Os animais sem instituições e com culturas menos sofisticadas que as humanas é que têm "famílias naturais". Na sociedade dos humanos pouca coisa é regida pela "natureza" bruta- e isso é mesmo uma característica essencial da civilização. Libertados das cavernas, podemos assumir muito mais graus de liberdade nas escolhas de vida. Houve um tempo em que era quase consensual que isso era bom. Agora, alguns voltaram ao animalismo do "natural".
«Aliás, 1980 foi para Sá Carneiro, de facto, o ano do seu
grande combate, como Homem, para lá do político, que, ironicamente, se tornou
numa batalha política.
Os valores e as convenções sociais eram, então, em Portugal,
ainda muito marcadamente conservadores, principalmente no universo de que Sá
Carneiro era originário, bem como da sua base de apoio (de direita, católica).
E o simples facto de o primeiro-ministro viver maritalmente com uma mulher, Snu
Abecassis, que não era aquela com que estava ainda casado pela Igreja, foi um
escândalo e considerado, por muitos, como uma afronta à moral e à religião.
Por que razão não se divorciara então?
Apenas porque a lei portuguesa na época não permitia o
divórcio contra a vontade de um dos cônjuges, antes de decorridos seis anos
sobre a separação de facto, como era o caso (a primeira mulher do político
opôs-se ao divórcio), tendo Sá Carneiro de esperar ainda mais dois anos até o
poder fazer (Snu estava já divorciada do seu primeiro marido).
Apesar disso, ao contrário do que os seus opositores
poderiam esperar e mesmo contra a opinião de alguns dos seus apoiantes, o
primeiro-ministro assumiu publicamente Snu como a sua mulher, que esteve sempre
presente ao seu lado em todos os atos públicos mais importantes, oficiais e
protocolares. Ou, pelo menos, em quase todos.»
Snu, mãe de três filhos, era divorciada. Sá Carneiro
apaixonou-se e foi viver com ela, na casa dela, com os filhos dela. Um dos seus
filhos acompanhou-o. A mulher de Sá Carneiro recusou dar-lhe o divórcio, que
então, pós-revisão da Concordata (efectuada em 1975), era já possível em
casamentos católicos. Sá Carneiro e Snu passaram pois a viver em união de
facto. Numa sociedade em que os divorciados eram olhados de lado e as
aparências de "respeitabilidade" e moral católica mantidas
laboriosamente, um político de centro-direita, que fez em 1979 uma aliança com
o democratas-cristãos de Freitas do Amaral e o Partido Popular Monárquico de
Gonçalo Ribeiro Teles e com ela ganhou as eleições, não só vivia numa situação
que muitos qualificavam de "pecado" como teve a extraordinária
coragem, vistas as circunstâncias, de a assumir. Na época em que Sá Carneiro
foi líder partidário e primeiro-ministro a regra não era, como hoje, a da
abjecta devassa pública das vidas privadas por publicações especializadas nessa
intrusão que têm o despudor de invocar para esse efeito o direito à liberdade
de expressão; a regra era a de olhar para o outro lado - desde que, bem
entendido, "as coisas fossem feitas com discrição". Sá Carneiro não
quis ser discreto, quis ser directo. Quis mostrar que o seu conceito de união e
de família rimava com a sua liberdade e não dependia da aprovação dos outros.
Consciente do risco que corria e do caldo cultural em que se movia, confrontava
os seus colaboradores com a sua opção, tornando claro que trabalhar com ele era
aceitá-la . Chegou mesmo a dizer, em 1977: "Se a situação for considerada
incompatível com as minhas funções, escolherei a mulher que amo."»
Família "natural"? Não. É mais retrocesso artificial. Oportunismo eleitoral. A política como teatro de guerra. É isso que vemos.
E temos de recusar. Combater. Contrariar.