Sem aparecerem muito nos jornais, mesmo nos blogues aparecendo pouco, mais acobertados nas caixas de comentários daqui e dali, e no Facebook, andam por aí os adeptos da teoria de que, no fundo, os bolseiros de investigação científica (essa maltosa que recebe dinheiro público para investigar) são um grupelho de chupistas. Quer dizer, tipos e tipas que são pagos por todos nós para fazerem coisas que, as mais das vezes, não interessam nada ao país. Há muitas modalidades dessa conversa dispersa. E é para essa gente que falam os Rui Ramos deste país.
Há os que dizem "ah, bolsas, querem viver de bolsas", esquecendo que "bolsas" são, muitas vezes, a forma de ter quem trabalhe sem lhes dar direitos, nem carreira, nem protecção social inerente ao trabalho, nem sequer subsídio de desemprego quando ficarem pendurados. Claro que, fazendo uso do anti-intelectualismo larvar da nossa "opinião", muitas vezes toma-se como premissa implícita a "ideia" de que nada se deve a quem investiu a escolaridade obrigatória, o secundário, uma licenciatura, um mestrado, um doutoramento e, depois, é tratado como se tudo isso não devesse fazer diferença nenhuma. Afinal, quem passou todo esse tempo a estudar e a investigar deve ser um pequeno monstro. Aliás, fazer um mestrado ou um doutoramento é coisa de crianças: isso não custa nada, é quase uma brincadeira, um desporto caro (isso parecem pensar mesmo alguns que se propuseram à coisa mas nunca pariram o resultado, talvez por ser demasiado fácil para a sua imensa bravura).
Há os que dizem “se essa investigação vale a pena, que não corra por conta do Estado, mas por conta das empresas, para que só se gaste dinheiro no que seja realmente um investimento e não despesismo”. Curiosamente, esquecem-se de criticar as empresas por investirem pouco em investigação: afinal, quem impede as empresas de investirem? Ou, afinal, trata-se apenas de canalizar tudo para as empresas e para o investimento no imediato? Claro, não se comovem nada com o facto de que, nos países com sistemas científicos mais desenvolvidos e com aparelhos produtivos mais poderosos, a estratégia não é perguntar todos os meses pela “mais-valia económica” da investigação, mas antes investir fortemente na investigação fundamental e deixar que, com o tempo, parte dos resultados tenham impacte económico. Há dias, na televisão, o Prof. António Coutinho lembrava que a Suíça, para alcançar o seu alto desempenho económico e científico, não financia as empresas para elas tratarem da ciência, antes financia fortemente a investigação fundamental nas instituições de investigação – sem merecer contestação do presidente da FCT, que estava sentado à sua frente. Em artigo recente no Público, o Prof. Carlos Fiolhais repisava «o que recordou há semanas no Porto, numa conferência sobre Ciência, Economia e Crise, o físico espanhol Pedro Echenique. Em 1995, quando se discutia nos Estados Unidos uma diminuição do financiamento público à investigação científica, os CEO de 15 das principais empresas de base científico-tecnológica, como a IBM e a General Electric, subscreveram uma carta aberta pedindo o reforço da ciência fundamental. Queriam que o Congresso continuasse o apoio "a um vibrante programa de investigação universitária com visão de futuro"». Por cá, entretanto, as velhas teorias de “virar a investigação para a valia económica” continuam alegremente a fazer de conta que esse imediatismo deu resultado em algum lado. E não deu. Mas isso não interessa nada a quem não percebe que isto não é uma questão de nível do défice público este ano, mas antes uma questão de projecto para o país, para o país que nos sobreviverá.
Entretanto, a sustentação deste “discurso sobre os chupistas” assenta muito numa ideia de destruição da cultura e num ódio populista às “elites”. O ódio às elites é de consumo fácil e amplamente praticado. Medra bem na cultura da inveja (“a mim também cortaram, eles não são mais do que eu, de que se queixam”) e reforça-se na vingança contra “os grandes”: esses senhores, lá por serem doutores, pensavam que escapavam? A ideia é que um doutorado é um privilegiado e, portanto, alvo automático da justa fúria popular. Quem tem essa bizarra mania de gostar de estudar e investigar só pode ser um pedante – pois que pague pelo seu pecado. E, claro, tudo fica muito mais negro quando se deixam as “áreas nobres” e se começa a falar nas Inutilidades (antigamente conhecidas por Humanidades). Que se gaste dinheiro em engenharias, em biologias, em ciências da saúde e outras de “interesse visível”, concordamos, visto o evidente ganho social expectável. Quando se passa para as ciências socias, já a conversa muda: o que interessa a antropologia? o que interessa estudar história, se isso não dá para fazer empresas rentáveis? Obviamente, quando chegamos à filosofia o escândalo é máximo: se já é corrente a ideia de que é uma inutilidade, a coisa pia ainda mais fino quando se trata de “investir” nesses domínios especulativos. No concurso de 2013 para Investigador FCT, João Gomes André contou as cabeças e afirmou: «Em Filosofia ganharam... dois estrangeiros. E ambos na área da Filosofia da Linguagem. Portugueses, népia. Restantes áreas da filosofia, népia.» Neste último concurso para bolsas, segundo André Barata (na sua página FB), "A nível nacional, foram aprovadas apenas 4 bolsas de doutoramento em filosofia." A ideia geral é esta: para muita opinião que por aí anda, que se gaste em Ciência com maiúscula ainda vá lá, mas muitas áreas de investigação são desperdício: a área das Inutilidades é a cultura e isso vende menos do que um estábulo de treinos reprodutivos em canal aberto na TV.
Este “pensamento” anda por aí. Como tal, é o caldo de cultura dos Rui Ramos que perderam a vergonha. E isso é grave. Não deixa, contudo, de ser mais preocupante que alguns investigadores cedam mentalmente a este enquadramento e comecem a “pensar” à moda corrente. Por exemplo: se calhar vai ser impugnado o concurso Investigador FCT de 2013. A impugnação será avaliada na justiça, provavelmente. Trata-se de conhecer a extensão das faltas contra os regulamentos que terão sido da responsabilidade da FCT. Entretanto, entre os que “ganharam” o seu contrato, espalha-se a ideia: que aborrecimento, a impugnação vai prejudicar-nos, podemos perder esta oportunidade, em vez de se conformarem… Isto é: os que (alguns dos que) ficaram de dentro sentem-se incómodos, não por terem ficado “de dentro” à custa de um concurso com contornos estranhos, mas por protestarem os que, eventualmente, foram prejudicados. Este governo, nisso, é excelente: tem jogado sistematicamente em que umas vítimas sejam os polícias das outras. E alguns alinham. E, não esqueçamos isso, muitos praticantes de “ciências sérias” também aprovam que se reduzam os financiamentos para as supracitadas “Inutilidades”: afinal, quando a manta é curta, mais vale que fiquem destapados os teus pés do que fiquem os meus ao frio.
Não vale a pena fugir ao assunto: na batalha da investigação, o governo tem do seu lado o sentimento populista contra as elites (ou “elites”, se preferirem) e joga essa cartada, porque é mais uma oportunidade de mobilizar “as massas” contra um “grupo restrito” que interessa domesticar. O interesse daquelas declarações de Rui Ramos, onde o homem nos faz passar por parvos (escondendo que em Portugal se seguiram as melhores práticas ao nível internacional na promoção do sistema científico), é mostrar isso mesmo: nada disto é falta de jeito, esta é mais uma política deliberada para torcer o braço a sectores importantes da cultura nacional.
Entretanto, há por aí quem se meta nesta guerra só porque "defender o governo é necessário". Isso não é novo e não acabará depois deste governo. Também há por aí quem diga "ah, eu também já passei muitas dificuldades, não estou impressionado com o vosso projecto de vida interrompido". A miséria humana não acabará nunca, claro. A miséria exterior. Mas também a miséria interior. Também isso esta crise ajudou a compreender. E, por vezes, isso é o mais difícil de engolir.