14.7.20

Consenso e conhecimento em democracia



Tive oportunidade de me pronunciar favoravelmente sobre o mecanismo de informação relativo à pandemia de Covid-19 dirigida a dirigentes políticos e sociais, tal como foi praticado, com uma periodicidade irregular, nas instalações do Infarmed. O que sustentava essa minha posição era a utilidade daquelas reuniões para passar informação aprofundada e complexa a pessoas com responsabilidades de decisão, proveniente de pessoas com responsabilidades no estudo do problema e na gestão da situação. Não sendo públicas, nem tendo jornalistas, conciliavam-se naquelas sessões de trabalho duas necessidades: termos o melhor conhecimento disponível em cada momento, mesmo quando esse não podia dar uma conclusão inequívoca acerca do caminho a seguir; não transformar qualquer parte de um pacote complexo de informação em títulos jornalísticos apressados e parciais, capazes de desinformar as pessoas com verdades parcelares (e até aparentemente inconsistentes com outas verdades igualmente parcelares).

Um destes dias, o Presidente da República deu a entender, à saída de um desses encontros, que eles teriam acabado. A meio da mesma tarde, o Primeiro-Ministro disse que voltariam a encontrar-se quando houvesse informação relevante e necessidade. Cresceu, a partir daí, uma série de pronunciamentos políticos, e iniciativas, para retomar, numa ou outra forma, aquelas reuniões. Ou outras por elas. Há quem queira que seja tudo público, que seja no parlamento, que seja… enfim, já há setecentas e setenta propostas diferentes sobre o objecto.

Quero deixar dito um pequeno conjunto de coisas sobre a matéria.

Primeiro, os políticos têm de viver com a realidade de que da sua tarefa faz parte tomar decisões mesmo quando não há certezas científicas sobre os factos subjacentes. Até porque não há certezas científicas, ponto. Há teses mais ou menos suportadas em grandes convergências da comunidade científica, normalmente baseadas em elementos empíricos muito atendíveis, e que duram mais ou menos tempo, mas isso não são certezas. Incerteza? Habituem-se, por favor. Vivemos num mar de incerteza. E não tentemos usar os cientistas para convencer as pessoas de que há certezas. Usemos os cientistas, isso sim, para perceber o perfil da incerteza com que estamos a trabalhar. Até porque os nossos concidadãos precisam de entender isso mesmo, também eles.

Segundo, os políticos, para poderem aproveitar o melhor conhecimento disponível em cada momento, têm de aprender a dominar a tentação de falar em excesso. Estive em alguns daqueles encontros no Infarmed e fiquei espantado com o facto de, após 3 ou 4 horas a tentar digerir enormes quantidades de informação, nem sempre convergente, havia sempre uns tantos dirigentes partidários a apresentar versões simplificadas do que, supostamente, era “a mensagem” do que lá dentro se tinha ouvido. Quem tenta “espremer” em 5 minutos uma “conclusão” de 3 ou 4 horas de informação complexa, só para dar um título, arrisca-se a ser um aventureiro irresponsável – quanto mais não seja por transmitir a mensagem tresloucada de que o que se ouvia lá dentro era simples e cristalino e dava um rumo certo e límpido. Mais razão terá Rui Rio, que terá dito que nada daquilo era fácil de entender – e que nunca tentou “passar uma mensagem” do que lá se passava dentro. Alguém o fazia por ele, contudo.

Terceiro, quem pense que o pior já passou, que já não vale a pena manter um esforço de concertação política assente em conhecimento (por mais árduo que ele seja), que podemos voltar ao velho modo de tentar partir a loiça toda por meia dúzia de décimas nas sondagens – está rotundamente enganado e está a ignorar a dimensão do desafio que temos pela frente. Muitos dos nossos políticos agem como se fossem intelectual e emocionalmente incapazes de entender que só podemos viver num regime democrático funcional se soubermos trabalhar em cooperação competitiva, ou competição cooperativa – quer dizer, mantendo as nossas diferenças e disputas, tão importantes à democracia, mas dentro de um quadro de colaboração séria para preservar o essencial da nossa vida em comunidade. A falta de capacidade para a tal cooperação competitiva / competição cooperativa já é rotineiramente má em tempos normais, mas torna-se suicidária em tempos como estes, tempos onde podemos naufragar.

O papel das reuniões no Infarmed, para fazer o ponto da situação da pandemia, não pode servir mais um circo de falsa política das aparências. Os deputados recebiam as apresentações que nos eram mostradas nessas sessões: quantos abriam essas apresentações e quantos as estudavam? Conhecer a resposta a essa pergunta talvez ajudasse a entender quanto de oportunismo vai nas manobras que, agora, tentam fazer dos briefings do Infarmed, ou respectivos derivados, mais uma novela de enésima categoria.

Em vez de enchermos a boca de consensos, para tudo e para nada, talvez fosse melhor compreendermos a natureza da incerteza que enfrentamos. E como ela amplia extraordinariamente a nossa responsabilidade partilhada. E, cientes disso, sermos mais prudentes e mais esforçados em tentar as convergências mínimas indispensáveis. Porque não há tempos fáceis no horizonte e vamos precisar uns dos outros mais do que alguns parecem entender.



Porfírio Silva, 14 de Julho de 2020

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