Nestes tempos conturbados de pandemia, e de crise social associada, os responsáveis políticos têm de tomar decisões na ausência de informação completa ou conhecimento estabilizado acerca do que está realmente a acontecer. Tem sido explicado vezes sem conta: os próprios cientistas desconhecem muito do que seria necessário saber para termos maior segurança acerca do melhor caminho a seguir. Contudo, e curiosamente, estamos sempre a falar de – e a pugnar por – decisões políticas baseadas na evidência científica. E bem! Não obstante, o que seja “a evidência científica” está longe de ser claramente apreendido pelas nossas sociedades. Num mundo onde, felizmente, a maior parte dos decisores se guia mais pelo conhecimento científico disponível do que por meras convicções acerca do mundo, é importante saber que a dita “evidência científica”… está longe de ser evidente.
Compreender esta incerteza é decisivo para entendermos como nos comportarmos (colectivamente) em situações extremas, como esta em que estamos. E, na verdade, é muito difícil aceitar que vivemos numa base incerta, que é o nosso conhecimento acerca do mundo. Procuro, neste texto, aproveitar um testemunho recente para vos trazer ao caminho da incerteza…
O Expresso publica (na revista da edição de hoje) uma entrevista com José Lourenço, um epidemiologista computacional que é um dos co-autores do estudo da Universidade de Oxford que traça um cenário, para o impacto mundial do novo coronavírus, alternativo ao que tem aparecido como dominante. A entrevista, realizada por Raquel Albuquerque, tem por título “Não estamos habituados a fazer ciência por necessidade” e é interessante a vários títulos, mas relevo aqui apenas um aspecto.
Vejamos uma pergunta e uma resposta:
Pergunta: No estudo agora publicado pela Universidade de Oxford, do qual é coautor, levantam a hipótese de o número de infetados por covid ser muito superior ao que conhecemos e, por consequência, a taxa de letalidade ser mais baixa. Como traçaram esse cenário?
Resposta: Ao contrário do que foi dito, o estudo não conclui que 50% da população do Reino Unido já terá sido infetada, porque não estamos a projetar o progresso da epidemia. Tentámos criar uma discussão sobre como é possível que o cenário seja o inverso do que tem sido debatido. Sem saber a imunidade da população (porque não sabemos quantas pessoas já foram expostas ao vírus) nem o tamanho do grupo de risco, tanto podemos assumir que a epidemia é gigantesca e o risco baixíssimo ou que a epidemia é pequena mas o risco é gigante. Ninguém consegue com certeza dizer qual é o cenário atual e qualquer um dos dois poderia resultar na mesma curva epidémica de mortos a que estamos a assistir. O nosso objetivo era transmitir a ideia de que temos de tentar, o mais rapidamente possível, medir uma das duas variáveis. Estimar o tamanho do grupo de risco só é possível depois de a epidemia passar, portanto a única coisa que podemos medir agora é a imunidade. Precisamos de saber em que cenário estamos, porque se o cenário for o inverso do que até agora tem sido apontado, então uma grande parte da população poderá já estar imune e não sabemos.
Atentem, por favor, aos segmentos sublinhados. O raciocínio que eles sublinham, expresso no conjunto da resposta, é este: há uma dada evidência (as curvas de mortalidade que temos por causa da pandemia), mas há duas interpretações possíveis (a epidemia é gigantesca e o risco é baixíssimo OU a epidemia é pequena e o risco é gigante) e ainda não temos os dados para saber qual dessas leituras é correcta (e diz o que há a fazer para chegar lá: “temos de tentar, o mais rapidamente possível, medir uma das duas variáveis. Estimar o tamanho do grupo de risco só é possível depois de a epidemia passar, portanto a única coisa que podemos medir agora é a imunidade”). Isto é: nem sempre a evidência disponível permite estar certo acerca do que ela quer dizer para questões fundamentais à compreensão da realidade.
Vou, agora, deixar outro exemplo desta relação entre evidência e interpretação em ciência. É um exemplo histórico, relacionado com o uso que Galileu faz do telescópio em defesa do heliocentrismo coperniciano.
Galileu atribui-se a possibilidade de observar os fenómenos celestes com maior fiabilidade do que Aristóteles ou os seus sucessores adversários do heliocentrismo de Copérnico, devido ao facto de dispor e usar para o efeito o telescópio. Uma declaração típica dessa atitude tem como porta-voz o personagem Salviati, no “Diálogo dos Dois Principais Sistemas do Mundo”: "Nós, graças ao telescópio, tornámos o céu trinta ou quarenta vezes mais próximo do que o era para Aristóteles, de tal modo que podemos aí descobrir mil e uma coisas que ele não podia ver".
No entanto, a verdade é que o telescópio não era, à data, um instrumento indiscutível para o uso científico que Galileu lhe queria dar. O telescópio obtivera, já, sucessos importantes na visão de objectos terrestres, mas, nesse campo, era possível cotejar essas observações com observações de proximidade – coisa impossível na observação de objectos celestes. Ainda mais estranha era essa extensão do uso do telescópio quando, ao tempo, se consideravam as regiões terrestre e celeste como obedecendo a leis diferentes e formadas de diferentes matérias. Além do mais, não estava disponível na altura nenhuma concepção científica do funcionamento do telescópio, que era usado de forma ad hoc. Para se ter esse enquadramento científico do uso do telescópio na observação de corpos celestes seria preciso, pelo menos, a intervenção de ciências auxiliares como a óptica e a meteorologia (para explicar o instrumento e para explicar a visão através da atmosfera). Galileu ainda chegou a pretender que o seu aperfeiçoamento do telescópio se deveu a profundos estudos teóricos, mas noutras ocasiões revela que procedeu essencialmente por tentativa e erro. O próprio Kepler manifesta a Galileu a sua preocupação por esta situação.
Nada disto impediu Galileu de fazer das observações telescópicas um argumento de peso na defesa da concepção coperniciana, mas não havia certeza nenhuma nesse procedimento.
Alexandre Koyré (cf. “Do Mundo Fechado ao Universo Infinito”) suporta amplamente esta análise. Segundo este autor, o facto de o telescópio permitir observar "novas" estrelas, que anteriormente não estavam ao nosso alcance, poderia dever-se a
(1) essas estrelas serem demasiado pequenas, embora estando perto, ou…
(2) essas estrelas, sendo grandes, estarem demasiado afastadas para poderem ser vistas sem o telescópio.
Para os efeitos pretendidos por Galileu, essas duas alternativas arrastavam conclusões de consequências desiguais:
(2) implicava o abandono da distinção aristotélica entre uma região sublunar imperfeita e sujeita à mudança e uma região supralunar perfeita e imutável;
(1) não afectava minimamente a concepção tradicional.
Como decidir entre as duas alternativas? Com apoio num completo domínio teórico do instrumento implicado? Segundo Koyré, na época "as duas interpretações convêm tanto uma como outra aos dados de facto da óptica; um homem deste tempo não podia então optar entre elas a não ser por razões filosóficas e não estritamente científicas. E foi por razões filosóficas que a tendência dominante no pensamento do século XVII rejeitou a primeira interpretação e adoptou a segunda": porque esta conflituava com a concepção tradicional e favorecia a concepção coperniciana.
Em convergência com esta análise, Bernard Cohen (cf. “The Birth of a New Physics”) afirma que "a análise da experiência de Galileu da observação de corpos celestes por meio do telescópio, em 1609 e nos anos subsequentes, mostra como o seu apego às doutrinas copernicianas condicionou e até dirigiu a interpretação do que observou nessa altura". Galileu não "viu" montanhas na Lua: viu um conjunto de manchas, umas mais escuras do que outras e, depois, "transformou estes dados sensoriais ou imagens visuais num novo conceito: a superfície lunar com montanhas e vales", militando a favor da semelhança entre a Lua e a Terra. Galileu não "viu" satélites de Júpiter: observou o que lhe pareceu inicialmente ser um conjunto de pequenas estrelas, tendo sido o seu interesse teórico em defender o copernicanismo que o conduziu mais tarde a concluir que eram satélites de Júpiter, ponto importante para mostrar mais uma semelhança não aceite tradicionalmente entre a Terra e os planetas (já não era só a Terra a ter satélites). Trata-se, diz-nos Cohen, de mais um "processo de transformação dos dados sensíveis da experiência", com um interesse especial: é que, contra aqueles que diziam que uma Terra em movimento a grande velocidade perderia o seu satélite, podia agora mostrar-se como Júpiter, que todos admitiam mover-se, não perdia os seus satélites - anulando mais um argumento anti-coperniciano. Há ainda o caso das manchas solares: observadas desde a Idade Média, nenhum aristotélico ortodoxo admitiria que elas fossem mudanças nesse astro, tomando-as antes como resultado de passagens de planetas diante do Sol. Galileu, liberto desse condicionamento, pode ver outra coisa, "vendo" exactamente o mesmo.
Isto serve para quê?
Para entendermos que a incerteza quanto ao conhecimento do mundo não é exclusiva dos “leigos”, é uma condição importante do melhor conhecimento científico.
Para estarmos cientes de que a evidência científica não é garantia de certeza, especialmente enquanto estamos a lidar com um fenómeno novo, mundial na sua extensão, que lida ao mesmo tempo com o muito pequeno e com a grande escala das dinâmicas populacionais.
Para não esquecermos que uma comunidade só pode lidar com esta incerteza se for capaz de mobilizar valores extra-científicos para lidar com a fragilidade da condição humana e o sofrimento.
Para aproveitarmos o que sabemos como guia. José Lourenço, o entrevistado acima mencionado, diz o seguinte na mesma entrevista: “Os especialistas podem discordar em alguns detalhes e nas formas como lidamos com a epidemia no dia-a-dia. Mas há consenso sobre o seu desfecho. Estaremos livres desta epidemia quando uma determinada proporção da população de cada país ficar imune e o vírus deixar de conseguir propagar-se por falta de indivíduos ainda disponíveis para infeção. Podemos, de futuro, chegar a esse nível de imunidade de grupo por exposição natural (ou seja, infeção) ou artificial (a vacinação), mas é altamente improvável que o vírus seja eliminado de outra forma.”
Não, nós não somos os “senhores do universo”. Sabemos muito sobre o nosso mundo, mas sabemos muito pouco. É preferível termos noção disso e não pensarmos que tudo se resolve apelando à evidência científica. Porque, nos momentos de novidade, é preciso encaixar, nessa evidência científica, uma interpretação que ligue adequadamente com o profundo mistério da realidade.
Porfírio Silva, 4 de Abril de 2020