Não descobri o teatro na véspera da comoção. Não descobri o Teatro da Cornucópia na semana passada.
Não fui ao velório de ontem, desde logo porque os compromissos com amigos me merecem tanto respeito como as instituições. Mas fiquei descansado em não poder ir quando antecipei que a ocasião iria ser mais um palco para algo que Eduardo Paz Ferreira descreveu, noutro contexto, como alguém “extravasar os seus poderes constitucionais”.
Sou um admirador declarado de Luis Miguel Cintra, sem nunca ter regateado críticas, críticas estéticas ao seu trabalho ou críticas cidadãs ao seu posicionamento. Não preciso, portanto, de me armar em guardião da fortaleza (ninguém me credenciou para isso), tal como não preciso de me armar em consciência crítica de coisa nenhuma.
Já subi ao palco da Cornucópia, graças à generosidade da companhia, como amador (amante) de teatro. Não subi ontem ao palco da Cornucópia como predador, em exercício de doentia insistência na política como espectáculo.
É, pois, neste quadro que sinto dever dizer o que segue.
A Cornucópia é património nacional, não pode ser deitada fora. A Cornucópia é uma instituição, não pode ser descartada.
Mas, por muito que admiremos e amemos Luis Miguel Cintra (como é o meu caso), a Cornucópia não é Luis Miguel Cintra. Não haveria esta Cornucópia sem Luis Miguel Cintra? Não. Tal como não haveria esta Cornucópia sem Cristina Reis. E fiquemos por aqui de nomes. A instituição que tem de ser preservada, para lá de quem a fez ser o que é, é a companhia de teatro. É o que o Luis Miguel e a Cristina e os outros ensinaram aos mais novos. É o rasto que criaram e que se não pode deixar apagar. Todos um dia deixamos de fazer aquilo que andamos uma vida a fazer. Se a nossa obra morre de súbito, connosco, em algo falhamos. Há valores novos no universo da Cornucópia, como o próprio Luis Miguel tem dito publicamente. Então, é preciso garantir, não que o Luis Miguel viva eternamente, mas que os mais novos que lá andaram a aprender possam continuar, renovar, aprofundar o que a Cornucópia é. Só assim se pode tirar a prova dos nove de que a Cornucópia se tornou uma instituição. Neste caso, a prova dos nove será a prova dos novos.
Luis Miguel Cintra tem sido muito claro e muito honesto nas declarações que tem feito, ao explicar que, depois das provas que deu e nas condições em que está, não tem mais ânimo para se desgastar em burocracias. Compreendo. Não pode ser obrigado a isso. Aliás, ver um organismo oficial reagir citando os números dos apoios à companhia teatral, num salivar muito típico da burocracia quando pretende linchar algo ou alguém na praça pública ("vejam lá estes tipos que vivem à conta do nosso dinheiro e ainda se queixam"), é muito ilustrativo. Como alguém já escreveu, é incompreensível que uma companhia como a Cornucópia continue a ter que "demonstrar" o valor do seu trabalho cada vez que pede apoios. Mas nada disto se resolve com um estatuto de excepção.
Se há regulamentos, procedimentos, leis injustas – mudem-se, não para a Cornucópia, mas para todos. Quando Nuno Crato dizimou dezenas de centros de investigação no nosso país, justificava-se com a excelência: só ficavam os excelentes. Era uma irresponsabilidade, porque nenhuma instituição é excelente no meio do deserto. Nenhuma instituição é excelente sem estar num meio-ambiente diversificado. As leis, os regulamentos, os procedimentos – têm de respeitar e promover essa diversidade, não apostar na monocultura em que todos têm de ser iguais, de reproduzir o mesmo padrão, de falar para o mesmo público. Mas o conjunto tem de ter uma lógica, argumentável e escrutinável – coisa que não se pode substituir por excepções pressionadas por qualquer tipo de demagogia.
A Cornucópia fará um teatro elitista? Talvez. Mas há que ter algum cuidado com esse argumento. Temos, por exemplo, a televisão que temos, "porque estes são os programas que têm audiências". Aquilo que falta, poucos acham que falte - logo, não faz falta. Pela mesma lógica, há quem já tenha defendido que cursos como história ou filosofia não têm razão de existir. É pela mesma lógica que, agora, alguns dizem: essa companhia de teatro nunca procurou o grande público, portanto, que se dane. Verdade, verdadinha: o capitalismo mais primário ganhou (provisoriamente?) a batalha das mentalidades, convencendo tantos de que o valor de um bem cultural depende de quanto dele se pode vender com lucro. Por este andar, há muito por onde começar a dizimar (hoje liquidamos a Cornucópia, amanhã liquidamos a ópera, depois o ensino do latim e do grego clássico,…).
O Estado tem uma responsabilidade em não deixar morrer a Cornucópia? Tem. Tal como nós, os espectadores. Tal como a própria Cornucópia tem, também, a obrigação de não deixar morrer uma instituição que deve ser mais do que os seus génios criadores.
Algo que deixo dito constitui uma solução para o problema? Não. Mas pretende constituir um alerta para a natureza do problema, um alerta nascido na mente de alguém que não se conforma com o fim da Cornucópia, mas que, ao mesmo tempo, não vê isto como um caso particular, antes como uma questão atinente ao bem público. E que, como tal, não pode seguir apenas o caminho dos nossos sentimentos, mas deve seguir também os caminhos da nossa racionalidade partilhada.
18 de Dezembro de 2016