O editorial de hoje do Acção Socialista Digital, que assino na qualidade de diretor do órgão informativo oficial do PS, é uma reflexão focada no debate do programa do XXIV Governo Constitucional, que decorreu ontem e hoje na Assembleia da República. Para registo, deixo-o aqui transcrito.
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Não confunda espelhos com janelas,
Sr. Primeiro-Ministro!
O Professor Alexandre Quintanilha – um renomado cientista que dedicou nos últimos anos muito do seu tempo à política ativa, tendo presidido, indicado pelo PS, mas com aprovação geral, à Comissão de Educação e Ciência da Assembleia da República – usa frequentemente uma adaptação de uma frase cunhada originalmente por Sydney J. Harris, que era sobre educação e, nesta nova criação, é sobre conhecimento: “A principal função do conhecimento é transformar espelhos em janelas”.
Transformar espelhos em janelas, seja propósito da educação,
seja propósito do conhecimento, é muito relevante para a convivência democrática
em sociedades complexas, onde as diferenças de condições de vida, as diferença de
interesses (mesmo considerando apenas os interesses legítimos), as diferenças
de opinião e de projeto têm de caber no plano mínimo da cidadania e do respeito
pela dignidade do ser humano – e qualquer esquecimento dessa realidade fará
perigar o pluralismo sem o qual as sociedades abertas sucumbem. Transformar
espelhos em janelas – transformar o fechamento em abertura – terá de ser, então,
também, um caminho a fazer pela ação política.
Ora, o debate do programa do XXIV Governo Constitucional, ontem
e hoje na Assembleia da República, mostrou um executivo, e, principalmente, um
primeiro-ministro que, ao invés do que seria necessário à República, confunde
espelhos com janelas. E prefere os espelhos às janelas. Em lugar de entender o valor
do empenhamento do Partido Socialista numa oposição responsável e construtiva, quer
abusar desse compromisso institucional e exige ao PS que seja uma oposição
domesticada. Em lugar de entender que a atitude do PS é exigente, para si
próprio e para o Governo, porque requer maturidade e capacidade de compromisso,
permanente e sempre renovada, imaginativa e concreta, adota uma soberba autossuficiente
para a qual não tem votos. Em lugar de entender que os portugueses que votaram
no PS têm tanto direito a serem representados no parlamento como os portugueses
que votaram na AD (ou nos outros partidos parlamentares), pretende que os
resultados eleitorais só relevam para os deputados que suportam o governo e
esquece as obrigações de representação dos deputados que foram eleitos com
outros programas. Todas as janelas de diálogo que estavam em condições de serem
abertas foram, com estrondo, fechadas por Luís Montenegro.
O primeiro-ministro, desde o primeiro momento do debate,
tentou fechar as janelas do diálogo a que só pode estar obrigado, sendo um
governo minoritário, e tratou de substituir janelas por espelhos – usando o
espelho onde se olha para, sem se espantar por o seu aparente interlocutor ter
exatamente a sua face, fingir que dialoga. Fala consigo mesmo e diz que
dialoga. Afinal, o debate acabou com o número dois do governo, o Ministro de
Estado e dos Negócios Estrangeiros, a desmentir o número um da equipa. Aquilo
que ontem, a abrir, Luís Montenegro dizia que era sinal de diálogo – escolher,
unilateralmente, avulsas propostas dos outros para embelezar o seu programa de
governo – veio Paulo Rangel, hoje, a fechar, dizer que não podia ser feito em
diálogo, porque sobre programa de governo não se dialoga. A contradição vale
como atestado da ineficiência da sobranceria que a AD julga, erradamente, que
compensa os votos que não teve.
De forma bem diversa, e contrastante, o Secretário-Geral do
PS, Pedro Nuno Santos, mostrou uma compreensão clara e aguda do que está em
causa, em termos de preservação da República democrática: “Contam connosco para
defender o regime, a democracia e a Constituição. Não contam connosco para o
retrocesso económico, social e cultural.” E também uma compreensão nítida e
lúcida do que é ser oposição responsável: “Não é só o governo que tem
iniciativa, o parlamento e os grupos parlamentares também têm. Não é só o
governo que quer que lhes aprovem as suas iniciativas, os grupos parlamentares
também querem.” E anunciou, de imediato, cinco iniciativas parlamentares, que
correspondem a compromissos eleitorais do PS. Assim, pela voz do seu secretário-geral,
o PS mostra que funciona com janelas: coloca o seu contributo em cima da mesa e
vai a jogo para que haja efetivo diálogo e para que saibamos quem é capaz de
entendimentos concretos e palpáveis, para lá da retórica.
Ficamos – fica o país – à espera que o Primeiro-Ministro deixe
de falar apenas consigo mesmo ao espelho e se chegue à janela do verdadeiro
diálogo.
Porfírio Silva, 12 de Abril de 2024