17.9.20

Carta Aberta a Ana Gomes

Cara Camarada Ana Gomes,
 
 1. Dirijo-lhe esta mensagem sobre a sua anunciada candidatura presidencial, porque, evidentemente, não posso ser indiferente a essa iniciativa política de uma militante do partido onde também me mobilizo. Contrariamente ao que se diz e escreve por aí, não tenho notícia de que António Costa tenha mandado calar o PS em matéria de eleições presidenciais. Uma coisa é solicitar aos membros do Governo que não confundam as suas funções com o debate pré-eleitoral; outra, bem diferente, seria solicitar aos socialistas que não se envolvam no debate, o que não aconteceu. Aliás, este debate já começou nos órgãos do PS, os quais, certamente, serão chamados a decidir oportuna e atempadamente sobre esta matéria importante para a nossa democracia.
 
 Pela minha parte, já tive oportunidade de me pronunciar nos órgãos internos do meu Partido, o local que privilegio para a formação de uma orientação coletiva. Contudo, em maio passado, parte da minha intervenção na Comissão Política Nacional sobre as presidenciais foi tornada pública pela comunicação social, de forma razoavelmente rigorosa, como tive de reconhecer na altura. 
 
 
 2. Para esta reflexão que quero partilhar consigo tomo, pois, como ponto de partida, o que naquela ocasião foi público do que disse.
 
 Primeiro, embora a prioridade dos socialistas tenha de ser a recuperação social e económica de Portugal, as presidenciais fazem parte do processo democrático que deve permitir criar as condições políticas para concretizar com sucesso esse trabalho. 
 
 Segundo, um eventual apoio do PS a Marcelo Rebelo de Sousa (MRS), declaradamente ou por não se posicionar, introduziria novos e importantes desequilíbrios no nosso regime democrático. Essa opção abriria um novo espaço à direita mais à direita. Ofereceria à extrema-direita o bónus de ser a principal novidade das eleições presidenciais, o palco da campanha. É disso que vivem os movimentos antissistema: ganharem o palco suficiente para parecerem decisivos e aglutinarem toda a espécie de ruturas fragmentárias com o que dizem ser a elite no poder (que é a forma como tratam os eleitos em democracia). A amálgama de radicalismos de direita que sempre namoraram o passismo seria vingada pelo venturismo, favorecendo uma reconfiguração da direita com vetores radicais mais agressivos. Um Ventura qualquer não ganhará as eleições, mas aproveitará a oportunidade para criar um foco federador de uma direita mais radical que perturbará o espaço do PSD e poderá puxar o PSD mais para a direita. Já vimos noutros países o preço que se paga por pensar que a extrema-direita é útil para enfraquecer a direita democrática. 
 
Terceiro, este cenário seria agravado no caso de, na área do PS, só estar disponível um candidato populista, sem histórico de um programa de esquerda articulado e coerente, mas com um histórico de confundir a política com corrupção e de pintar o PS como uma associação de malfeitores que já foi liderada por um secretário-geral criminoso.
 
 
 3. Tentarei avançar esta reflexão que partilho consigo a partir daqueles elementos. O ponto principal que quero aqui esclarecer é o de uma candidatura populista na área do PS. É certo que não mencionei o seu nome naquele contexto, mas também é certo que ele estava na minha mente nessa altura. Parece que isso escandaliza alguns. Há quem diga “não lhes chamem populistas, chamem-lhes extrema-direita”. Sim, há populistas de extrema-direita. Mas também há populistas de esquerda.
 
 Há alguns anos ofereci a seguinte caracterização genérica: populistas são aqueles que fazem de conta que são simples e fáceis de resolver os problemas que são complexos e difíceis de atacar; os populistas dificultam a resolução dos problemas porque, com as suas fantasias simplificadoras, impedem a comunidade de compreender quão complicado é o mundo e estorvam o esforço de costurar soluções que o sejam mesmo, em vez de ilusões. Se esta caracterização corresponde a um método político, forçoso é admitir que há propostas políticas de sinais diferentes que adotam o populismo como método. Tal como há ditadores que se reivindicam da direita e ditadores que se reivindicam da esquerda, conservadores de direita e conservadores de esquerda, há populismo de direita e populismo de esquerda. Aliás, há pensadores e ativistas que reivindicam explicitamente um populismo de esquerda. 
 
 Podemos discutir se é ou não o seu caso, mas é indiscutível que há populismos de esquerda. Essa caracterização, só por si, não atira ninguém para fora do debate democrático, mas merece consideração política. Em minha opinião, algumas das suas posições são caracterizáveis como populismo, na medida em que, designadamente no campo da justiça, tolera manifestações de desrespeito pelo Estado de direito e justifica práticas que desconsideram garantias com dignidade constitucional, pondo meritórios objetivos de salubridade pública em conflito com direitos individuais. O que não aceito, muito menos aceitaria na primeira magistrada da República. 
 
 Para os meus valores políticos, esta apreciação justifica que eu considere pernicioso para o PS que a participação do socialismo democrático nas presidenciais seja assegurada exclusivamente por um (ou uma) populista de esquerda. Tal como considero pernicioso que o PS participe nessas presidenciais alinhando na equipa de um candidato da direita. A sua candidatura pode dar um contributo relevante para o próximo processo eleitoral presidencial, à esquerda, embora eu preferisse poder votar numa ou num candidato do socialismo democrático que apostasse mais claramente no reforço da democracia representativa, participativa e deliberativa, sem atropelamentos ao Estado de direito e sem cedências aos falsos moralismos dos puros contra os impuros. 
 
 
 4. Convenhamos que há muitos anos que o espaço do socialismo democrático tem uma grande dificuldade em gerir a sua participação nas contendas presidenciais. Não vale a pena repetir aqui o histórico, porque a lista é longa e variada. Temos o dever de fazer algo para que não corra mal outra vez. O que me preocupa não é a pluralidade de candidaturas, o que me preocupa é a necessidade de nos sabermos focar no que importa.
 
 Sou, no PS, dos que convivem bem com a diversidade do nosso espaço. E dos que vivem com alegria na pluralidade da esquerda. Mas a diversidade não deve ser um fator de desunião, mas, antes, um caminho de construção da unidade plural. A Ana Gomes aparece, aos olhos de alguns, como uma candidata da esquerda do PS. Mas não vejo que a sua candidatura possa ser aglutinadora se persistir numa tónica muito presente nestes primeiros dias da sua condição de candidata, que consiste em falar como se tivesse vindo principalmente para atacar o líder do PS e atual PM. Alguns apareceram publicamente a apoiá-la com a justificação de ser necessário fazer frente a António Costa. Até houve quem acrescentasse que o problema de MRS é ser demasiado próximo de António Costa, esperando que Ana Gomes corrigisse isso. Ainda estou para perceber se isso corresponde ao que idealizava Francisco Assis quando lançou a sua candidatura. Espero que não se repita a tentação das últimas presidenciais, quando alguns no PS viram a candidatura de Maria de Belém como uma oportunidade para atacar o PS e a sua direção, tentando manipular uma eleição presidencial para um mesquinho ajuste de contas intrapartidário (o que, finalmente, só prejudicou a própria candidata). Seria conveniente que se tornasse claro que a Ana Gomes não cai em armadilha semelhante. 
 
 Não é mau que Ana Gomes apareça como candidata da esquerda do espaço do PS: o Presidente Jorge Sampaio também era um candidato da esquerda do PS e foi um dos melhores Presidentes da República que a nossa democracia conheceu. Sendo candidata, o seu dever é não aspirar a menos do que isso, mas precisa limpar o terreno de derivas perigosas, aclarando os seus objetivos.
 
 Cara Camarada, a sua presença no espaço público tem bandeiras, bandeiras relevantes como a dos direitos humanos – mas precisamos conhecer melhor como traduz, para estes tempos, uma mensagem renovada do socialismo democrático aos portugueses. Coisa que, em minha opinião, não resulta daquilo que conhecemos da sua intervenção pública. Politicamente, as presidenciais não podem ser apenas um choque de paixões: têm de ser um espaço de renovação da esquerda democrática. Poderá querer fazer isso tomando como alvo o partido que é a grande força do espaço político de que se reivindica?
 
 5. Ouvi, com satisfação, declarar que o seu adversário é MRS – ao mesmo tempo que reconhece os aspetos positivos do seu primeiro mandato. Estou na mesma posição: o mandato de MRS teve aspetos positivos, mas serve um programa que não é o da esquerda democrática. MRS esgotou-se – e isso, juntamente com o seu interesse nos conflitos no seio da direita política, não promete nada de bom para um segundo mandato. Aplaudo que o debate seja com MRS, até para não alargarmos artificialmente o palco do candidato da extrema-direita. 
 
 Contudo, o que até agora ouvimos de si é uma análise insuficiente daquilo que em MRS como PR é politicamente criticável. Precisamos de saber, por exemplo, como se posiciona face à articulação do PR com os demais órgãos de soberania, desde o Tribunal Constitucional ao Governo. Quando disse, na sua entrevista na RTP3, que o PR deve convocar um debate nacional sobre o rumo da estratégia do país, quando o Governo e o Parlamento estão a fazer isso, como lhes compete, pergunta-se: pretende introduzir um novo intervencionismo do PR na condução das políticas públicas? O que significa isso em termos de interpretação da Constituição? Disse na mesma entrevista que o PR deveria ter exigido publicamente a António Costa que fizesse uma aliança para ter maioria parlamentar de apoio ao Governo: isso significa que Cavaco Silva tinha razão em ter feito essa exigência em 2015? (O entrevistador perguntou-lhe isto mesmo, mas não entendi a sua resposta, que está em falta.) Está a propor um novo ativismo presidencial? Se MRS vencer, está a justificar, também para ele, um novo intervencionismo presidencial?
 
 6. Da minha intervenção no último Congresso Nacional do PS constaram estas palavras: “Porque é este PS, capaz de renovar a representação democrática, capaz de fazer funcionar o sistema de alternativas dentro da democracia, é este PS que fará frente a todos os populismos, quer sejam os populismos agressivos, quer sejam os populismos de salão. É este PS, exercendo em pleno a sua autonomia estratégica, apresentando-se a todas as eleições nacionais, com as suas candidaturas, com o seu programa, com os seus rostos, com as suas ideias, é este PS que será capaz de continuar a servir Portugal e os portugueses.” 
 
Não costumo falar por falar nestas ocasiões. Se mencionei os populismos agressivos e os populismos de salão, é porque entendi ser necessário ter presente que não enfrentamos apenas o risco do populismo extremista – e o populismo de salão bem pode andar por aí à solta nos melhores palácios da República. Se falei na necessidade de comparecer a todas as eleições nacionais como forma de exercitar a autonomia estratégica do PS, é porque valorizo a necessidade de nunca desistir de desdobrar a nossa visão do mundo em todas as encruzilhadas de decisão democrática.
 
 Acredito que a sua candidatura pode ter um papel positivo neste caminho. Mas isso depende do que lhe falta dizer e do que lhe falta fazer para sabermos ao que vem. Em coerência com a sua reivindicação do património dos Presidentes da República que partilharam connosco a grande casa do socialismo democrático. Porque o campo democrático, na sua pluralidade, pode fazer regredir os inimigos do progresso e os inimigos da igualdade cidadã. Só que, para isso, não podemos enganar-nos de adversários, nem enganar-nos de causas. Nem ceder ao facilitismo de saltar por cima do Estado de direito, barreira contra a incivilidade.
 
Tudo isto me interessa, como socialista, pela simples razão de não tencionar votar em qualquer candidato da direita (poderia fazê-lo se fosse necessário para travar um candidato neofascista, mas não creio que estejamos nessa contingência) e de não querer votar em candidatos que se apresentam contra o projeto europeu, que me parece indispensável ao desenvolvimento e progresso do nosso país.
 
 
 Porfírio Silva, 17 de Setembro de 2020 
 
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10.9.20

Contra o desperdício da experiência

 
Para registo, deixo aqui a Declaração Política que, em nome do Grupo Parlamentar do Partido Socialista, produzi esta tarde no Parlamento. Sobre o desafio da recuperação social e económica de Portugal.
 
 ***
 
Senhor Presidente, Senhores e Senhoras Deputadas,
 
 O país respondeu de forma determinada às primeiras fases da crise pandémica e da crise social e económica por ela espoletada. Mas falta ainda um longo e duro caminho a percorrer. Ninguém escolheu viver em tempos de pandemia, mas é nossa responsabilidade enfrentar os novos desafios com uma resposta de futuro e não meramente conjuntural.
 
O Plano de Recuperação social e económica, cuja elaboração tem merecido uma participação alargada da sociedade, e cujo debate pretendemos aprofundar aqui no Parlamento, não será uma mera resposta tecnocrática à crise. Será uma resposta política, no sentido mais nobre da política: promover o bem comum, defender o que é de todos, mobilizando a diversidade dos saberes, das competências e das responsabilidades, e também a diversidade dos pontos de vista.
 
O país exige essa resposta, seja para proteger a saúde, seja para promover o emprego e reforçar a coesão social e territorial, seja para aumentar o potencial produtivo do país, o que é necessário para dar sustentabilidade ao Estado social e exige uma aceleração da qualificação das pessoas, da qualificação das organizações, da qualificação da Administração, da qualificação dos territórios. Ou seja, ainda, para alinhar as agendas da transição climática e da transição digital com a agenda do trabalho com direitos e com a agenda de uma sociedade decente.
 
Entretanto, há que assegurar que o plano de recuperação seja dotado dos meios adequados e, aí, a frente europeia é decisiva.
 
A União Europeia, afinal, aprendeu alguma coisa com os erros cometidos na anterior crise e, hoje, já ninguém responsável assume uma resposta austeritária. Portugal pode orgulhar-se de ter contribuído para essa evolução. Por ter demonstrado, pela prática, que havia outro caminho e que este dava melhores resultados. Mas, também, porque o Governo de Portugal desempenhou um papel relevante na configuração de uma resposta europeia forte e inovadora.
 
Contudo, a partida não está ainda ganha. Os complexos procedimentos de decisão não estão concluídos. Todas as diferentes correntes políticas com representatividade europeia estão convocadas para a missão de fazer concretizar atempadamente as decisões necessárias.
 
Temos, também, de assegurar que os meios são utilizados com a máxima eficiência. Temos de combinar produtivamente ferramentas diversas, desde o investimento público ao investimento privado capaz de uma dinamização empresarial que reforce os fatores de competitividade sustentável, passando pelo investimento direto estrangeiro e pela diversificação da economia portuguesa, com um vetor de reindustrialização hoje mais generalizadamente reconhecido como incontornável.
 
Senhor Presidente, Senhores Deputados,
 
A democracia torna-nos mais fortes. Mais capazes. Se, no dizer de Luís de Camões, “um fraco rei faz fraca a forte gente”, hoje, que já não há rei e o soberano é o povo, o trabalho de nos fazermos fortes consiste em fazer funcionar a democracia para responder aos problemas concretos dos portugueses. 
 
Temos de pensar no horizonte de uma década. As políticas públicas, nas suas traves mestras, carecem de continuidade para produzirem efeitos. O país precisa de todas as forças democráticas, incluindo aquelas que, hoje na oposição, se preparam para ser governo no futuro. Porque um país se faz de convergências e de divergências, não devemos ter medo nem de umas nem de outras.
 
A política democrática precisa de ser simultaneamente cooperação e competição: cooperação competitiva, competição cooperativa. No plano político, mas também dinamizando um efetivo diálogo social a todos os níveis, tão urgente, por exemplo, para fazer das novas possibilidades de trabalho remoto um fator favorável à conciliação de vida privada, vida familiar e vida profissional – e não um novo risco para os direitos dos trabalhadores.
 
No que toca à responsabilidade de garantirmos a estabilidade política necessária à vastidão da tarefa, usarei uma expressão de um conhecido sociólogo português: agir “contra o desperdício da experiência”. Um plano de recuperação não começa do zero. Tal como não faria sentido que o plano de recuperação fizesse tábua rasa das realizações destes últimos anos, seria insensato desperdiçar a experiência de cooperação estruturada acumulada pela maioria parlamentar das esquerdas. Fizemos uma aprendizagem conjunta, sem ignorar as nossas diferenças, mas fazendo o trabalho de resolver os problemas. Contra o desperdício da experiência, devemos mobilizá-la para fazer o que falta fazer, num rumo claro: melhor economia e uma sociedade decente têm de ir a par. É que a desigualdade e a pobreza, além de fazerem mal à nossa humanidade, também fazem mal à economia.
 
O país, e aqueles que representamos, não compreenderiam que, nesta encruzilhada, deixássemos a meio o caminho que falta fazer.
 
No PS, estamos aqui para assumir e continuar a partilhar a responsabilidade desse caminho. Contra o desperdício da experiência.
 
Porfírio Silva, 10 de Setembro de 2020
 
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6.9.20

Recuperar Portugal: Educação

Para registo, deixo aqui o meu artigo de hoje no Público: Recuperar Portugal: Educação
 
 ***
 
 
Enquanto a grande parceria (escolas, famílias, Estado) continua a preparar o próximo ano lectivo, temos de pensar também no tempo mais longo da recuperação social e económica. Num exercício de reflexão estratégica pensamos sempre em muitas camadas da realidade, mas a sua tradução em acção política exige prioridades pouco numerosas e decisivas. Proponho que, para a Educação, precisamos de dois focos: fazer evoluir a inserção da escola na comunidade local; revolucionar a sala de aula.
 
Assumir que as escolas não são apenas máquinas de transmitir conhecimentos e que devem assumir-se como instituições vitais nas comunidades exige, por exemplo: dar-lhes mais ferramentas de autonomia (também face ao poder político nacional ou local); enraizar os profissionais da educação nas escolas, dando estabilidade a cada profissional e aos projectos educativos (cada escola podendo atrair recursos necessários à sua especificidade); rejuvenescer o corpo docente, mas evitar um corte geracional brusco (permitir aos professores mais antigos modular as suas tarefas para aproveitar o melhor da sua experiência, em vez de os estimular a partir); dotar as escolas de meios para serem pólos de irradiação cultural nos seus territórios, até para aprofundar sinergias entre educação de jovens e de adultos; focar as escolas nas suas missões essenciais, fazer da desburocratização da sua relação com a Administração a próxima prioridade do Simplex, o que libertaria uma imensa energia para o essencial (ensinar).
 
Para avançarmos mais no combate ao abandono e ao insucesso temos de enfrentar o maior escolho nesse caminho: a desafeição de tantos alunos pelo aprender na escola. Por maior que seja o esforço, nada frutifica sem a adesão real do aluno. Para dar a volta a este problema temos de agarrar os alunos na sua diversidade. A escola não pode puxar só pelos que gostam de matemática ou literatura. Há-de puxar também pelos que preferem a actividade física, as artes, a experimentação laboratorial, as actividades práticas. Não para fechar ninguém nas preferências iniciais, mas para as usar como âncoras de novas descobertas. Para conseguir isto é preciso (além de facilitar a articulação entre as modalidades já existentes) revolucionar a sala de aula. Transformar salas fisicamente desenhadas para ouvir em salas desenhadas para agir: em equipa, em configurações variáveis, com recursos diversos e partilhados. E salas de aula activas também no sentido de mais atentas ao mundo cá fora, às questões quentes na sociedade: levar a sala de aula para fora da sala de aula.
 
Claro que é preciso dinheiro para fazer estas duas coisas: dar outra centralidade à escola nas comunidades locais e nos seus territórios; revolucionar a sala de aula para a tornar mais activa e mais diversa. É preciso investir mais na acção social, na modernização das escolas, nos profissionais da educação. Investir na desburocratização. Mas esse investimento vale a pena, porque ajudará a fazer da escola um instrumento cada vez mais decisivo para interromper a reprodução das desigualdades sociais, mais do que hoje se consegue. Para que cada criança ou jovem possa ser tudo aquilo que os seus talentos e esforço permitam, seja qual for o berço em que tenha nascido. É que a desigualdade e a pobreza, além de fazerem mal à nossa humanidade, também fazem mal à economia. A recuperação de Portugal precisa disso: quer para termos melhor economia, quer para avançar mais em direcção a uma sociedade decente.
 
Porfírio Silva, 6 de Setembro de 2020 
 
 
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4.9.20

Seremos, à esquerda, capazes?

1. Pensando especificamente no espaço europeu, conto-me entre os que entendem que as forças políticas democráticas precisam acelerar a compreensão de que a nova realidade de fragmentação do espaço público é um factor decisivo a ter em conta na acção.
 
Como escrevi no mais recente número da Finisterra (artigo “A Geringonça Morreu, Viva a Esquerda Plural!”, que foi replicado e pode ser lido neste blogue), a fragmentação dos parlamentos (mais partidos com representação parlamentar), a fragmentação sindical (onde o enfraquecimento dos sindicatos tradicionais vai a par com o surgimento de novos focos de oportunismo de aparência sindical, sem que isso represente necessariamente uma renovação do sindicalismo como força social progressista) e a fragmentação do espaço comunicacional (a produção de leituras do mundo para consumo público já não obedece a um cânone de fidelidade à realidade e está entregue a qualquer um disposto a produzir mentiras em massa) são dinâmicas interligadas de fragmentação do espaço público, que, no seu conjunto, exigem um esforço acrescido de resposta política da parte das forças progressistas, defensoras da liberdade, da representação democrática e da política pluralista. Isto vale também para Portugal.
 
2. Depois de, na campanha eleitoral para as últimas legislativas, o BE e o PCP terem, de forma explícita, passado a mensagem “votem em nós para o PS precisar dos partidos à sua esquerda na governação” e de o PS ter deixado transparecer, mesmo que isso possa ter sido involuntário, que se sentia atraído pelo suave perfume de uma maioria absoluta, o que se seguiu às eleições foi um conjunto de desencontros que passaram ao país a mensagem de uma desmontagem abrupta da solução política que dera estabilidade e rumo à legislatura anterior.
 
 Apesar de os dirigentes do BE insistirem na tese de que não houve acordo à esquerda porque o PS não quis, a verdade é bastante diferente. O PCP disse logo que cada um iria à sua vida, o BE propôs um acordo escrito e o PS disse que, em tais circunstâncias, teríamos de optar pela modalidade “faz-se caminho andando”.
 
O PCP foi, objectivamente, o responsável pela abrupta quebra de diálogo à esquerda: ao mostrar tamanha pressa em se livrar de qualquer compromisso, sem formular públicas exigências políticas e apenas evidenciando um cansaço extremo da “Geringonça”, desacreditou imediatamente a ideia de uma renovação da cooperação estruturada à esquerda. O medo das perdas eleitorais tolheu um partido ideologicamente adverso ao sistema eleitoral (pelo menos, se ainda é revolucionário).
 
O BE, seja porque entendeu que não podia mudar de discurso de um dia para o outro, seja porque entendia que tinha chegado a hora de entrar para o governo, aproveitou o recuo do PCP e deu um decidido passo em frente: proposta para um acordo escrito para a legislatura. A força da proposta do BE era simples: aquilo que fazia sentido, do ponto de vista da coerência da governação e do ponto de vista da estabilidade, depois de uma legislatura com muitos desencontros nas zonas mudas das “posições conjuntas”, era mesmo passar a uma estruturação mais clara de qual seria o programa de um governo suportado pelo conjunto da esquerda parlamentar. (Isto, apesar de algumas das condições apresentadas pelo BE se destinarem a evitar qualquer acordo, não a aproximar posições.) A fraqueza da proposta do BE era a política nos seus fundamentais: o PS não podia aceitar meia Geringonça depois de quatro anos de Geringonça inteira, o PS não podia aceitar ter um parceiro de primeira (BE com acordo escrito formal) e um parceiro (eventual) de segunda linha (entendimentos episódicos com o PCP, que, obviamente, não surgiriam nos momentos mais difíceis, aqueles momentos onde esses entendimentos seriam mais necessários). O PS não podia, aceitando uma Geringonça desfalcada e desequilibrada, aceitar tornar-se parte da disputa de morte (embora quase sempre discreta) que o PCP e o BE travam há muitos anos, porque isso faria do PS cúmplice de um dos processos degenerativos mais negativos que vive a política portuguesa – com a desvantagem suplementar de avivar as diferenças, dentro do próprio PS, entre os que preferem colaborar com o BE ou com o PCP (uma diferença, em larga medida, geracional). 
 
Alguns pensam que seria mais difícil ao PS ligar com parceiros de esquerda agindo em concertação. Eu creio que o PS, com os olhos postos no sucesso da governação, teria tudo a ganhar numa maioria parlamentar com todos os partidos à sua esquerda. No entanto, no momento descrito nos parágrafos anteriores, momento em que se decidiu a fórmula política para entrar nesta legislatura, o PS não disse isso clara e publicamente. Em parte, para poupar o PCP: tentámos poupar o PCP ao registo frontal das suas responsabilidades no estilhaçar da maioria parlamentar. Fizemos mal. Também eu participei, pelo comportamento, na escolha de não apontar o dedo ao PCP nesse momento. Portanto, também eu errei. Porque a verdade política é nua e crua: foi o PCP que matou na origem qualquer possibilidade de termos feito desta legislatura uma legislatura de estabilidade política à esquerda, com rumo certo de progresso e desenvolvimento social para os portugueses. Sabendo que o PCP nunca iria voltar atrás de uma decisão tão radical de corte, evitámos o tempo da insistência política pública, da renovação das nossas propostas. Não quisemos fazer um caso, para poupar um partido que respeitamos. Fizemos mal: devíamos ter investido mais tempo e mais capital político em clarificar publicamente o que estava a acontecer. Pelo menos, isso poderia poupar-nos à recorrente narrativa falsa que o BE usa contra o PS nesse ponto.
 
3. Tendo a legislatura começado assim, assim continuou: cheia de desencontros. Creio que uma parte do país vê como uma novela de fraca qualidade os desencontros fortuitos à esquerda. Os eleitores de esquerda compreendem bem que PS, BE e PCP são diferentes e expressam as suas diferenças em dificuldades políticas. Mas compreendem mal que não se faça o necessário trabalho político para ultrapassar as dificuldades a favor de soluções políticas adequadas para problemas que têm de ser resolvidos.
 
O PS fala agora mais claro, dizendo aquilo que era razoável desde o início: precisamos de dar ao país a estabilidade política que permita fazer aquilo que é preciso fazer, com sentido estratégico. A crise social e económica, provocada pela crise pandémica, torna essa necessidade mais evidente e mais premente. Muitos de nós pensávamos, na legislatura anterior, que os acordos à esquerda não podiam induzir conservadorismos imobilistas em áreas de reforma que não cabem na agenda de comunistas e bloquistas. Seria necessário aprofundar o diálogo à esquerda para enfrentar problemas bloqueados há muitos anos, sob pena de deixarmos espaço à direita para vir a “resolver” (mal) essas situações quando regressar ao poder. Ora, um governo minoritário do PS, sozinho no espaço parlamentar, não pode abandonar essa preocupação. Deve, portanto, procurar os meios políticos para uma governação com os olhos postos no futuro. Como?
 
4. A luta discursiva pela ocupação do território da esquerda deixou de interessar ao país. Os eleitores do PS, do BE ou do PCP acabam por se cansar – acho que já se cansaram – da dialéctica em torno da herança e do futuro da Geringonça. Há uma fadiga das tricas à esquerda. A direita mais reaccionária já oferece material suficiente à comunicação social para alimentar as novelas do costume, à esquerda podemos prescindir de oferecer mais enredo de curto prazo. Já toda a gente percebeu que, colectivamente, a gestão da transição de legislaturas foi desastrosa do ponto de vista da esquerda plural. No meio de uma enorme crise, como a que estamos a atravessar, continuar o jogo do empurra é uma irresponsabilidade. Se persistirmos nessa tónica, perdemos todos – porque perde o país.
 
Temos de focar o debate político no que interessa às pessoas, no que conta para um país onde se viva melhor, para uma sociedade mais decente: com os recursos que temos, vistas as fraquezas que a pandemia tornou mais visíveis, como vamos salvar a economia, salvar o emprego, combater as desigualdades entre pessoas e entre territórios, eliminar a pobreza, proteger os rendimentos das pessoas, reforçar o SNS e a escola pública, tornar os serviços públicos mais capazes, como vamos tornar o país mais forte e melhorar a condição dos portugueses? O debate à esquerda, o compromisso a médio prazo para um rumo de progresso, tem de descer (ou subir) ao concreto, à definição de metas e à forma de monitorizar a sua execução, em torno de melhorias reais que sejam entendíveis pelas pessoas. Que cada um ponha as suas cartas na mesa, com clareza, mas com ambição global, de forma a que a cidadania veja bem o que estamos a discutir. O Governo vai apresentar um plano de recuperação, julgo que será uma boa base para uma discussão concreta e significativa, com concordâncias e discordâncias assumidas, para uma negociação que mobilize a cidadania. Seremos, à esquerda, capazes de deixar de lado a rotina da retórica e focarmos todas as nossas energias em responder à crise social e económica com uma governação progressista? A fragmentação do espaço público, com as ameaças que acarreta para a representação democráica, exige que sejamos capazes de uma resposta positiva a essa questão.
 
 Porfírio Silva, 4 de Setembro de 2020
 
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3.9.20

Podemos ensinar na escola pública que a Terra é plana?



Um conjunto de personalidades assinam um manifesto que dizem ser pela liberdade de educação, mas que, na realidade, dá voz à pretensão de transformar a educação na escola pública num supermercado em que cada um leva o que quer, deixando assim as nossas crianças e jovens reféns de qualquer seita a que pertençam os encarregados de educação das crianças e jovens que frequentam a escolaridade obrigatória e que, por causa dos preceitos dessa seita, queiram impedir a aprendizagem de certos conteúdos. Não vou aqui entrar no exercício de demonstrar a quantidade de mentiras que têm sido propaladas acerca do caso de Vila Nova de Famalicão, outros tratam disso com mais clareza do que eu. Basta dizer, para perceber o que está em causa, que, se aceitarmos a bitola do caso vertente e aceitarmos a versão que dele faz o dito manifesto, as nossas crianças e jovens deixam de ter direito à educação plural e aberta que lhes oferece a escola pública e passam a estar sob a ameaça de terem que se limitar, por exemplo, a uma geografia onde se ensine que a Terra é plana e uma biologia que negue a teoria da evolução e se limite a explanar uma qualquer teoria criacionista. Sim, porque o manifesto pela "liberdade de educação" é um manifesto a favor de que as famílias possam impedir as suas crianças e jovens de contactarem com o mundo plural de conhecimentos admitidos como relevantes para a formação de cidadãos livres.

Entretanto, reparo que aparece como um dos porta-vozes desse manifesto pela educação de seita uma personalidade com quem tive, há anos, um contacto directo que é muito relevante para apreciarmos o seu tamanho apego à liberdade. Refiro-me a Manuel Braga da Cruz, que, enquanto Reitor da Universidade  Católica, que era ao tempo, operacionalizou uma decisão que diz muito do seu apego à liberdade na educação. Tendo eu sido, por concurso, seleccionado para leccionar Filosofia na Faculdade de Ciências Humanas da Universidade Católica Portuguesa, e depois de me ter sido comunicada por escrito essa decisão, foi a mesma posteriormente anulada por uma razão puramente ideológica: teria eu subscrito um abaixo-assinado “contra a vinda do Papa a Portugal”. (O que, aliás, era mentira: o que a petição que subscrevi contestava não era a vinda do Papa a Portugal, nem o seu devido acolhimento, mas sim contra o facto de altos magistrados do Estado português confundirem e misturarem a condição de Chefe do Estado do Vaticano com a condição de líder religioso.)

Os factos mencionados são de 2011 e foram denunciados publicamente neste mesmo blogue (com posterior replicação em diversos órgãos de comunicação social, a partir dessa única fonte). Pode ler-se o texto aqui: Uma história pouco católica.

É este o tipo de liberdade que defendem os subscritores do manifesto?


Porfírio Silva, 3 de Setembro de 2020
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