10.10.09

esquerda quimicamente pura?


Jorge Bateira (JB), em artigo no Público (6 de Outubro, republicado no Ladrões de Bicicletas, onde o li), trata da questão “Tornar possível a esquerda necessária”. O texto merece reflexão. E comentários.

Há dois pontos de partida no texto de JB. Primeiro, “as esquerdas” não souberam entender os anseios do seu eleitorado e construir uma solução governativa estável, face a um cenário político (o actual) que há muito era previsível. Segundo, é necessária uma “esquerda socialista” que não se limite a fazer a gestão do capitalismo (para usarmos uma expressão antiga, que não é de JB). A proposta de JB para dar uma resposta a essa situação é “a criação de um grande partido que se reivindique do reformismo transformador”.

Há, neste balanço e proposta, vários pontos que merecem consideração.

Em primeiro lugar, dada a forma como coloca a questão das esquerdas, JB é equívoco quanto ao Partido Socialista. Está a propor que se tente implicar o PS numa renovação das esquerdas ou está a propor que se tente destruir (e/ou vencer) o PS? Se está a propor que se tente destruir o PS, mais valia assumi-lo com clareza. Nesse caso partiríamos para o debate sabedores de que há quem, falando à esquerda, não seja capaz de uma avaliação correcta do papel do PS na construção da democracia portuguesa e na configuração de muitas soluções sociais progressistas que ela incorporou. Seria lamentável que JB fosse apenas mais um herdeiro do velho ódio leninista contra a social-democracia, um ódio que tem razões históricas muito concretas que não deveriam poluir o debate da esquerda em Portugal no século XXI. Até por se dar o facto de esse ódio histórico estar intimamente ligado à dualidade entre revolução e liberdade, uma dualidade que teve muitas consequências liberticidas.

Em segundo lugar, numa coisa JB não é equívoco: parece que todos os males da esquerda se devem aos partidos socialistas, ao PS e aos seus congéneres. Os partidos “socialistas” (entre aspas, como coloca JB) são denunciados como estando distraídos de tudo o que é essencial. Contudo, JB não tem uma linha para reflectir sobre o peso de outros problemas da esquerda: as esquerdas que perderam o respeito à liberdade, as esquerdas com concepções extremamente centralistas e controladoras acerca da relação entre o Estado e a sociedade, as esquerdas moralmente repressivas e retrógradas, as esquerdas que perderam a noção da eficiência social, as esquerdas cúmplices do militarismo e do nacionalismo, … Será necessário dar exemplos, JB? É certo que há erosão, ou talvez mesmo decadência, em certos partidos da Internacional Socialista, como JB menciona: mas não se poderá dizer o mesmo, ou pior, de outras forças da esquerda europeia e mundial? Das duas uma: ou JB só acha interessante aquela esquerda que não tenha qualquer enraizamento na história dos séculos XIX e XX, e procura uma esquerda quimicamente pura – ou, se pelo contrário quer contar com a experiência e a história de todas as esquerdas que realmente têm existido, não pode fazer um balanço tão enviesado e parcial. Talvez por ver as coisas deste modo não consiga JB ser mais equilibrado a distribuir responsabilidades quanto à actual (quase) impossibilidade de uma solução governativa estável à esquerda.

Em terceiro lugar, JB parece demasiado simplista a elencar os pecados dos partidos “socialistas” (com aspas, a seu gosto), dando de barato que esses partidos, enredados na gestão do capitalismo, não se interessam por questões como a democracia no seio da empresa, o equilíbrio de forças na negociação salarial, o pleno emprego como prioridade da política económica. Acho que, simplesmente, é factualmente errado que os partidos socialistas não se interessem por essas questões. Concordo que é preciso levar os partidos socialistas a serem mais agressivos na promoção dessas questões estruturantes, pelo menos em alguns casos, e até no caso português. Aí pesou o pensamento único, concordo. Mas acho completamente equivocado supor que todos aqueles temas sejam estranhos ao ideário social-democrata, trabalhista e socialista. Não vejo bem que tipo de estratégia possa servir a criação desse “homem de palha socialista” – para melhor tratar de o queimar. A não ser que se trate, efectivamente, do mero objectivo de destruir o PS.

JB coloca questões essenciais, que outros colocaram antes e que têm de continuar a ser colocadas. Por exemplo, quanto à necessidade de não continuar a tratar o trabalho e a natureza como mercadorias. Contudo e este é o meu quarto e último ponto – parece -me redutor sugerir, como faz JB, que para isso seja necessário criar um novo partido “agregador”. Essa forma de colocar as questões tem, a meu ver, dois problemas fundamentais. Primeiro, é uma forma de poluir a utopia: transfere a questão política para a questão da organização, naquela velha ideia da esquerda quimicamente pura: fazer um exército de anjos que não estejam contaminados pelos pecados do mundo. Tentativa de descontaminar a esquerda da sua história, em vez de assumir a história. (Se calhar isso faz falta a quem só vê defeitos na história dos socialistas, mas não vê problema nenhum no passado de outras esquerdas.) Segundo, centrar os esforços no “novo partido puro e limpo” será um álibi, uma desculpa esfarrapada, para não fazer o que realmente há a fazer: encontrar uma forma útil de convivência entre as esquerdas que existem. Que existem agora, que estão no terreno. É que o país e o mundo não param à espera desse exército de anjos despoluídos. E mais um atalho para fugir aos desafios que aí estão – seria puramente lamentável.