Para fazer um intervalo num fim-de-semana fechado em casa a trabalhar... fui ao cinema. (Porque a reprodução da força de trabalho, indispensável à sustentabilidade da exploração do trabalho pelo capital - !!! - passa por comer e beber, mas também por aliviar o espírito em doses mínimas.) Concentrado em escolher uma sala próxima (para ir caminhando) e a horas convenientes, acabei por ser empurrado, pouco convencido, assustado pelas poucas estrelas dos críticos, para E Agora, Onde Vamos?, de Nadine Labaki.
Valeu a pena. (Se não quer saber aspectos do enredo, fique por aqui na leitura.)
É a história de uma aldeia libanesa onde cristãos e muçulmanos vivem há alguma tempo numa certa paz, contra a corrente de todo o mundo que os rodeia, mas sempre em perigo de voltarem (as armas estão lá, embora enterradas) ao mesmo turbilhão de violência que assola as relações entre essas duas comunidades nessa parte do mundo. E é, fundamentalmente, a história das mulheres dessa aldeia, que estão fartas de enterrar os seus maridos e filhos por causa dessa disputa e, por isso, estão dispostas a tudo para evitar esse cenário negro. Trata-se, portanto, para esta realizadora e para nós, de voltar ao tema do outro olhar das mulheres e da sua força e inteligência para lidar com as situações de uma maneira inesperada para as convenções. É um filme de utopia, portanto.
Contudo, não é um filme que nos faça sermões, nem que abuse das nossas emoções. Joga mais na parte de comédia que todas as tragédias comportam. Aspecto que me agrada neste filme é que a utopia vai de mãos dadas com o pragmatismo: os recursos que as mulheres da aldeia usam para levar a água ao seu moinho são o que está à mão, não aquilo que grandes teorias ditariam que se fizesse. Claro que as ideias do filme para a estratégia das mulheres colocam as coisas num plano de irrealidade (exemplo é o uso de uma combinação de ucranianas e haxixe para afastar os homens de pecados mais guerreiros), mas, de qualquer modo, um traço essencial da utopia foi instalado na história desde o início, com o isolamento quase total da aldeia do resto do mundo. É que só pode haver utopias na Terra cortando com o mundo - e aí morrem todas as utopias que queiram ser mais do que isso.
Há um aspecto escondido na trama lógica da história, que não aparece imediatamente ao espectador, mas que é uma bonita mensagem. A forma que as mulheres encontram para bloquear a violência inter-religiosa dos seus homens, depois de tanta coisa terem tentado, é uma conversão da noite para o dia à outra religião local: as cristãs amanhecem muçulmanas, as muçulmanas cristãs. Assim, deixam os seus maridos no dilema de esquecerem o critério religioso para a violência ou de terem de começar a agressão pelas suas próprias mulheres. Ora, esta solução é um prémio à mulher que andava a namoriscar um homem da outra comunidade: se até aí se viam impedidos de concretizar o seu mútuo interesse, esta manobra geral coloca-os agora do mesmo lado da barreira religiosa. É um prémio aos que tinham avançado para o outro lado da barreira por sua própria conta e risco. (E, claro, é uma mensagem que fica muito bem até por envolver a lindíssima Nadine Labaki, a realizadora que também participa como actriz.)
Apesar da sua dureza, o filme é uma história de encantar, com a sua carga de irrealismo (talvez, de todas, a maior seja os dois líderes religiosos, o imã e o padre, serem os mais tolerantes de cada uma das comunidades). Mesmo assim, a realizadora mostra que não é ingénua, até pela forma como constrói a cena final, quando os aldeões, de repente, depois daquela "conversão geral" das mulheres, já não sabem onde enterrar o rapaz, na parte muçulmana ou na parte cristã do cemitério. Não há remendo que cure o mundo, pois, de forma assim tão milagrosa. Estão sempre a abrir novos rombos no casco e faltam as forças para acudir uma e outra vez. Sabemos disso. Mas há quem tente, fora dos filmes. Também por isso valem a pena os filmes que rendem homenagem aos que não se rendem, com a poesia e a sabedoria deste E Agora, Onde Vamos?.