23.7.20

Parlamento

22:08


Bem sei que, sobre certos temas, ninguém quer verdadeiramente ouvir argumentos. Não obstante, fica a minha "declaração de voto".

Hoje, a Assembleia da República aprovou um vasto conjunto de modificações do seu regimento. A esmagadora maioria dessas modificações são consideradas positivas por um amplo leque dos deputados. Contudo, quero aqui sublinhar duas modificações que correm num campeonato separado.

Por um lado, o debate público foi focado na diminuição do número de debates com o Primeiro-Ministro. Votei a favor dessa modificação, que fará com que o PM esteja no plenário do parlamento 10 vezes por ano, excepto qualquer acrescento eventual - sendo que, nos meses intercalares, as sessões de perguntas ao governo serão protagonizadas por ministros sectoriais. Contando com os tempos de interrupção dos trabalhos, será basicamente uma vez por mês com o PM, mais umas quantas com ministros.
Não concordo com a visão de que seja uma diminuição do papel do parlamento. A meu ver, o debate com o PM dá mais espectáculo, mas os debates com os ministros sectoriais permitirão um escrutínio efectivo da acção governativa mais em profundidade - e, provavelmente, mais difícil para o governo. Esta demanda de "presidencialismo do chefe de governo" sublinha a pessoalização da luta política ("combates de chefes"), mas nada tem a ver com a centralidade do parlamento e com a força da fiscalização parlamentar.
Neste ponto votei de acordo com a decisão maioritária do Grupo Parlamentar do PS. Até por ser minha opinião que a fiscalização da acção governativa tem excelentes instrumentos, que em nada são postos em causa por esta reforma.

Quero sublinhar que não tem sido prática do Grupo Parlamentar do PS, pelo menos neste ciclo político, poupar o governo ao escrutínio. Para dar um exemplo próximo das minhas áreas de trabalho: o actual Ministro da Educação respondeu, na anterior legislatura, em cerca de 50 ocasiões diferentes no Parlamento, em Comissão ou em Plenário. Chegou a ir, numa só sessão legislativa, 10 vezes responder em Comissão. E nunca foi preciso qualquer partido usar os seus direitos potestativos para chamar o Ministro, sendo que o PS nunca tentou inviabilizar essas idas.

Mais cabe lembrar que os grupos parlamentares têm direitos potestativos, pelos quais podem chamar o Governo ao Parlamento sem necessidade de qualquer aprovação dos outros grupos parlamentares. Por cada sessão legislativa, com a actual configuração parlamentar, podem realizar-se 14 interpelações ao governo, com presença obrigatória desse mesmo governo, por iniciativa ao abrigo dos direitos potestativos. São 56 interpelações ao governo por legislatura. Há ainda os direitos potestativos a marcar debates de actualidade, com a presença obrigatória do governo: na actual configuração parlamentar, até 17 por sessão legislativa, o que significa 68 por legislatura. Tudo isto se refere a debates em plenário. Quanto a debates em comissão, podem ser organizados, apenas por exercício de direitos potestativos, 17 por sessão legislativa, 68 por legislatura, na actual configuração parlamentar. Tudo isto segundo as regras em vigor. Não me parece que faltem instrumentos para exercer a fiscalização do governo.

Passando ao outro tópico que me merece destaque no debate de hoje, divergi do voto do meu partido na questão das petições. Votei contra o aumento de 4.000 para 10.000 assinaturas como mínimo para uma petição ser debatida em plenário da Assembleia da República. Acho que isso prejudica um dos instrumentos de participação popular, os quais enriquecem o trabalho parlamentar.

Uma última palavra: que o "escândalo" público em torno da revisão do regimento tenha sido todo centrado nos debates com o PM, tendo passado completamente ao lado da questão das petições, parece-me um sinal das fragilidades da nossa vida democrática. Ganham velocidade os temas que interessam a quem vende espectáculo (picardias nos combates de chefes), perdem-se na neblina os temas que movimentam cidadãos sem darem manchetes (participação popular).

No Grupo Parlamentar do PS, como de costume, há liberdade de voto (só não existe essa liberdade de voto no Orçamento de Estado, no Programa de Governo e em Moções de Confiança ou de Censura). Por isso, quem bem entendeu votar diferente, votou. Antes, o Grupo Parlamentar tinha votado, internamente, qual devia ser a orientação de voto, tendo a direcção adoptado a posição aprovada por maioria. Noutros Grupos Parlamentares não se vê essa liberdade a ser sistematicamente exercida. Por mim falo: vivo melhor com a liberdade que se pratica no meu Grupo.

Porfírio Silva, 23 de Julho de 2020
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22.7.20

Da Esquerda Plural



A revista Finisterra, que tem como Director Eduardo Lourenço, acabou de publicar o seu número deste ano, centrado no tema "A Esquerda Plural".

Aí se publica um texto meu (escrito em Janeiro passado...), intitulado A Geringonça Morreu, Viva a Esquerda Plural!.

Deixo aqui esse texto.

***



Na passagem de uma legislatura para outra, dissolveu-se no ar uma realidade que foi bastante sólida para muitos concidadãos que dela beneficiaram nas suas vidas concretas, em termos de recuperação de direitos e rendimentos: a solução política à esquerda, envolvendo um governo homogéneo do PS e uma maioria parlamentar heterógena do PS, do BE, do PCP e do PEV, assente em papéis passados: a série de posições conjuntas paralelamente assinadas pelos socialistas com cada um dos parceiros. Essa Geringonça, como a direita a batizou, deixou uma herança suficientemente valiosa para ser agora disputada, mas deixou também alguns desencontros entre os seus participantes – e, principalmente, deixa interrogações para um futuro do qual não prescindimos. O que se procura neste texto é olhar para o estado presente dessas interrogações com os olhos postos no futuro.


O que nós andámos para aqui chegar


1. A solução política que sustentou a governação de Portugal durante a XIII legislatura, a partir das eleições legislativas de 4 de outubro de 2015, assentava em dois pilares: por um lado, um formato estruturado de cooperação parlamentar entre todos os partidos de esquerda com representação na Assembleia da República, tendo como guia as posições conjuntas que o PS assinou separadamente com o BE, o PCP e o PEV; por outro lado, um governo homogéneo do PS.

A articulação entre estes dois pilares importa para compreender o posicionamento tradicional dos socialistas na democracia pluralista portuguesa. O PS só votou no parlamento a moção de censura que derrubou o segundo governo de Passos Coelho depois de assinadas as posições conjuntas à esquerda que garantiam uma maioria parlamentar para um governo alternativo. Como o líder do PS tinha dito logo na noite das eleições, o partido nunca teria uma posição de bloqueio: só recusaria a investidura ao governo da direita se tivesse uma alternativa viável no quadro parlamentar e constitucional.

Os dois pilares funcionaram com uma certa separação formal (exemplificada pela recorrente caracterização do executivo, por parte dos partidos mais à esquerda, como “o governo minoritário do PS”), mas com articulação política substancial. O mais claro exemplo da dinâmica dessa equação é fornecido por aquelas matérias atinentes à União Europeia que constituem divergência política de fundo entre o PS e os demais partidos de esquerda. O governo do PS lidava com a Comissão Europeia sem implicar a maioria parlamentar, sempre que isso era possível (e aceitando as consequentes críticas dos seus parceiros). Sempre que o parlamento era chamado a pronunciar-se, mormente por iniciativa política da direita destinada a estimular a expressão das divergências entre o europeísmo dos socialistas e o ceticismo dos seus parceiros, a esquerda da esquerda arranjava maneira de desencontrar os seus votos dos votos da direita, poupando ao governo o embaraço de se apresentar em Bruxelas fora das suas linhas de conduta europeísta.

A estrutura desta solução política, apesar de ter sido batizada pela direita como Geringonça, resistiu a situações de tensão que expressavam diferenças de fundo na abordagem a matérias centrais da governação, como foi o caso do longo conflito em torno da recuperação do tempo de serviço dos professores que tinha sido congelado em legislaturas anteriores ou, noutro plano, a profunda divergência sobre a descentralização de competências para as autarquias (uma matéria que o líder do PS caracterizou como a pedra basilar da reforma do Estado neste ciclo político e que a esquerda da esquerda combateu ferozmente).


2. Caracterizada desta maneira, a Geringonça não sobreviveu às eleições legislativas de 6 de outubro de 2019. Depois de ter pedido aos eleitores que recusassem ao PS uma maioria absoluta, supostamente para poder continuar a dar o seu contributo para o prosseguimento dos avanços conseguidos nos quatro anos anteriores e para evitar tentações ou hesitações dos socialistas, o PCP veio imediatamente dizer que não voltaria a assinar papéis com o PS sobre o rumo da governação. E explicava que só o tinha feito em 2015 para contornar a tentativa do Presidente da República Cavaco Silva bloquear um governo viabilizado pela esquerda. O PCP ficaria, assim, com as mãos livres para se posicionar caso a caso em cada momento de decisão política.

Diferentemente, o BE insistia em fazer um acordo escrito com o PS – embora, ao mesmo tempo, e como princípio de conversa, apresentasse condições de partida para a negociação que os socialistas só poderiam aceitar se dessem o dito por não dito e encaixassem a humilhação de reverter posições que muito claramente tinham tomado na legislatura anterior e refirmado no seu programa eleitoral (caso da legislação laboral). De qualquer modo, o PS nunca poderia, depois da Geringonça, aceitar meia Geringonça: descartar os comunistas, para ficar com os bloquistas como parceiros especiais, seria politicamente inaceitável – principalmente porque, desse modo, descartaria, precisamente, aquele parceiro que muitos socialistas consideravam, apesar da sua dureza negocial, como o mais fiável e o mais institucional: o PCP.

Se o PS tivesse aceitado uma solução com parceiros de primeira e parceiros de segunda (quando, na verdade, a estratégia política do BE passa tanto por corroer o PS como por tentar enfraquecer o PCP), o diálogo à esquerda ficaria definitivamente condenado à guerra civil generalizada. A posição do PS, embora facilite a campanha do BE para tentar passar a ideia de que a Geringonça morreu por recusa dos socialistas, foi a única capaz de deixar espaço para algum tipo de cooperação à esquerda. De qualquer modo, a Geringonça, tal como a conhecemos entre 2015 e 2019 (e como a caracterizamos acima), morreu. E morreu com um razoável grau de tensão política, ou pelo menos tática, entre os partidos que dela fizeram uma história de sucesso durante uma legislatura completa.

O sucesso da solução política encontrada para o país na XIII legislatura, ao conseguir conciliar o cumprimento dos compromissos assumidos pela esquerda face aos seus eleitores com o cumprimento dos compromissos internacionais de Portugal, por via de uma estratégia que concilia redistribuição com reforço da economia privada e reforço do papel do Estado, impõe que não nos limitemos a contemplar o fim da Geringonça e que pensemos o que fazer com o caminho que andámos.


Outra vez: e agora, Esquerda? [1]


3. A situação política a que chegamos pelo caminho acabado de descrever é de molde a implicar um problema político importante para o país e para a democracia – e não apenas para a esquerda, como alguns possam pensar. Se pensássemos exclusivamente nos ganhos políticos imediatos para o PS, o foco seria outro. Só que nunca foi assim que os socialistas se posicionaram na democracia portuguesa – e isso impõe outra reflexão.

Sempre entendi, e defendi, que a principal vantagem de longo prazo da solução política encontrada para a governação de Portugal durante a XIII legislatura consistia no reforço da representação democrática. Num tempo de desencanto com a democracia representativa, e de afastamento da cidadania face aos partidos que se esforçam, com mais ou menos sucesso, por concretizar dinamicamente essa representação, num tempo em que tantos perdem o laço de confiança no sistema democrático por se sentirem dele afastados, só podemos considerar positivo que, por via dos acordos à esquerda, uns 20% do eleitorado português tenham, de um dia para o outro, entrado numa praça onde nunca tinha estado antes: a praça dos que partilham a responsabilidade da governação, das escolhas difíceis que sempre estão implicadas no concretizar e que, vistas do lado da oposição, nunca se revelam tão complexas como elas são na realidade.

Trazer os eleitores da esquerda da esquerda para a dinâmica implicada pela governação, desassossegando-os do impasse da eterna oposição, é um ganho inestimável para a democracia representativa. Um ganho que foi aberto quando António Costa, ao apresentar-se às Primárias do PS em 2014, se propôs acabar com o “arco da governação”. Ora, esse ganho democrático pode estar agora em causa, porque a maioria dos cidadãos e cidadãs que acreditaram nesta solução – solução onde o todo era maior que as partes – não vislumbram no fim da “Geringonça” uma inevitabilidade, um esgotamento compreensível do ciclo político, mas antes uma certa ingratidão mútua entre os partidos antes cooperantes e agora desavindos, um certo egoísmo partidário ditado por calculismos vários, percecionado como incapacidade para pôr o país à frente das diferenças partidárias. E essa leitura, que estou convicto é a de muitos dos nossos concidadãos, é uma semente de descrença na real vontade dos políticos para quebrar os muros do habitual. Lança a desconfiança de uma certa insinceridade dos políticos da nossa esquerda. Pode confirmar o mito da inevitabilidade das desavenças à esquerda. E, finalmente, tudo isso reforça todos aqueles que querem que a esquerda da esquerda seja eternamente oposição e nunca “suje as mãos” na governação. Reforça, principalmente, aqueles que pensam isso na própria esquerda da esquerda.

Esta mudança de cenário na solução política para a governação do país não consolida o reforço da representação democrática que tivemos da legislatura anterior. O que fazer com isso?


4. Julgo ser necessário pensar o caminho a seguir a partir dos desafios colocados pela presente situação das democracias europeias. A fragmentação do espaço público é uma das dinâmicas centrais do tempo que vivemos. E a dificuldade dos políticos democráticos para responderem a essa fragmentação é generalizada.

A fragmentação dos parlamentos, que chegou a Portugal nas últimas eleições, é uma realidade que outros países já conheciam bem. Há partidos novos, e ainda bem que as democracias são capazes de gerar novas respostas representativas da cidadania. Embora saibamos que não seria inédito, na história, que forças antidemocráticas começassem por querer usar o parlamento como palco tático, visando, posteriormente, atacar a própria instituição parlamentar, é, ainda assim, preferível que as correntes de opinião relevantes estejam presentes no parlamento, em vez de se organizarem em movimentos violentos de desafio da ordem democrática ou de pura recusa das instituições. De qualquer modo, a fragmentação partidária significa uma crescente incapacidade para gerar plataformas políticas abrangentes como base da governação.

Enquanto os grandes partidos democráticos tradicionais são conglomerados de ideias políticas relativamente diversificadas, de projetos políticos nunca completamente coincidentes, de grupos sociais e de linhagens culturais heterogéneas, por vezes amálgamas de ideias para políticas públicas que comportam até algumas contradições, mas que se encontram na necessidade de convergir dinamicamente para construir respostas a cada situação política concreta, os pequenos partidos muito homogéneos e muito ortodoxos são consolidados na cultura da exclusão da diferença e na ideologia da adesão firme e fixista a um pequeno núcleo de bandeiras a que dão respostas fechadas.

A fragmentação da representação política é o produto da má imprensa que tem, nas nossas democracias, a ideia de compromisso, a impopularidade de que sofre a ideia de tentar encontrar soluções que, mesmo que não sejam perfeitas, deem satisfação a leques mais vastos de interesses. É por isso que a fragmentação política é irmã das estratégias políticas de confronto, de rutura, de violência pelo menos verbal. A fragmentação política é o corolário de uma conceção de representação onde cada um quer um partido que concorde totalmente com as suas posições próprias, em vez de preferirmos estar em partidos intensamente plurais onde temos de conviver permanentemente com posições diferentes das nossas, embora assentes nos mesmos valores e princípios fundamentais, e alimentar uma deliberação constante não constrangida por princípios ideológicos demasiado fixos e rígidos. Num mundo onde se propala o fim da ideologia – apenas para se ser mais intensamente ideológico –, a fragmentação partidária é o refinamento das ideologias fechadas e excludentes e a crise do possibilismo.

A fragmentação sindical acresce à fragmentação partidária. Sem que seja este o texto apropriado para aprofundar esta reflexão, apenas se menciona o surgimento de novas organizações que reclamam ser sindicatos, muitas vezes (mas nem sempre) assentes em grupos específicos dentro de uma classe profissional e desligados dos interesses de conjunto dessa, e, frequentemente, pretendendo romper com as estratégias de concertação e negociação seguidas por sindicatos anteriormente estabelecidos – ao mesmo tempo recusando identificações ideológicas mais gerais. Esta fragmentação sindical, que também sentimos no nosso país, é outra dimensão do que chamamos fragmentação do espaço público.

A fragmentação do espaço comunicacional é, sem dúvida, uma das infraestruturas das outras fragmentações do espaço público. Está em causa o domínio das redes sociais como fonte primeira de acesso à informação para muitos dos nossos concidadãos.

A comunicação social clássica veiculava uma certa convergência na leitura do mundo, assente numa pretensão de verdade factual que, se estabelecida, era elemento a ter em conta por qualquer posicionamento ideológico. Essa convergência para a verdade acerca da realidade, mesmo que sempre imperfeita e sempre contestada, era aceite como um chão mínimo para a coexistência numa comunidade política. Os espaços ideológicos não alardeavam o desprezo pela verdade fatual; tratavam, isso sim, de participar nos mecanismos de produção daquele plano de aparência que fosse capaz de se fazer aceitar como a realidade propriamente dita. De qualquer modo, essa batalha pela realidade travava-se em campo aberto, à vista de todos – e o objetivo era conquistar o melhor miradouro para a verdade, com a pretensão de que todos usassem o miradouro definido como ponto de vista para o horizonte partilhado.

Hoje, o mecanismo de produção de leituras do mundo, tal como operacionalizado pelas redes sociais como fonte principal de elementos informativos para muitos concidadãos, é completamente diferente. As tecnologias permitem, e certos movimentos aproveitam, que se construam guetos onde se refugiam grupos separados de qualquer partilha comunicacional generalizada, onde se oferecem verdadeiras realidades alternativas, completamente devotadas a confirmar certas visões do mundo e a afastar as pessoas de qualquer informação que perturbe as certezas da sua tribo. Deixou de haver uma disputa aberta pela leitura dominante acerca do mundo e passou a haver uma pulverização de grupos relativamente incomunicáveis entre si, dentro de cada um prevalecendo uma realidade alternativa bastante homogénea e desprovida de mecanismos de verificação. E nada disto é acidental: sabemos hoje que há fortíssimos investimentos globais em produzir e consolidar os mecanismos que alimentam esta dinâmica. Não se trata, simplesmente, de produzir notícias falsas: notícias falsas sempre existiram, mas estavam encravadas numa visão global do mundo genericamente capaz de permitir a compreensão e a autocorreção. Trata-se, longe disso, com os meios atuais, de oferecer, de forma contínua e estruturada, alimento para ilusões profundas acerca do mundo, cercadas por filtros que impedem a ocorrência de verdades dissonantes. O ponto é que essas aparências grupais construídas em grupos fechados sobre si mesmos, em bolhas, são desenhadas para colocar em movimento certos comportamentos sociais e políticos, para recrutar simpatizantes para causas antidemocráticas e, mais ainda, para desacreditar os próprios mecanismos democráticos.

A luta pela hegemonia tem hoje esta face. E as sociedades abertas podem não resistir a esta fragmentação radical do espaço da comunicação pública, que serve de infraestrutura à fragmentação da política democrática e dos movimentos sociais. É, aliás, no terreno desta fragmentação que medram as táticas de radicalização, verbal e comportamental, que tentam substituir o debate democrático entre iguais, e a consequente decisão democrática, pela rua e pela violência como espaço de combate entre “nós” e “eles” – sendo esse mecanismo, de substituição das diferenças entre interesses legítimos pela oposição entre “nós” e “eles”, o mecanismo básico das táticas populistas de tomada do poder contra as democracias pluralistas. As batalhas em torno da hegemonia cultural, hoje mundializadas, pedem à esquerda que não se perca no mar da fragmentação e, mais, que construa uma cultura de diversidade e pluralidade só intolerante com os intolerantes.


5. Os problemas enunciados nos pontos anteriores – a necessidade de continuar a reforçar a representação democrática e de contrariar as tendências de rutura democrática que estão no bojo da fragmentação acelerada do espaço público – impõem, num mundo onde as forças do progresso, da liberdade e da política pluralista estão claramente na defensiva, uma resposta capaz de fazer futuro.


A urgência da esquerda plural


6. A fragmentação do espaço público também afeta a esquerda, com evidentes consequências diretas na política e nas ferramentas da governação. Há países onde esse fenómeno é antigo e evidente. É o caso da França. Lembremos uma circunstância concreta.

Nas eleições presidenciais francesas de 2002, Lionel Jospin, candidato dos socialistas (que tinha sido primeiro-ministro do governo da Esquerda Plural de 1997 até esse ano), não passa à segunda volta, tendo tido menos votos que o candidato da Frente Nacional (extrema-direita), Jean-Marie Le Pen. Le Pen tem 16,86% dos votos, Jospin fica-se pelos 16,18%.

Nessa eleição havia vários candidatos presidenciais de esquerda. Alguns desses candidatos vinham da Esquerda Plural, designação para a rede de acordos que tinham sido celebrados para as eleições legislativas de Abril de 1997, que ligou o PSF a entendimentos eleitorais separados com os Verdes, os Radicais de Esquerda e com o movimento de Jean-Pierre Chevènement (dissidente do PSF). Esses acordos, complementados com uma declaração conjunta com o PCF, configuraram a Esquerda Plural, que chegou ao governo com ministros e secretários de Estado dos vários parceiros (apesar de Chevènement ter saído do governo em 2000).

Ora, os candidatos que tinham sido propostos por forças integrantes da Esquerda Plural, que faziam a maioria governamental, recolheram (além dos socialistas) cerca de 16%. Outros candidatos da chamada esquerda radical, ou extrema-esquerda, recolheram mais cerca de 10%. Isto quer dizer que a segunda volta foi disputada entre dois candidatos da direita, um da direita tradicional (Jacques Chirac) e outro da extrema-direita (Le Pen), apesar do conjunto dos candidatos da esquerda na primeira volta terem recolhido mais de 42% dos votos. Chirac venceu na segunda volta com mais de 82% dos votos.

A tremenda fragmentação da esquerda produziu uma evidente distorção do mecanismo eleitoral, que supostamente deveria transformar preferências eleitorais em soluções políticas.

Para quem se coloca, hoje, no campo do socialismo democrático, da social-democracia e do trabalhismo, uma família europeia bastante heterogénea, esta é uma questão complexa. Muitos entendem que o essencial da questão está no desafio histórico da esquerda radical ao socialismo democrático: como em Espanha o Podemos tentou desalojar o PSOE da liderança da esquerda, também noutros países outras forças radicais tentam “pasokizar” os partidos socialistas e transformar os extremos à esquerda e à direita nos novos polos agregadores de alternativas de poder.

Vejo a questão de outra maneira. Para ultrapassar a crise de legitimidade das nossas democracias, ameaçadas por uma grande desafeição de muitos cidadãos face a um poder político que parece distante e desinteressado das suas vidas concretas, é preciso reforçar a base social da democracia representativa. Quer dizer, é preciso que venha mais gente ao envolvimento direto em soluções de governo que respondam às necessidades dessas camadas, designadamente às necessidades de pessoas que sentem que para elas só ficam as sobras do crescimento e do progresso. Ou nem isso. Do lado da esquerda, e pensando como socialista, julgo que podemos fazer isso estabelecendo uma relação o mais produtiva possível com outras forças de esquerda, das quais divergimos muitas vezes – e, certamente, muitas vezes por boas razões que nos assistem. É tão simples – e tão complexo – como isto: os socialistas, social-democratas e trabalhistas têm de ser capazes de desenvolver um novo diálogo com as chamadas esquerdas radicais, para alargar a base social de apoio a soluções democráticas e progressistas para a governação. E para fazer com que essas soluções possam tornar-se maioritárias e possam ser implementadas. Temos todos de aprender como fazer isso. Certamente que o “realismo da governação” dos socialistas (o hábito de pensar em termos de viabilidade da concretização) pode ser útil. Certamente, também, o “radicalismo” de certa esquerda pode ser útil para não perdermos o contacto com muitas pessoas que, hoje, desesperam da representação e estão prestes a cair nos braços do primeiro populista que lhes apareça.

O que tem impedido essa aproximação é a persistência de culturas e tradições políticas inimigas no seio da esquerda. As correntes reformistas, as correntes revolucionárias e as correntes libertárias arrastam uma história longa e dolorosa de confrontos mútuos, por vezes sangrentos. Até em Portugal, acontecimentos como o 25 de Novembro marcaram profundamente um facto de grande significado: a fronteira entre democracia e ditadura passou, historicamente, pelo terreno da esquerda, como bem sentimos aqueles que, sendo socialistas democráticos, têm claro na sua cabeça que primeiro está a democracia e depois o projeto socialista. Vale, contudo, a pena perguntar se uma fronteira tão divisiva continua a fazer sentido, quando, claramente, praticamente já só há sociais-democratas nos partidos de esquerda: por mais revolucionários que se reivindiquem, não darão, provavelmente, um passo para derrubar as instituições democráticas. E, quando, ainda por cima, há à nossa volta uma direita cada vez mais agressiva que, essa sim, está cada vez mais tentada a fazer regredir os nossos sistemas constitucionais.

A questão prática é que temos de encontrar o modo de convivência que torne isto possível.


7. Voltemos ao exemplo da França e olhemos um pouco para a estratégia de construção de uma maioria de esquerda que aí foi seguida.

A esquerda não comunista francesa sempre foi muito fragmentada, política e organizativamente. Na década de 1960, uma das suas organizações mais relevantes era a SFIO (Secção Francesa da Internacional Operária), mas tinha entrado num longo processo de esclerosamento. François Mitterrand, sem grandes credenciais socialistas em termos históricos, mas que apostou em introduzir uma nova dinâmica na esquerda não comunista, acabou por ser uma força motora da criação do Partido Socialista Francês (PSF), que, no Congresso de Épinay, em 1971, conseguiu federar várias correntes tradicionais desse espaço. Eleito Primeiro Secretário do PSF, Mitterrand queria tirar lições das pesadas derrotas eleitorais de 1968 e de 1969 e encetar uma estratégia nova de articulação com os comunistas.

A estratégia de diálogo com o Partido Comunista Francês (PCF), liderado por Georges Marchais, concretiza-se no “Programa Comum de Governo”, em 1972 (a que se juntou o Partido Radical de Esquerda). O PCF reconhece integralmente o princípio do pluralismo político e da alternância no poder, enquanto o PSF aceita um programa económico largamente influenciado pelo PCF. Nos anos seguintes, o PCF adaptou-se: por exemplo, abandonou o conceito de “ditadura do proletariado” (no Congresso de 1976), criticou a URSS por causa da falta de liberdade religiosa e defendeu que diferentes países deviam ter as suas próprias vias para o socialismo. O PSF deixa de tentar ser a “via do meio” e passa a tentar liderar a esquerda, partindo de uma posição eleitoral onde era uma força menos relevante que os comunistas.

O Programa Comum de Governo caracterizava-se pelas seguintes linhas essenciais: crescimento estimulado pela procura interna através de um substancial aumento de salários; alargamento da proteção social, especialmente nos cuidados de saúde; programa maciço de habitação; aposta na escola pública, criação de uma rede de creches e educação pré-escolar para crianças dos 2 aos 6 anos; abolição de toda a discriminação contra as mulheres; reforço da proteção contra despedimentos sem justa causa; democracia industrial; nacionalização de todo o sector financeiro (todos os bancos, incluindo bancos comerciais e companhias de seguros), das indústrias mineira, de armamento, de aeronáutica, farmacêutica, espacial e nuclear (nacionalizações que, apesar da controvérsia, não tornariam o sector público francês maior do que o da Áustria ou da Itália, que nunca tinham tido um governo de esquerda); aumento dos impostos sobre o rendimento e sobre os lucros das empresas; abolição da pena de morte, abolição das leis restritivas da liberdade de reunião, alargamento das liberdades civis; reforma institucional, limitando os poderes do Presidente da República, encurtando-lhe o mandato e reforçando os poderes do parlamento [2] .

Neste quadro, o PSF precisava de elaborar a sua diferença ideológica específica face ao PCF e, para tanto, elaborou longamente sobre a ideia de autogestão. Era uma abordagem claramente não comunista, mas que não se confundia com nenhuma proposta da direita, que marcava uma crítica ao modelo soviético de planeamento central (uma ideia antiestatista), apelava à ideia de economia descentralizada, era compatível com a ideia de mais democracia social (empresas mais democráticas) a acrescentar à democracia política liberal. Além do mais, era a bandeira de uma das centrais sindicais, a CFDT. Uma Convenção Nacional do PSF (1975) aprovou o documento “Quinze teses sobre a autogestão” [3]. Ajudava a reforçar a identidade do PSF como força nem de direita, nem comunista; apelava a alguns sectores antissistema que tinham ganho algum peso na esteira de Maio de ’68. Quando chegou ao governo, o PSF já se tinha esquecido do conceito…

A dinâmica eleitoral foi fatal para o Programa Comum, ao favorecer mais o PSF do que o PCF, quer nas sondagens, quer nas eleições. O PSF suplantou o PCF em eleições autárquicas e regionais em 1976 e 1977. O PCF começou a distanciar-se do PSF e rompeu com o Programa Comum em Setembro de 1977. Nas legislativas de Março de 1978, a esquerda perdeu, mas, pela primeira vez desde antes da guerra (anos 1930), os socialistas (em eleições nacionais) tiveram mais votos do que os comunistas. A partir daí, o declínio eleitoral do PCF foi irreversível, enquanto o sistema eleitoral maioritário não deixava grande escolha aos comunistas: colocando-se o PSF e Mitterrand à esquerda em termos programáticos, o PCF não podia deixar de votar contra a direita em cada segunda volta.

Quer dizer: a via do programa comum para a cooperação à esquerda começou a ruir ainda na oposição. Contudo, ainda se tentou uma recuperação do caminho. Nas eleições presidenciais de 10 de maio de 1981, Mitterrand é eleito Presidente da República. Nomeou um novo governo, dissolveu o parlamento, convocou eleições antecipadas e ganhou-as: obteve 37,5% dos votos na primeira volta e, na segunda volta, à custa do sistema maioritário, quase 60% dos lugares na Assembleia Nacional.

Pierre Mauroy, um representante da corrente tradicional do socialismo francês, torna-se primeiro-ministro, num governo com 4 ministros PCF em 44 (incluindo a segunda figura do PCF). As promessas eleitorais são para cumprir. Mitterrand fizera uma campanha à esquerda, e assim se faz: forte aumento do salário mínimo (aumentou 38% em termos reais entre Junho/81 e Março/83), com efeitos nos outros salários; aumento das prestações de velhice (a prestação mínima aumentou 40% em termos reais), do abono de família (+50%), do subsídio de habitação; reforma aos 60 anos, esquemas de reformas antecipadas; férias pagas passam de 4 para 5 semanas; redução da jornada de trabalho, semana de trabalho mais curta, reforço dos direitos dos trabalhadores, aumento do emprego público (+ 100.000 em 18 meses), abolição da pena de morte, nacionalizações (39 bancos, duas empresas financeiras, cinco grandes conglomerados industriais).

As coisas não correram bem. A estratégia de estimular a economia através do aumento da procura pública e privada, com um sistema produtivo nacional ineficiente, num contexto de contração da economia mundial (aumento das matérias-primas, taxas de juro altas e constante flutuação das moedas, quebra generalizada do investimento e contração da procura nas principais economias e, segundo alguns analistas, um movimento especulativo internacional contra a moeda francesa) não deu os resultados esperados e provocou uma mudança de rumo. Em julho de 1984, Laurent Fabius substituiu Pierre Mauroy à frente do governo. O PCF recusa participar no novo governo. A acrimónia entre PSF e PCF recrudesceu. Em 1986, a Direita voltou a ganhar as legislativas. Mesmo assim, o balanço tinha pontos relevantes positivos: a descentralização do país, uma reforma que alguns consideraram a mais importante na organização do Estado desde a guerra em todo o século XX francês; o reforço do papel dos sindicatos, por via legislativa, determinando negociação coletiva e novos direitos das comissões de trabalhadores (em contraciclo, por exemplo, com o que se passava no Reino Unido); conquistas importantes no campo dos direitos civis: abolição da pena de morte, fim dos tribunais militares especiais, revogação de legislação contra os homossexuais, fim da distinção entre filhos nascidos dentro e fora do casamento [4].

De qualquer modo, o casamento à esquerda tinha acabado em divórcio. Embora tenha voltado a haver períodos de namoro, eles não impediram o regresso à profunda fragmentação que se vive hoje, outra vez, na esquerda francesa.

Este longo desvio pelo caso francês serve-nos para contrastar com a Geringonça portuguesa, onde, assumidamente, os partidos não abdicaram da diversidade e sempre a assumiram. Por cá, não houve qualquer tentativa, por parte do PS, de canibalização programática ou eleitoral dos demais partidos. O PS não tentou substituir os seus parceiros, não absorveu as suas propostas diferenciadoras, não eliminou a diversidade, preservou a sua própria identidade e respeitou a alheia. Preferiam os partidos à esquerda do PS que os socialistas tentassem ocupar o seu espaço programático e eleitoral? Não será melhor, para a Esquerda Plural como ideia para o país, que o PS mantenha a sua capacidade para atrair eleitores mais moderados, assim alargando a base social e política da esquerda no seu conjunto, em vez de tentar substituir eleitoralmente o PCP ou o BE por sobreposição de posições políticas num dossiê atrás de outro? Desejavelmente, apesar de esse apelo à sobreposição estar implícito no combate político do PCP e do BE contra as propostas do PS, o PS não cederá a esse apelo, a ganho de toda a esquerda – e da própria democracia, que precisa da diversidade que assim se preserva. Não devemos, pois, ceder ao apelo dos sectários, até porque os sectários não são a esquerda – o mais que podem ser é coveiros da esquerda, como amargamente a história já demonstrou, por exemplo na Alemanha dos anos 1930.

Os sectários, que detestam por dentro a Esquerda Plural, usam e abusam do argumento programático. A esquerda da esquerda abomina a social-democracia do PS, fazendo de conta que não sabe que vimos (quase) todos da raiz comum social-democrata, esquecendo que Portugal estaria muito melhor se tivesse tido as políticas social-democratas que outros tiveram durante os “trinta gloriosos”. A esquerda da esquerda detesta que o PS não seja revolucionário, tanto como o nosso apego ao Estado Social de Direito, incomoda-se por não termos um programa para acabar com o capitalismo e que estejamos mais apostados em explorar todos os graus de liberdade que resultam da existência de várias modalidades de capitalismo.

Do lado do PS, há os que detestam a pulsão antissistema de alguma esquerda, mas, não sendo essa a minha esquerda, é preciso valorizar a sua utilidade política para renovar a participação dos que se sentem excluídos, fortalecer a democracia pelo alargamento da representação democrática, isto é, pelo alargamento do espaço dos que olham para a política democrática com a expectativa de que ela melhore as suas vidas concretas. Não faz muito sentido berrarmos contra os populismos, e temermos a erosão das democracias abertas, e depois recusarmos as oportunidades de construir respostas políticas que tragam mais cidadãos para o combate político no quadro das nossas instituições democráticas. Em vez de alimentarmos a desesperança dos que se sentem de fora, mais vale criarmos as oportunidades para que sejam de dentro. E isso pode fazer-se, até certo ponto, com o que alguns chamam esquerda radical.

O vício intelectualista que continua a minar muitas análises políticas ainda é capaz de nos querer convencer de que é tudo uma questão programática - e aí vem a ideia de que os programas dos socialistas e social-democratas é muito diferente dos programas da esquerda radical, o que tornaria impossível uma ação política conjunta. Se, em vez desse vício intelectualista, dermos mais atenção às emoções democráticas – por exemplo, as emoções que nos posicionam dentro ou fora das lutas contra as injustiças e as desigualdades – podemos entender melhor o ganho que representa trazer mais cidadãos para uma política que possa fazer a diferença nas suas vidas, em vez de uma política que eles sentem que os deixa sempre de fora. Afinal, aquilo que em Portugal dissemos ser o necessário “fim do arco da governação”. Também neste ponto os sectários estão errados. E esse erro só pode ser historicamente ultrapassado por uma esquerda plural articulada em torno das exigências de uma democracia aprofundada, tanto em termos de direitos sociais como em termos de direitos de cidadania.


8. Numa entrevista que o Diário de Notícias fez ao autor destas linhas e publicou a 4 de fevereiro de 2017, com um título que retomava uma frase minha – “a esquerda tem de pensar uma agenda para a década” – , sublinhei que, à esquerda (referindo-me ao PS e aos partidos que connosco assinaram os acordos subjacentes à solução política da XIII legislatura), “precisamos de pensar estrategicamente a mais longo prazo”. Quer dizer: mesmo para além da legislatura: “Em vez de pensarmos em termos anuais, Orçamento de Estado, temos de pensar ao nível de Programa Nacional de Reformas”. Dei, então, um exemplo que exibia essa necessidade: “Quando dizemos que temos de reduzir estruturalmente as desigualdades excessivas que temos no nosso país, alguém pensa que se pode dar uma solução sustentada e duradoura apenas numa legislatura?”. Chamei a isso “aumentar a ambição” e dei, para o efeito, uma visão de calendário, em forma de pergunta: “que legado queremos deixar ao país ao fim de duas legislaturas?”.

Segundo os relatos da comunicação social, vozes relevantes dos nossos parceiros, questionadas, não mostraram grande entusiasmo com a ideia. Por exemplo, o secretário-geral do PCP considerou que tudo isso dependia de uma clarificação do PS, em especial quantos aos “constrangimentos externos” (quer dizer, quanto à União Europeia).

De momento, quanto à capacidade coletiva para prosseguir essa ambição, o que podemos dizer é que o futuro é incerto. Mas a ação política existe, precisamente, para decidir incertezas e escolher caminhos. De qualquer modo, não chegaremos longe se não compreendermos que uma democracia de qualidade só é possível se formos sábios o suficiente para dosearmos bem a combinação de competição e cooperação.

Tem de haver competição, porque ela é necessária à diversidade, ao desenvolvimento de propostas políticas diferentes, capazes de traduzir a pluralidade de interesses e de permitir a liberdade de escolha sem as quais a democracia definha. A tentação unanimista, as políticas de “união nacional” (herança do salazarismo que permeia ainda o nosso debate público, tantas vezes acobertada pela exigência de imparcialidade, que é a face da tecnocracia na era da desinformação), a crítica às “lutas partidárias” como sobrevivência cultural do esquema do partido único (Salazar dizia que a União Nacional era o partido dos que não querem partidos) – tem de ser contrariada pela pluralidade das propostas política e pela competição entre elas. Mas também tem de haver cooperação, para preservar os fundamentos comuns da pertença a uma comunidade política e para conseguirmos construir. Os empecilhos deste caminho são os incapazes de equilibrar competição e cooperação – e esses estão, sempre, por todo o lado. Cabe-nos, aos que acreditamos que Portugal precisa de uma esquerda plural forte, persistir – porque o futuro nunca é apenas a sombra do passado.

A líder do BE disse, na corrida para as legislativas de 2019, que o programa eleitoral bloquista era social-democrata. E era. Não era, certamente, um programa revolucionário. O seu partido não será social-democrata, mas as suas propostas, no presente contexto político, concordemos ou não concordemos com elas, são-no. O mesmo se poderia dizer do programa do PCP, se os comunistas não tomassem essa afirmação como um insulto. De qualquer modo, por aí passam as nossas dificuldades no importantíssimo plano do simbólico – mas, também, as potencialidades de toda a esquerda no plano das políticas públicas necessárias a um país mais desenvolvido e menos desigual, necessárias a que avancemos para uma sociedade decente.
Preciso é que, na ação política concreta, a permanente animosidade tática ceda lugar a uma cultura de construção assente na pluralidade e no reforço do caráter deliberativo partilhado da democracia.


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NOTAS


[1] “E agora, Esquerda?” é o título de uma crónica que escrevi no meu blogue pessoal (“Machina Speculatrix”) a 7 de novembro de 2015, no mesmo dia em que a Comissão Política do PS mandatou António Costa para desenvolver contactos com todos os partidos com assento parlamentar à procura de uma saída para a situação política. Nesse texto não me colocava, de todo, na posição aparente da Comissão Política (falar com todos) e defendia claramente que era politicamente impossível deixar prosseguir a governação da direita e era imprescindível encontrar um caminho partilhado com os outros partidos de esquerda para dar outro rumo ao país. Na altura, alguns entenderam que a questão era só para a esquerda da esquerda (coerentes com a sua insistência de que o PS não é de esquerda), mas na verdade a interrogação e o desafio olhava para toda a esquerda, incluindo os socialistas. Até porque ainda havia, então, no PS, oposição aberta ao rumo que veio a ser seguido e que estava maduramente pensado.

[2] O “Programme Commun de Gouvernement du Parti Communiste e du Parti Socialiste”, na versão com prefácio de George Marchais, foi publicada em Portugal pela Seara Nova, em 1973.

[3] Documento publicado na altura em Portugal pela Juventude Socialista, numa edição que incluía o texto de um “projeto adicional”, apresentado pelo grupo de Jean Pierre Chevènement e que foi recusado pela maioria, invocando razões de método (o texto foi apresentado à última hora e sem ter sido submetido ao debate preparatório), mas também profundas divergências políticas.

[4] Para uma avaliação deste período, ver a Sexta Parte da obra de Donald Sassoon, Cem Anos de Socialismo, Lisboa, Contexto, 2001


Porfírio Silva, 22 de Julho de 2020
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21.7.20

Contra o desperdício da experiência

20:40



Aqui fica, para registo, a minha intervenção, esta tarde, na audição parlamentar do Ministro da Educação, sobre o próximo ano letivo.

(O título é, como se percebe pela intervenção, "roubado". Não será difícil ao leitor deste blogue identificar o autor dessa palavra de ordem tão oportuna.)

***


Senhor Ministro, temos procurado acompanhar esta situação que estamos a viver na educação, em grande parte socorrendo-nos dos testemunhos e das experiências daqueles que estão no terreno.

A Faculdade de Educação e Psicologia da Universidade Católica Portuguesa, no Porto, acaba de publicar um livro eletrónico, coordenado por José Matias Alves e Ilídia Cabral, que se chama “Covid 19 – Ensinar e Aprender no tempo do (pós) confinamento. O que aprendemos entre março e junho de 2020?”. Há aí vários elementos interessantes, eu não posso usar aqui todos, mas vou usar alguns.

Uma professora do ensino secundário, aproveitando uma expressão de outro autor, lança um alerta muito importante para o tempo que temos em mãos. A expressão é “contra o desperdício da experiência” e o alerta é: com aquilo que aprendemos, já não podemos ignorar a importância basilar do ensino presencial, mas temos também agora a obrigação de compreender que o regresso ao ensino presencial não deve ser um regresso à uniformização – nem à uniformização curricular, nem à pretensa homogeneidade das turmas, nem à uniformização dos tempos e dos espaços, nem à uniformização das equipas educativas.

Escreve essa professora: precisamos de dar mais protagonismo a modos de trabalho mais ativos (de professores e alunos), de incrementar a flexibilidade de espaços, de melhorar as possibilidades de reorganização dos tempos e de reorganizar o agrupamento dos atores (professores e alunos) – acrescentando “a importância de que o ensino e a aprendizagem respirem muito para além das tradicionais fronteiras da sala de aula”.

Talvez não pareça à primeira vista, mas, quer esta expressão “contra o desperdício da experiência”, quer este desafio de não voltarmos ao que era, como se não tivesse acontecido nada, são caminhos muito importantes para uma reflexão acerca daquilo que há agora a fazer. De facto, sem relação humana não há educação. O regresso ao ensino presencial é necessário, em termos de ensino, em termos de saúde (porque também é importante em termos de saúde física e de saúde mental este regresso ao presencial), e em termos de educação num sentido mais vasto: em termos de socialização, porque as pessoas não estão na escola só para aprender conteúdos ou só para aprender competências, estão também para aprender valores, princípios, formas de estar e de se relacionar. Em termos de direito à educação, sabemos todos hoje que a distância agravou as desigualdades – e nós temos que levar esse aviso a sério.

Temos, claro, que garantir elevados padrões de segurança no regresso ao ensino presencial. Isso é indispensável, mas nós também não podemos esquecer – lá está, não podemos desperdiçar a experiência – o que as escolas aprenderam neste tempo, não só quando tiveram que largar o presencial, mas também quando tiveram que regressar ao presencial. Sabemos que foi um regresso seguro, foi um regresso que funcionou bem, um regresso onde se aprendeu muito e com o qual ninguém foi prejudicado. E mesmo em termos internacionais, todos os países que regressaram ao ensino presencial puderam constatar que não houve nenhum descontrolo da situação sanitária por causa desse regresso.

Um outro elemento daquele livro eletrónico que mencionei é também sobre isto, e pode aí ler-se, noutro testemunho: “A solução é fechar as portas da escola? É isso que evita a propagação da pandemia? As crianças e jovens que vivem em condições degradadas e promíscuas correm muito mais riscos em casa e na sua comunidade quando não existem condições de higiene e de segurança. A escola, devidamente organizada e protegida, é o lugar mais seguro para a população escolar mais carenciada. (…) É preciso acolher as crianças onde corram menos riscos e onde se sintam mais confortáveis e mais seguras. Para uma grande parte dos alunos esse meio é a escola.”

E, portanto, nós temos aqui um grande desafio. É claro que temos de garantir as condições de segurança, mas temos de assumir as nossas responsabilidades, também as responsabilidades políticas. E assumir as responsabilidades políticas não é dizer “ficam todos fechados em casa, que é mais seguro, e não se faz nada”. Isso seria uma grande irresponsabilidade política. E nós temos que estar atentos às sereias da desgraça. Seria uma grande tolice se nós, como deputados, pensássemos que a imunidade parlamentar também é imunidade contra a infeção, mas andam próximos da mesma tolice aqueles que querem judicializar o regresso ao presencial, quase fazendo como se a questão do regresso ao presencial fosse uma questão de responsabilidade penal, onde se podem discutir responsabilidades materiais e responsabilidades morais.

Nós continuamos fiéis ao princípio de que a segurança é importante e tem de ser garantida, desde logo, levando em conta as orientações das autoridades de saúde. Mas, para que este regresso não seja apenas um regresso atrás, seja um regresso à frente, um regresso em que tiramos lições da experiência que tivemos, a minha pergunta, senhor ministro, é esta: que meios estão pensados para podermos fazer esse regresso ao futuro a partir daquilo que aprendemos?

Pergunto em termos, por exemplo, de pessoas: professores, tutorias, assistentes operacionais, assistentes técnicos, psicólogos. Em termos de meios que obriguem a essa recuperação do que foi este confinamento em termos de desigualdades. Mas também em termos de diversificação dos instrumentos.

Como já disse várias vezes, não sou nenhum fanático do digital, não sou nenhum fanático das tecnologias, porque nem sequer acho que sejam as tecnologias a dirigir a nossa vida – mas o que é que está a fazer para que existam as condições para que os meios tecnológicos, por um lado, e o apetrechamento pedagógico, por outro, sejam capazes de fazer deste regresso ao presencial um regresso com condições de segurança e também com as margens de opção necessárias para responder às eventualidades? Porque é claro que vai haver casos, é claro que vai haver situações em que tem de se responder com flexibilidade. Temos os meios, senhor ministro, e quais meios temos, para responder com sabedoria a esse regresso ao futuro, aprendendo com aquilo que se passou no passado recente?



Porfírio Silva, 21 de Julho de 2020

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14.7.20

Consenso e conhecimento em democracia

23:42


Tive oportunidade de me pronunciar favoravelmente sobre o mecanismo de informação relativo à pandemia de Covid-19 dirigida a dirigentes políticos e sociais, tal como foi praticado, com uma periodicidade irregular, nas instalações do Infarmed. O que sustentava essa minha posição era a utilidade daquelas reuniões para passar informação aprofundada e complexa a pessoas com responsabilidades de decisão, proveniente de pessoas com responsabilidades no estudo do problema e na gestão da situação. Não sendo públicas, nem tendo jornalistas, conciliavam-se naquelas sessões de trabalho duas necessidades: termos o melhor conhecimento disponível em cada momento, mesmo quando esse não podia dar uma conclusão inequívoca acerca do caminho a seguir; não transformar qualquer parte de um pacote complexo de informação em títulos jornalísticos apressados e parciais, capazes de desinformar as pessoas com verdades parcelares (e até aparentemente inconsistentes com outas verdades igualmente parcelares).

Um destes dias, o Presidente da República deu a entender, à saída de um desses encontros, que eles teriam acabado. A meio da mesma tarde, o Primeiro-Ministro disse que voltariam a encontrar-se quando houvesse informação relevante e necessidade. Cresceu, a partir daí, uma série de pronunciamentos políticos, e iniciativas, para retomar, numa ou outra forma, aquelas reuniões. Ou outras por elas. Há quem queira que seja tudo público, que seja no parlamento, que seja… enfim, já há setecentas e setenta propostas diferentes sobre o objecto.

Quero deixar dito um pequeno conjunto de coisas sobre a matéria.

Primeiro, os políticos têm de viver com a realidade de que da sua tarefa faz parte tomar decisões mesmo quando não há certezas científicas sobre os factos subjacentes. Até porque não há certezas científicas, ponto. Há teses mais ou menos suportadas em grandes convergências da comunidade científica, normalmente baseadas em elementos empíricos muito atendíveis, e que duram mais ou menos tempo, mas isso não são certezas. Incerteza? Habituem-se, por favor. Vivemos num mar de incerteza. E não tentemos usar os cientistas para convencer as pessoas de que há certezas. Usemos os cientistas, isso sim, para perceber o perfil da incerteza com que estamos a trabalhar. Até porque os nossos concidadãos precisam de entender isso mesmo, também eles.

Segundo, os políticos, para poderem aproveitar o melhor conhecimento disponível em cada momento, têm de aprender a dominar a tentação de falar em excesso. Estive em alguns daqueles encontros no Infarmed e fiquei espantado com o facto de, após 3 ou 4 horas a tentar digerir enormes quantidades de informação, nem sempre convergente, havia sempre uns tantos dirigentes partidários a apresentar versões simplificadas do que, supostamente, era “a mensagem” do que lá dentro se tinha ouvido. Quem tenta “espremer” em 5 minutos uma “conclusão” de 3 ou 4 horas de informação complexa, só para dar um título, arrisca-se a ser um aventureiro irresponsável – quanto mais não seja por transmitir a mensagem tresloucada de que o que se ouvia lá dentro era simples e cristalino e dava um rumo certo e límpido. Mais razão terá Rui Rio, que terá dito que nada daquilo era fácil de entender – e que nunca tentou “passar uma mensagem” do que lá se passava dentro. Alguém o fazia por ele, contudo.

Terceiro, quem pense que o pior já passou, que já não vale a pena manter um esforço de concertação política assente em conhecimento (por mais árduo que ele seja), que podemos voltar ao velho modo de tentar partir a loiça toda por meia dúzia de décimas nas sondagens – está rotundamente enganado e está a ignorar a dimensão do desafio que temos pela frente. Muitos dos nossos políticos agem como se fossem intelectual e emocionalmente incapazes de entender que só podemos viver num regime democrático funcional se soubermos trabalhar em cooperação competitiva, ou competição cooperativa – quer dizer, mantendo as nossas diferenças e disputas, tão importantes à democracia, mas dentro de um quadro de colaboração séria para preservar o essencial da nossa vida em comunidade. A falta de capacidade para a tal cooperação competitiva / competição cooperativa já é rotineiramente má em tempos normais, mas torna-se suicidária em tempos como estes, tempos onde podemos naufragar.

O papel das reuniões no Infarmed, para fazer o ponto da situação da pandemia, não pode servir mais um circo de falsa política das aparências. Os deputados recebiam as apresentações que nos eram mostradas nessas sessões: quantos abriam essas apresentações e quantos as estudavam? Conhecer a resposta a essa pergunta talvez ajudasse a entender quanto de oportunismo vai nas manobras que, agora, tentam fazer dos briefings do Infarmed, ou respectivos derivados, mais uma novela de enésima categoria.

Em vez de enchermos a boca de consensos, para tudo e para nada, talvez fosse melhor compreendermos a natureza da incerteza que enfrentamos. E como ela amplia extraordinariamente a nossa responsabilidade partilhada. E, cientes disso, sermos mais prudentes e mais esforçados em tentar as convergências mínimas indispensáveis. Porque não há tempos fáceis no horizonte e vamos precisar uns dos outros mais do que alguns parecem entender.



Porfírio Silva, 14 de Julho de 2020

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