8.3.25

E o país, senhor primeiro-ministro?



Deixo aqui, para registo, o meu editorial de ontem (07/03/2025) no Acção Socialista, que assino na responsabilidade de diretor dessa publicação. 


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O PS é o partido do socialismo democrático por uma razão fundamental e decisiva: entendemos que pode haver democracia sem socialismo, mas não pode haver socialismo sem democracia. Primeiro, antes das nossas propostas, está a democracia. No mesmo sentido, sempre foi para nós muito claro que primeiro está o país. Portanto, em lugar de querer fazer valer sempre os nossos pontos de vista, queremos, antes de mais, preservar as instituições democráticas.

O comportamento do PS, mais uma vez desde as últimas eleições legislativas, sob a liderança de Pedro Nuno Santos, deu provas vastas dessa orientação fundamental. Foi o PS, mais do que qualquer outra força política – mais do que a AD, apesar de esta ocupar o Governo – que deu a estabilidade possível à legislatura: não votámos a rejeição do programa de governo, fizemos eleger o Presidente da Assembleia da República, permitimos a aprovação do Orçamento, inviabilizámos as moções de censura que pretendiam derrubar o governo. Não fizemos isso por apreciar as políticas do governo – que não apreciamos –, nem por desculpar a sua incompetência arrogante – que não desculpamos –: fizemo-lo para não bloquear o funcionamento das instituições democráticas. 

Já o atual primeiro-ministro, Luís Montenegro, tem prioridades completamente diferentes. A Europa e o mundo enfrentam desafios terríveis; a possibilidade de uma guerra não é descartável; mesmo que não cheguemos lá, vamos sofrer as consequências económicas e sociais da degradação das relações internacionais e de uma nova corrida aos armamentos – e Luís Montenegro parece distraído de tudo isso e focado apenas em resolver o seu próprio caso. Até as suas responsabilidades internacionais parecem não estar a ser completamente acauteladas, levando Portugal de uma voz escutada com atenção e respeito na União Europeia, num passado recente, para uma voz irrelevante na atual conjuntura. Parece que ele, a sua pessoa, o seu cargo, vem antes de tudo, até antes do seu próprio partido.

As instituições da República, o PSD como um dos partidos que ajudaram a estabelecer o regime democrático, os eleitores que confiaram nele, podiam ser preservados se Luís Montenegro se tivesse prontificado a dar esclarecimentos cabais, desde o princípio e sem truques, acerca da situação que o país, atónito, descobriu ser a sua, pelo menos, desde que chefia o Governo. O regime democrático não pode ser exposto à prova de tentar passar uma esponja eleitoral sobre as suspeitas que, legitimamente, o país tem acerca da conduta de Luís Montenegro.

Há muitas maneiras de evitar uma crise política sem fugir ao apuramento da verdade. Basta, para isso, que o atual chefe de governo dê prioridade ao país, à governação, às instituições – e deixe de pensar, em primeiro lugar, na sua própria pessoa. E esclareça. Esclareça cabalmente. Esclareça transparentemente. E renuncie a sobrepor a sua pessoa a todos os interesses da governação, a todos os interesses das instituições democráticas, a todos os interesses da República. Luís Montenegro pode optar por continuar a agir mais em proteção de si próprio do que em defesa da República, mas é justo perguntar-lhe: e o país, senhor primeiro-ministro?

(Publicado originalmente aqui: E o país, senhor primeiro-ministro?)

Porfírio Silva, 8 de Março de 2025
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1.3.25

Acordai !


Deixo aqui, para registo, o meu editorial de ontem (28/02/2025) no Acção Socialista, que assino na responsabilidade de diretor dessa publicação. 

 

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A Declaração de Princípios do PS afirma-nos como um partido cosmopolita. Não é linear fixar concretamente o sentido exato desse cosmopolitismo, até porque não creio que ele se confunda com uma adesão acrítica à globalização, que teve benefícios, mas também perdedores.

Acredito que esse cosmopolitismo aponta para a nossa identificação com um universalismo onde cabem todos os seres humanos, na sua diversidade, titulares dos mesmos direitos fundamentais. Se do marxismo-leninismo nasceu uma espécie de “internacionalismo” onde todos os aderentes à causa, em qualquer parte do mundo, deviam servir os interesses do “socialismo num só país” (a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas), o socialismo democrático está vinculado a um outro internacionalismo, onde sofremos pelas dores de todos, vibramos com as lutas de todos, nos regozijamos com todas as vitórias da emancipação e da vida boa, em qualquer canto do mundo – e reconhecemos com reciprocidade os direitos fundamentais de todos os seres humanos. Essa identificação como partido cosmopolita traduz o nosso interesse permanente pelo estado do mundo.

Esse cosmopolitismo, que aqui enuncio na coloração (mais tradicional) de internacionalismo, deve manter-nos alerta na hora grave que vivemos no mundo. Com todas as suas imperfeições (incluindo as falhas na concretização de uma prosperidade partilhada), a Europa (e, especificamente, a União Europeia) é um dos espaços onde os ideais da liberdade protegida nas instituições democráticas tem resistido mais aos ataques dos seus inimigos, os autocratas e os inimigos da universalidade dos direitos humanos fundamentais. Esse nosso espaço de liberdade está a ser ameaçado. Ameaçado pela corrosão interna de democracias com quem estamos envolvidos no plano da ordem internacional, reforçando o inimigo interno das nossas democracias. E, agora, ameaçado pelo adensar das ameaças de uso da força para configurar uma cena internacional mais favorável aos autocratas. Nenhuma democracia europeia estará a salvo se não forem decisivamente derrotadas quaisquer tentativas para expandir a mancha dos Estados vassalos neste canto do mundo.

A guerra é o limite existencial. A guerra é a negação de tudo o que é genuinamente humano. (Além do mais, para a esquerda, a guerra sempre foi ocasião de divisões dolorosas.) Contudo, a guerra não se evita com o falso pacifismo dos que se dispõem a trocar a liberdade pela vida, aceitando a servidão como escapatória. Ser genuinamente pacifista é trabalhar para que seja contraproducente, para qualquer potência, iniciar uma guerra. Esse pacifismo genuíno deve ser prosseguido com negociações, claro, porque é com os adversários e inimigos que é mais difícil, mas também mais necessário, negociar para evitar a desgraça mútua. Mas deve, também, esse pacifismo genuíno ser prosseguido com a determinação de nos opormos aos que usam a força das armas como alavanca dos seus interesses. Essa capacidade para nos opormos à servidão requer meios, capazes de travar os que só entendem a linguagem das armas. Nós, os europeus, esperámos tempo demais para tomar nas nossas próprias mãos a responsabilidade de proteger a nossa liberdade dos seus inimigos. De todos os seus inimigos, onde quer que eles estejam. Não estamos perante um jogo. Estamos perante uma encruzilhada existencial: temos o direito de esperar que a política democrática não se distraia da gravidade da hora atual. Nem escamoteie o debate público dos desafios do momento presente.


(Publicação original: Acordai!)



Porfírio Silva, 1 de Março de 2025
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