A Presidente do Grupo Parlamentar do PS, Ana Catarina Mendes, fez várias afirmações importantes na cerimónia comemorativa do 25 de Abril, este ano outra vez na Assembleia da República. Quero daí aqui destacar um pequeno excerto: “Sentir medo é próprio de ser humano. Mesmo os que resistiram durante a ditadura não deixaram de ter medo, mas souberam não o deixar vencer. Também hoje é nossa responsabilidade não decidirmos condicionados pelo medo, e impedir a exploração do medo como arma política.” Este pronunciamento é decisivamente importante para a democracia. Explico-me.
O medo é uma ameaça política. Por uma razão muito forte: porque o medo é a negação da política democrática. A política democrática conta com a diversidade e com a pluralidade como elementos daquela sageza colectiva necessária para criar um espaço público suficientemente flexível e aberto para acolher gente diferente e escolhas diferentes. E pretende fazer isso sem deixar de respeitar as escolhas maioritárias, assumindo que as escolhas maioritárias têm, elas próprias, de ser respeitadoras da diversidade. O medo vai contra isso.
O medo é, fora dos tempos de guerra, a mais temível arma utilizável contra a liberdade individual. E não há verdadeiramente liberdades colectivas sem liberdades individuais. O medo cria a massa em transe, cria quase instantaneamente a pretensão de unanimidade e gera a reacção aplanadora contra quem sai do carreiro, assumido como um perigo (ou até um inimigo). O medo só vê um caminho e rejeita qualquer hesitação quanto a ele. E pode fazê-lo violentamente, porque diminui o campo do raciocínio.
Nada disto é apenas teórico, nada disto é apenas acerca dos outros. Lembrem-se, embora isso tenha sido afastado rapidamente, de que no princípio do confinamento se registaram casos de várias pessoas que, das janelas dos edifícios, apupavam outras pessoas que viam na rua – sem saber se essas pessoas tinham, ou não, algum dos variados bons motivos para andar na rua, mesmo que fossem perfeitamente respeitadores das normas em vigor. Lembrem-se que há quem continue a exigir que seja publicamente divulgado onde estão as pessoas infectadas com Covid, aparentemente porque acham que deve caber à população adoptar os comportamentos apropriados a evitar o risco – caminho directo para fenómenos de estigmatização activa.
É esta dinâmica que favorece que os regimes autoritários usem o medo como arma política. O medo baixa as defesas democráticas, isola as vozes contra a corrente. É, por isso, decisivo que demos uma resposta democrática a cada situação, por mais difícil que ela seja, para retirarmos combustível ao medo. Cortar o oxigénio ao medo passa, muito, pelas opções políticas que fazemos. Escolher as políticas que exercitem a democracia e que não se acomodem à excepção.
Ainda estamos no momento da dor: a pandemia ainda dói forte. Creio que este é, ainda, o momento de prolongar um grau importante de convergência entre diferentes forças políticas quanto à frente sanitária e quanto à resposta imediata à crise social e económica. Parece-me que seria ajustado que o plano de estabilização e o orçamento suplementar seguissem, ainda, esse guião. Mas, olhando para a frente, sair do medo como sombra sobre a política democrática é sair da excepção, sair do medo é exercitar as alternativas, praticar o pluralismo. Sejamos concretos: o que queremos dizer com isto?
Por um lado, a excessiva radicalização do debate público está a favorecer uma perigosa extrema-direita que temos por cá. Alguma esquerda da esquerda, que já confessou ter um programa eleitoral social-democrata, mas não se conforma com esse estatuto pós-revolucionário, alimenta um tom que vem engrossando face à movimentação protofascista. Pensam poder vencer nesse campo – mas não podem, porque os admiradores de Salazar e quejandos são, hoje, muito mais profissionais no uso de toda a parafernália tradicional da violência e da subversão da ordem democrática, acrescendo um uso intenso das novas armas da era digital. Podíamos discorrer mais sobre os inconvenientes da radicalização excessiva do debate político, em geral, mas, no dia de hoje, bastará dizer que ele é o alimento principal dos protofascistas caseiros.
Por outro lado, devemos assumir que a democracia precisa de maioria e de oposições. Não acredito nas virtudes de um esquema em que quase todas as forças políticas assumem responsabilidades ao mesmo tempo, numa grande nebulosa indefinida. Acredito, por isso, que os socialistas não devem deixar de investir na maioria parlamentar, em larga medida informal, que deu estabilidade à anterior legislatura. Avalio que a maioria parlamentar que fez da legislatura anterior uma etapa política bem-sucedida não foi uma vida fácil para nenhum dos partidos que a compunham. Contudo, deu frutos. Creio que pode dar mais – e que é necessário que os dê.
Sejamos claros: nada tenho contra as maiorias absolutas de um só partido, podem ser tão democráticas como maiorias mais diversificadas e serão necessárias em certos momentos. Não obstante, não creio que dêem bom resultado estratégias políticas orientadas discretamente por esse fito. Se se entende que a situação do país exige um governo de maioria absoluta, isso deve ser claramente explicado à cidadania e claramente pedido ao eleitorado que vote em conformidade. Creio que o PS sabe bem que a sugestão da maioria absoluta nas anteriores eleições não lhe deu vantagem de espécie alguma. E estou convicto de que o país pode passar por esta crise dolorosíssima que apenas estamos a começar a viver sem precisar de uma maioria absoluta. Não devemos, portanto, embarcar nessa ilusão. Seria, aliás, absurdo que alguém se agarrasse a sondagens realizadas durante os dias do ambiente de estado de excepção para cimentar tal aspiração, porque isso seria não perceber a volatilidade dos estados de alma destes períodos.
O que precisamos mesmo, porque a crise é e será duríssima para os portugueses, é de garantir que as condições políticas não faltam para darmos a resposta de que o país precisa. Navegar à vista, à espera de que corra bem, é algo que não podemos arriscar face à imensidão da tarefa e do enorme sofrimento que esta crise tem o potencial para causar aos portugueses. Não faz sentido tentar absorver o PSD para uma maioria de circunstância, porque cabe a esse partido tratar de construir-se como alternativa. Não faz sentido ficar nas mãos de partidos que ainda discutem se têm ideologia ou não têm ideologia, porque nem sabemos o que isso quer dizer.
O mais razoável é tentar repetir nesta legislatura uma maioria plural das esquerdas portuguesas, que deu excelentes resultados na anterior legislatura (apesar de algumas insuficiências), a partir das bases já lançadas pelo governo do PS: não queremos o regresso da austeridade, porque ele não resolve os problemas dos portugueses e de Portugal; queremos proteger o emprego, proteger os rendimentos, relançar a economia para darmos a volta a este cabo das tormentas. Será fácil? Nunca. Será politicamente simples, dada a tentação permanente de explorar as dificuldades da crise contra o governo do momento? Não será. Temos, precisamente porque não será fácil, a obrigação de tentar dar a maior solidez possível a uma legislatura onde temos pela frente desafios inesperados, a somar aos com que já contávamos.
É nossa responsabilidade não deixar que o medo vença a política democrática. O melhor caminho para vencer a crise é assumir sem reservas que o melhor sistema para decidir bem e concretizar bem é o sistema da pluralidade e do equilíbrio de poderes entre instituições, sistema dentro do qual devemos procurar, em cada momento, soluções de estabilidade que permitam respostas efectivas aos desafios existentes.
(Ilustração de Derek Brahney, modificada)
Porfírio Silva, 16 de Junho de 2020