(Para registo, fica aqui meu o artigo que o jornal "Público" publicou no passado dia 6 de Outubro, o qual pode ser encontrado no sítio original clicando aqui.)
Os europeus enfrentam hoje desafios tremendos. Na União Europeia, a organização que criámos para esta região, a promessa de prosperidade partilhada foi seriamente danificada pelas políticas dos últimos anos. A própria democracia está em causa: não temos tido forças suficientes para travar as políticas de governos protofascistas, que desrespeitam os fundamentos do Estado de direito. A intolerância tornou-se uma força política tremenda, usando o medo como arma de fechamento ao outro e de afronta aos direitos humanos. O drama dos refugiados simboliza, ética e politicamente, os pés de barro da nossa construção. E este caminho tem o potencial para ameaçar a própria paz.
Assim, as eleições do próximo ano para o Parlamento Europeu (PE) exigem que assumamos as nossas responsabilidades. E isso passa por duas opções, diferentes mas articuladas: a democracia primeiro; e construir uma resposta de esquerda ao desafio europeu.
“A democracia primeiro” aponta para um pacto democrático, que inclua todas aquelas forças, da esquerda ou da direita, que não transigem com a extrema-direita, para constituir uma garantia suficiente de que a próxima formação do PE não será, com o álibi da governabilidade, ocasião para qualquer branqueamento das forças extremistas. Quando, no PS, nos definimos pelo socialismo democrático, o que queremos dizer é que não há socialismo sem democracia e que, portanto, primeiro está a democracia, antes de qualquer outra escolha. Igualmente, para o europeísmo democrático um inimigo da democracia é um inimigo da UE – e um pacto democrático pela UE devia, contra a tibieza cúmplice, definir e proteger esse compromisso fundamental.
Se um pacto democrático protege a liberdade das escolhas políticas, essas só podem efetivar-se havendo propostas claras e diferenciadas. O secretário-geral do PS tem repetido que as soluções tipo bloco central empobrecem a democracia, porque diminuem as escolhas políticas disponíveis. Isso é válido também para as europeias: os socialistas devem apresentar uma proposta política claramente distintiva. Só assim evitaremos atolarmo-nos num “centrismo europeísta”, onde faríamos figura de complacentes com as consequências das políticas de austeridade que foram a resposta errada, da direita, à Grande Recessão.
Uma proposta socialista para a UE terá de responder a factos duros no plano social: quase um quarto da população da UE está em risco de pobreza ou exclusão social; o fosso entre os mais ricos e os mais pobres aumenta; a precarização do trabalho atingiu níveis insuportáveis, apoiada na fragmentação das relações laborais e no enfraquecimento da negociação e contratação coletiva; os rendimentos do trabalho recuam face aos rendimentos do capital; acelera a degradação da conciliação entre vida pessoal, vida familiar e vida profissional. Não se sente hoje que a legislação europeia se traduza em melhoria sustentada das condições de trabalho. E a avaliação dessa “Europa Social” ausente não melhora com as promessas e ameaças da era digital ao mundo do trabalho. Ora, não é possível alinhar numa disciplina europeia para os défices e as dívidas públicas, com metas, controlos e sanções, e aceitar a ausência de idêntico rigor para proteger metas sociais e direitos humanos.
E é preciso completar a resposta às lições da crise. O colapso do Lehman Brothers em 2008 espoletou uma crise financeira mundial e esta foi transformada numa crise das dívidas soberanas e numa crise económica e social global. A resposta austeritária da UE contribuiu para esse processo, enquanto a hierarquização entre países credores e devedores serviu de ameaça fática ao método comunitário. O que se conseguiu entretanto reparar não disfarça que permanecem largamente incólumes mecanismos básicos responsáveis pelo que se passou nos últimos dez anos, incluindo a financeirização e a desregulação económica e a fragilização dos poderes públicos. É responsabilidade dos socialistas apontar as políticas da resposta necessária no plano europeu.
Cabe-nos, ainda, abrir caminhos para uma esquerda plural pela Europa. Tornar compatíveis na ação esquerdas várias, que são e continuarão a ser diferentes. Tecer uma esquerda plural europeísta que assuma o internacionalismo necessário para enfrentar realidades insuscetíveis de gestão dentro das fronteiras de um só país: os grandes movimentos transfronteiriços de pessoas; a paz e a segurança; as alterações climáticas; a nova economia digital, cuja extraterritorialidade arrisca fragilizar os direitos sociais e a cidadania; a liberdade de circulação mais rugosa para as pessoas do que para os capitais. O nacionalismo é uma resposta económica e politicamente incapaz para estes desafios.
A UE é a possibilidade concreta que temos de agir no mundo. É já, por exemplo, uma das regiões do mundo mais determinadas a enfrentar quer o desafio climático, quer o das grandes empresas tecnológicas que tentam contornar qualquer regulação pública. Face à América de Trump, à Rússia de Putin, à China de Xi Jinping e à miríade de ameaças à paz e aos direitos humanos, uma UE forte, socialmente coesa e democrática faz falta ao mundo e à Europa. E para isso precisamos de uma esquerda pela União Europeia, certamente crítica, mas também construtora. Não avançaremos essa tarefa numa amálgama de europeísmo indiferenciado, mas podemos fazê-lo com uma proposta socialista diferenciada que reponha na agenda as políticas para uma prosperidade partilhada.
Porfírio Silva, Deputado e secretário nacional do PS
10 de Outubro de 2018