação social e económica de Portugal, as presidenciais fazem parte do processo democrático que deve permitir criar as condições políticas para concretizar com sucesso esse trabalho.
Segundo, um eventual apoio do PS a Marcelo Rebelo de Sousa (MRS), declaradamente ou por não se posicionar, introduziria novos e importantes desequilíbrios no nosso regime democrático. Essa opção abriria um novo espaço à direita mais à direita. Ofereceria à extrema-direita o bónus de ser a principal novidade das eleições presidenciais, o palco da campanha. É disso que vivem os movimentos antissistema: ganharem o palco suficiente para parecerem decisivos e aglutinarem toda a espécie de ruturas fragmentárias com o que dizem ser a elite no poder (que é a forma como tratam os eleitos em democracia). A amálgama de radicalismos de direita que sempre namoraram o passismo seria vingada pelo venturismo, favorecendo uma reconfiguração da direita com vetores radicais mais agressivos. Um Ventura qualquer não ganhará as eleições, mas aproveitará a oportunidade para criar um foco federador de uma direita mais radical que perturbará o espaço do PSD e poderá puxar o PSD mais para a direita. Já vimos noutros países o preço que se paga por pensar que a extrema-direita é útil para enfraquecer a direita democrática.
Terceiro, este cenário seria agravado no caso de, na área do PS, só estar disponível um candidato populista, sem histórico de um programa de esquerda articulado e coerente, mas com um histórico de confundir a política com corrupção e de pintar o PS como uma associação de malfeitores que já foi liderada por um secretário-geral criminoso.
3. Tentarei avançar esta reflexão que partilho consigo a partir daqueles elementos. O ponto principal que quero aqui esclarecer é o de uma candidatura populista na área do PS. É certo que não mencionei o seu nome naquele contexto, mas também é certo que ele estava na minha mente nessa altura. Parece que isso escandaliza alguns. Há quem diga “não lhes chamem populistas, chamem-lhes extrema-direita”. Sim, há populistas de extrema-direita. Mas também há populistas de esquerda.
Há alguns anos ofereci a seguinte caracterização genérica: populistas são aqueles que fazem de conta que são simples e fáceis de resolver os problemas que são complexos e difíceis de atacar; os populistas dificultam a resolução dos problemas porque, com as suas fantasias simplificadoras, impedem a comunidade de compreender quão complicado é o mundo e estorvam o esforço de costurar soluções que o sejam mesmo, em vez de ilusões.
Se esta caracterização corresponde a um método político, forçoso é admitir que há propostas políticas de sinais diferentes que adotam o populismo como método. Tal como há ditadores que se reivindicam da direita e ditadores que se reivindicam da esquerda, conservadores de direita e conservadores de esquerda, há populismo de direita e populismo de esquerda. Aliás, há pensadores e ativistas que reivindicam explicitamente um populismo de esquerda.
Podemos discutir se é ou não o seu caso, mas é indiscutível que há populismos de esquerda. Essa caracterização, só por si, não atira ninguém para fora do debate democrático, mas merece consideração política. Em minha opinião, algumas das suas posições são caracterizáveis como populismo, na medida em que, designadamente no campo da justiça, tolera manifestações de desrespeito pelo Estado de direito e justifica práticas que desconsideram garantias com dignidade constitucional, pondo meritórios objetivos de salubridade pública em conflito com direitos individuais. O que não aceito, muito menos aceitaria na primeira magistrada da República.
Para os meus valores políticos, esta apreciação justifica que eu considere pernicioso para o PS que a participação do socialismo democrático nas presidenciais seja assegurada exclusivamente por um (ou uma) populista de esquerda. Tal como considero pernicioso que o PS participe nessas presidenciais alinhando na equipa de um candidato da direita. A sua candidatura pode dar um contributo relevante para o próximo processo eleitoral presidencial, à esquerda, embora eu preferisse poder votar numa ou num candidato do socialismo democrático que apostasse mais claramente no reforço da democracia representativa, participativa e deliberativa, sem atropelamentos ao Estado de direito e sem cedências aos falsos moralismos dos puros contra os impuros.
4. Convenhamos que há muitos anos que o espaço do socialismo democrático tem uma grande dificuldade em gerir a sua participação nas contendas presidenciais. Não vale a pena repetir aqui o histórico, porque a lista é longa e variada. Temos o dever de fazer algo para que não corra mal outra vez. O que me preocupa não é a pluralidade de candidaturas, o que me preocupa é a necessidade de nos sabermos focar no que importa.
Sou, no PS, dos que convivem bem com a diversidade do nosso espaço. E dos que vivem com alegria na pluralidade da esquerda. Mas a diversidade não deve ser um fator de desunião, mas, antes, um caminho de construção da unidade plural. A Ana Gomes aparece, aos olhos de alguns, como uma candidata da esquerda do PS. Mas não vejo que a sua candidatura possa ser aglutinadora se persistir numa tónica muito presente nestes primeiros dias da sua condição de candidata, que consiste em falar como se tivesse vindo principalmente para atacar o líder do PS e atual PM. Alguns apareceram publicamente a apoiá-la com a justificação de ser necessário fazer frente a António Costa. Até houve quem acrescentasse que o problema de MRS é ser demasiado próximo de António Costa, esperando que Ana Gomes corrigisse isso. Ainda estou para perceber se isso corresponde ao que idealizava Francisco Assis quando lançou a sua candidatura. Espero que não se repita a tentação das últimas presidenciais, quando alguns no PS viram a candidatura de Maria de Belém como uma oportunidade para atacar o PS e a sua direção, tentando manipular uma eleição presidencial para um mesquinho ajuste de contas intrapartidário (o que, finalmente, só prejudicou a própria candidata). Seria conveniente que se tornasse claro que a Ana Gomes não cai em armadilha semelhante.
Não é mau que Ana Gomes apareça como candidata da esquerda do espaço do PS: o Presidente Jorge Sampaio também era um candidato da esquerda do PS e foi um dos melhores Presidentes da República que a nossa democracia conheceu. Sendo candidata, o seu dever é não aspirar a menos do que isso, mas precisa limpar o terreno de derivas perigosas, aclarando os seus objetivos.
Cara Camarada, a sua presença no espaço público tem bandeiras, bandeiras relevantes como a dos direitos humanos – mas precisamos conhecer melhor como traduz, para estes tempos, uma mensagem renovada do socialismo democrático aos portugueses. Coisa que, em minha opinião, não resulta daquilo que conhecemos da sua intervenção pública. Politicamente, as presidenciais não podem ser apenas um choque de paixões: têm de ser um espaço de renovação da esquerda democrática. Poderá querer fazer isso tomando como alvo o partido que é a grande força do espaço político de que se reivindica?
5. Ouvi, com satisfação, declarar que o seu adversário é MRS – ao mesmo tempo que reconhece os aspetos positivos do seu primeiro mandato. Estou na mesma posição: o mandato de MRS teve aspetos positivos, mas serve um programa que não é o da esquerda democrática. MRS esgotou-se – e isso, juntamente com o seu interesse nos conflitos no seio da direita política, não promete nada de bom para um segundo mandato. Aplaudo que o debate seja com MRS, até para não alargarmos artificialmente o palco do candidato da extrema-direita.
Contudo, o que até agora ouvimos de si é uma análise insuficiente daquilo que em MRS como PR é politicamente criticável. Precisamos de saber, por exemplo, como se posiciona face à articulação do PR com os demais órgãos de soberania, desde o Tribunal Constitucional ao Governo. Quando disse, na sua entrevista na RTP3, que o PR deve convocar um debate nacional sobre o rumo da estratégia do país, quando o Governo e o Parlamento estão a fazer isso, como lhes compete, pergunta-se: pretende introduzir um novo intervencionismo do PR na condução das políticas públicas? O que significa isso em termos de interpretação da Constituição? Disse na mesma entrevista que o PR deveria ter exigido publicamente a António Costa que fizesse uma aliança para ter maioria parlamentar de apoio ao Governo: isso significa que Cavaco Silva tinha razão em ter feito essa exigência em 2015? (O entrevistador perguntou-lhe isto mesmo, mas não entendi a sua resposta, que está em falta.) Está a propor um novo ativismo presidencial? Se MRS vencer, está a justificar, também para ele, um novo intervencionismo presidencial?
6. Da minha intervenção no último Congresso Nacional do PS constaram estas palavras: “Porque é este PS, capaz de renovar a representação democrática, capaz de fazer funcionar o sistema de alternativas dentro da democracia, é este PS que fará frente a todos os populismos, quer sejam os populismos agressivos, quer sejam os populismos de salão. É este PS, exercendo em pleno a sua autonomia estratégica, apresentando-se a todas as eleições nacionais, com as suas candidaturas, com o seu programa, com os seus rostos, com as suas ideias, é este PS que será capaz de continuar a servir Portugal e os portugueses.”
Não costumo falar por falar nestas ocasiões. Se mencionei os populismos agressivos e os populismos de salão, é porque entendi ser necessário ter presente que não enfrentamos apenas o risco do populismo extremista – e o populismo de salão bem pode andar por aí à solta nos melhores palácios da República. Se falei na necessidade de comparecer a todas as eleições nacionais como forma de exercitar a autonomia estratégica do PS, é porque valorizo a necessidade de nunca desistir de desdobrar a nossa visão do mundo em todas as encruzilhadas de decisão democrática.
Acredito que a sua candidatura pode ter um papel positivo neste caminho. Mas isso depende do que lhe falta dizer e do que lhe falta fazer para sabermos ao que vem. Em coerência com a sua reivindicação do património dos Presidentes da República que partilharam connosco a grande casa do socialismo democrático. Porque o campo democrático, na sua pluralidade, pode fazer regredir os inimigos do progresso e os inimigos da igualdade cidadã. Só que, para isso, não podemos enganar-nos de adversários, nem enganar-nos de causas. Nem ceder ao facilitismo de saltar por cima do Estado de direito, barreira contra a incivilidade.
Tudo isto me interessa, como socialista, pela simples razão de não tencionar votar em qualquer candidato da direita (poderia fazê-lo se fosse necessário para travar um candidato neofascista, mas não creio que estejamos nessa contingência) e de não querer votar em candidatos que se apresentam contra o projeto europeu, que me parece indispensável ao desenvolvimento e progresso do nosso país.
Porfírio Silva, 17 de Setembro de 2020