1. Pensando especificamente no espaço europeu, conto-me entre os que entendem que as forças políticas democráticas precisam acelerar a compreensão de que a nova realidade de fragmentação do espaço público é um factor decisivo a ter em conta na acção.
Como escrevi no mais recente número da Finisterra (artigo “A Geringonça Morreu, Viva a Esquerda Plural!”, que foi replicado e pode ser lido neste blogue), a fragmentação dos parlamentos (mais partidos com representação parlamentar), a fragmentação sindical (onde o enfraquecimento dos sindicatos tradicionais vai a par com o surgimento de novos focos de oportunismo de aparência sindical, sem que isso represente necessariamente uma renovação do sindicalismo como força social progressista) e a fragmentação do espaço comunicacional (a produção de leituras do mundo para consumo público já não obedece a um cânone de fidelidade à realidade e está entregue a qualquer um disposto a produzir mentiras em massa) são dinâmicas interligadas de fragmentação do espaço público, que, no seu conjunto, exigem um esforço acrescido de resposta política da parte das forças progressistas, defensoras da liberdade, da representação democrática e da política pluralista. Isto vale também para Portugal.
2. Depois de, na campanha eleitoral para as últimas legislativas, o BE e o PCP terem, de forma explícita, passado a mensagem “votem em nós para o PS precisar dos partidos à sua esquerda na governação” e de o PS ter deixado transparecer, mesmo que isso possa ter sido involuntário, que se sentia atraído pelo suave perfume de uma maioria absoluta, o que se seguiu às eleições foi um conjunto de desencontros que passaram ao país a mensagem de uma desmontagem abrupta da solução política que dera estabilidade e rumo à legislatura anterior.
Apesar de os dirigentes do BE insistirem na tese de que não houve acordo à esquerda porque o PS não quis, a verdade é bastante diferente. O PCP disse logo que cada um iria à sua vida, o BE propôs um acordo escrito e o PS disse que, em tais circunstâncias, teríamos de optar pela modalidade “faz-se caminho andando”.
O PCP foi, objectivamente, o responsável pela abrupta quebra de diálogo à esquerda: ao mostrar tamanha pressa em se livrar de qualquer compromisso, sem formular públicas exigências políticas e apenas evidenciando um cansaço extremo da “Geringonça”, desacreditou imediatamente a ideia de uma renovação da cooperação estruturada à esquerda. O medo das perdas eleitorais tolheu um partido ideologicamente adverso ao sistema eleitoral (pelo menos, se ainda é revolucionário).
O BE, seja porque entendeu que não podia mudar de discurso de um dia para o outro, seja porque entendia que tinha chegado a hora de entrar para o governo, aproveitou o recuo do PCP e deu um decidido passo em frente: proposta para um acordo escrito para a legislatura. A força da proposta do BE era simples: aquilo que fazia sentido, do ponto de vista da coerência da governação e do ponto de vista da estabilidade, depois de uma legislatura com muitos desencontros nas zonas mudas das “posições conjuntas”, era mesmo passar a uma estruturação mais clara de qual seria o programa de um governo suportado pelo conjunto da esquerda parlamentar. (Isto, apesar de algumas das condições apresentadas pelo BE se destinarem a evitar qualquer acordo, não a aproximar posições.) A fraqueza da proposta do BE era a política nos seus fundamentais: o PS não podia aceitar meia Geringonça depois de quatro anos de Geringonça inteira, o PS não podia aceitar ter um parceiro de primeira (BE com acordo escrito formal) e um parceiro (eventual) de segunda linha (entendimentos episódicos com o PCP, que, obviamente, não surgiriam nos momentos mais difíceis, aqueles momentos onde esses entendimentos seriam mais necessários). O PS não podia, aceitando uma Geringonça desfalcada e desequilibrada, aceitar tornar-se parte da disputa de morte (embora quase sempre discreta) que o PCP e o BE travam há muitos anos, porque isso faria do PS cúmplice de um dos processos degenerativos mais negativos que vive a política portuguesa – com a desvantagem suplementar de avivar as diferenças, dentro do próprio PS, entre os que preferem colaborar com o BE ou com o PCP (uma diferença, em larga medida, geracional).
Alguns pensam que seria mais difícil ao PS ligar com parceiros de esquerda agindo em concertação. Eu creio que o PS, com os olhos postos no sucesso da governação, teria tudo a ganhar numa maioria parlamentar com todos os partidos à sua esquerda. No entanto, no momento descrito nos parágrafos anteriores, momento em que se decidiu a fórmula política para entrar nesta legislatura, o PS não disse isso clara e publicamente. Em parte, para poupar o PCP: tentámos poupar o PCP ao registo frontal das suas responsabilidades no estilhaçar da maioria parlamentar. Fizemos mal. Também eu participei, pelo comportamento, na escolha de não apontar o dedo ao PCP nesse momento. Portanto, também eu errei. Porque a verdade política é nua e crua: foi o PCP que matou na origem qualquer possibilidade de termos feito desta legislatura uma legislatura de estabilidade política à esquerda, com rumo certo de progresso e desenvolvimento social para os portugueses. Sabendo que o PCP nunca iria voltar atrás de uma decisão tão radical de corte, evitámos o tempo da insistência política pública, da renovação das nossas propostas. Não quisemos fazer um caso, para poupar um partido que respeitamos. Fizemos mal: devíamos ter investido mais tempo e mais capital político em clarificar publicamente o que estava a acontecer. Pelo menos, isso poderia poupar-nos à recorrente narrativa falsa que o BE usa contra o PS nesse ponto.
3. Tendo a legislatura começado assim, assim continuou: cheia de desencontros. Creio que uma parte do país vê como uma novela de fraca qualidade os desencontros fortuitos à esquerda. Os eleitores de esquerda compreendem bem que PS, BE e PCP são diferentes e expressam as suas diferenças em dificuldades políticas. Mas compreendem mal que não se faça o necessário trabalho político para ultrapassar as dificuldades a favor de soluções políticas adequadas para problemas que têm de ser resolvidos.
O PS fala agora mais claro, dizendo aquilo que era razoável desde o início: precisamos de dar ao país a estabilidade política que permita fazer aquilo que é preciso fazer, com sentido estratégico. A crise social e económica, provocada pela crise pandémica, torna essa necessidade mais evidente e mais premente. Muitos de nós pensávamos, na legislatura anterior, que os acordos à esquerda não podiam induzir conservadorismos imobilistas em áreas de reforma que não cabem na agenda de comunistas e bloquistas. Seria necessário aprofundar o diálogo à esquerda para enfrentar problemas bloqueados há muitos anos, sob pena de deixarmos espaço à direita para vir a “resolver” (mal) essas situações quando regressar ao poder. Ora, um governo minoritário do PS, sozinho no espaço parlamentar, não pode abandonar essa preocupação. Deve, portanto, procurar os meios políticos para uma governação com os olhos postos no futuro. Como?
4. A luta discursiva pela ocupação do território da esquerda deixou de interessar ao país. Os eleitores do PS, do BE ou do PCP acabam por se cansar – acho que já se cansaram – da dialéctica em torno da herança e do futuro da Geringonça. Há uma fadiga das tricas à esquerda. A direita mais reaccionária já oferece material suficiente à comunicação social para alimentar as novelas do costume, à esquerda podemos prescindir de oferecer mais enredo de curto prazo. Já toda a gente percebeu que, colectivamente, a gestão da transição de legislaturas foi desastrosa do ponto de vista da esquerda plural. No meio de uma enorme crise, como a que estamos a atravessar, continuar o jogo do empurra é uma irresponsabilidade. Se persistirmos nessa tónica, perdemos todos – porque perde o país.
Temos de focar o debate político no que interessa às pessoas, no que conta para um país onde se viva melhor, para uma sociedade mais decente: com os recursos que temos, vistas as fraquezas que a pandemia tornou mais visíveis, como vamos salvar a economia, salvar o emprego, combater as desigualdades entre pessoas e entre territórios, eliminar a pobreza, proteger os rendimentos das pessoas, reforçar o SNS e a escola pública, tornar os serviços públicos mais capazes, como vamos tornar o país mais forte e melhorar a condição dos portugueses? O debate à esquerda, o compromisso a médio prazo para um rumo de progresso, tem de descer (ou subir) ao concreto, à definição de metas e à forma de monitorizar a sua execução, em torno de melhorias reais que sejam entendíveis pelas pessoas. Que cada um ponha as suas cartas na mesa, com clareza, mas com ambição global, de forma a que a cidadania veja bem o que estamos a discutir. O Governo vai apresentar um plano de recuperação, julgo que será uma boa base para uma discussão concreta e significativa, com concordâncias e discordâncias assumidas, para uma negociação que mobilize a cidadania. Seremos, à esquerda, capazes de deixar de lado a rotina da retórica e focarmos todas as nossas energias em responder à crise social e económica com uma governação progressista? A fragmentação do espaço público, com as ameaças que acarreta para a representação democráica, exige que sejamos capazes de uma resposta positiva a essa questão.
Porfírio Silva, 4 de Setembro de 2020