26.1.21

Desbloquear a esquerda plural

Para registo, aqui deixo o meu artigo publicado hoje no jornal Público, sobre as tarefas políticas no rescaldo das eleições presidenciais do passado Domingo.
 
*** 
1. Os resultados das presidenciais mostram uma adesão largamente maioritária do país aos valores constitucionais e a eleição de um presidente democrata, mesmo que de direita. Mas não disfarçam desafios sérios à democracia, num extremismo onde convergem deserdados do nosso frágil capitalismo com adeptos de soluções autoritárias e tensões sociais violentas. Isso significa que temos de responder em dois planos: políticas públicas promotoras de coesão; combate ideológico e cultural.

 

2. Depois de uma legislatura onde uma esquerda em regime de diversidade orgânica e política garantiu ao país uma solução governativa inequivocamente melhor, em termos sociais e económicos, do que a proposta austeritária, os diferentes parceiros fizeram, no seu conjunto, uma atabalhoada transição de uma legislatura para outra. Sem voltar às contas das queixas mútuas, é evidente que a esquerda no seu conjunto não correspondeu ao seu eleitorado, que votou por mais “geringonça”, mesmo com o PS mais forte, e teve um coro de desafinações. Que deixaram marcas e acabaram por redundar em saídas desordenadas de cena.

 

3. A pandemia que atingiu o país, a acrescida necessidade de coesão social que a resposta exige, a crescente agressividade da direita mais extrema e a tibieza da direita que esperávamos democrática, tornam mais urgente ultrapassar este cenário, com uma resposta política clara e mobilizadora, pela qual PS, BE, PCP e PEV garantam uma estabilidade política positiva, pelo menos no horizonte da legislatura, servida por um acordo escrito partilhado, que marque o rumo, clarifique as prioridades e defina o método para construir respostas políticas concretas, sem virar a cara mesmo às diferenças mais espinhosas. 

 

4. A regra geral é que temos de responder simultaneamente às urgências imediatas e às exigências do futuro, enfrentando os dogmas inquestionados das várias tradições políticas. Por exemplo, não se espera que o PCP e o BE se tornem agora europeístas, mas esperamos um realismo crítico, embora sem complacência, que proteja Portugal num momento onde a participação na UE é elemento crucial do nosso processo de recuperação.  

 

5. Dou um exemplo de desafios mais concretos que a esquerda plural tem de enfrentar sem conservadorismo. A escola pública tem dado uma excelente resposta em tempo de pandemia, mas não podemos perder a bússola do estrutural. O regime de seleção e recrutamento de docentes para a escola pública é um puzzle de diplomas e normas específicas, com camadas antigas e acertos circunstanciais, que já não responde cabalmente, nem às necessidades do serviço público de educação, nem às legítimas expectativas de educadores e professores. É indispensável que evolua para responder simultaneamente a várias exigências: valorizar a carreira docente, combater sustentadamente a precariedade laboral e preservar a estabilidade do exercício profissional; promover a estabilidade dos projetos educativos e, para isso, das equipas pedagógicas; preservar o caracter nacional da carreira docente e a prevalência do mérito no acesso à profissão, mas aumentando a capacidade de cada comunidade educativa para se dotar dos meios necessários para prosseguir projetos pedagógicos inovadores e focados nos seus alunos concretos; assegurar em todo o território nacional a continuidade do serviço público de educação de qualidade; que todas as opções tomadas sejam, a prazo, sustentáveis.

O programa do governo verifica a necessidade de considerar esta questão, o Conselho Nacional de Educação (por estímulo de uma iniciativa do grupo parlamentar do PS) já produziu um importante contributo para este debate. Este é um bom exemplo dos desafios concretos para a governação do país a que a esquerda plural tem de responder, sabendo que não há soluções simples para problemas complexos, que as soluções inteligentes não se encontram apenas nos arquivos das fórmulas passadas. Sabendo que o caminho da negociação e da invenção de soluções novas é um roteiro incerto e, provavelmente, espinhoso, mas é um caminho necessário. Que talvez não se possa encetar no meio de uma pandemia, assoberbados por urgência, mas que tem de ser colocado na agenda.

 
 
Porfírio Silva, 26 de Janeiro de 2021
Print Friendly and PDF