10.4.24

Acerca do conceito de família natural como arma de guerra




Os animais sem instituições e com culturas menos sofisticadas que as humanas é que têm "famílias naturais". Na sociedade dos humanos pouca coisa é regida pela "natureza" bruta- e isso é mesmo uma característica essencial da civilização. Libertados das cavernas, podemos assumir muito mais graus de liberdade nas escolhas de vida. Houve um tempo em que era quase consensual que isso era bom. Agora, alguns voltaram ao animalismo do "natural".

Sejamos honestos: não faltam exemplos de conservadores que não são trogloditas e que aceitam a liberdade das pessoas viverem a sua vida fora de "princípios" abstractos que são mantidos apenas por ideologia de controlo social. O que se passa hoje é outra coisa: há cada vez menos conservadores, e/ou pessoas da direita democrática, que tenham coragem para contrariar os reaccionários que berram muito alto e querem tomar o monopólio desse sector da opinião.

Não deixa, pois, de ser oportuno lembrar que, em matéria de liberdades individuais na escolha da forma de vida que cada um acha melhor, já houve líderes dos partidos de direita que não tinham as visões retrógradas que encontramos hoje como ferramenta central de certas estratégias políticas.



«Aliás, 1980 foi para Sá Carneiro, de facto, o ano do seu grande combate, como Homem, para lá do político, que, ironicamente, se tornou numa batalha política.

Os valores e as convenções sociais eram, então, em Portugal, ainda muito marcadamente conservadores, principalmente no universo de que Sá Carneiro era originário, bem como da sua base de apoio (de direita, católica). E o simples facto de o primeiro-ministro viver maritalmente com uma mulher, Snu Abecassis, que não era aquela com que estava ainda casado pela Igreja, foi um escândalo e considerado, por muitos, como uma afronta à moral e à religião.

Por que razão não se divorciara então?

Apenas porque a lei portuguesa na época não permitia o divórcio contra a vontade de um dos cônjuges, antes de decorridos seis anos sobre a separação de facto, como era o caso (a primeira mulher do político opôs-se ao divórcio), tendo Sá Carneiro de esperar ainda mais dois anos até o poder fazer (Snu estava já divorciada do seu primeiro marido).

Apesar disso, ao contrário do que os seus opositores poderiam esperar e mesmo contra a opinião de alguns dos seus apoiantes, o primeiro-ministro assumiu publicamente Snu como a sua mulher, que esteve sempre presente ao seu lado em todos os atos públicos mais importantes, oficiais e protocolares. Ou, pelo menos, em quase todos.»


A propósito da mesma circunstância, há outro texto que explica bem o caso. É o artigo de Fernanda Câncio, "Que diria Sá Carneiro?", no DN de 4 de setembro de 2009, de onde retiro este excerto:

«Portuense, católico, oriundo de uma família abastada, Francisco Sá Carneiro era casado e pai de cinco filhos. Em 1976 conheceu a editora Snu Abecassis, num almoço com a poetisa e então deputada do PPD Natália Correia, que teria anunciado ao político ir-lhe apresentar a mulher da sua vida.

Snu, mãe de três filhos, era divorciada. Sá Carneiro apaixonou-se e foi viver com ela, na casa dela, com os filhos dela. Um dos seus filhos acompanhou-o. A mulher de Sá Carneiro recusou dar-lhe o divórcio, que então, pós-revisão da Concordata (efectuada em 1975), era já possível em casamentos católicos. Sá Carneiro e Snu passaram pois a viver em união de facto. Numa sociedade em que os divorciados eram olhados de lado e as aparências de "respeitabilidade" e moral católica mantidas laboriosamente, um político de centro-direita, que fez em 1979 uma aliança com o democratas-cristãos de Freitas do Amaral e o Partido Popular Monárquico de Gonçalo Ribeiro Teles e com ela ganhou as eleições, não só vivia numa situação que muitos qualificavam de "pecado" como teve a extraordinária coragem, vistas as circunstâncias, de a assumir. Na época em que Sá Carneiro foi líder partidário e primeiro-ministro a regra não era, como hoje, a da abjecta devassa pública das vidas privadas por publicações especializadas nessa intrusão que têm o despudor de invocar para esse efeito o direito à liberdade de expressão; a regra era a de olhar para o outro lado - desde que, bem entendido, "as coisas fossem feitas com discrição". Sá Carneiro não quis ser discreto, quis ser directo. Quis mostrar que o seu conceito de união e de família rimava com a sua liberdade e não dependia da aprovação dos outros. Consciente do risco que corria e do caldo cultural em que se movia, confrontava os seus colaboradores com a sua opção, tornando claro que trabalhar com ele era aceitá-la . Chegou mesmo a dizer, em 1977: "Se a situação for considerada incompatível com as minhas funções, escolherei a mulher que amo."»


Família "natural"? Não. É mais retrocesso artificial. Oportunismo eleitoral. A política como teatro de guerra. É isso que vemos.


E temos de recusar. Combater. Contrariar.



Porfírio Silva,10 de Abril de 2024
Print Friendly and PDF