26.11.11

Um Método Perigoso, Cronenberg.



O último filme de Cronenberg, de fresco entre nós, tem como título Um Método Perigoso. O filme envolve acontecimentos reais do nascimento da psicanálise e da psicologia analítica nas primeiras décadas do século passado, nomeadamente as relações, científicas e outras, entre Sigmund Freud, Carl Gustav Jung, Otto Gross e Sabina Spielrein.
O que nos interessa permanentemente em Cronenberg é a tematização do corpo como matéria do espírito, bem como a tematização múltipla da metamorfose como condição. A profundidade e diversidade dos olhares sobre essa paisagem, que o realizador canadiano nos tem oferecido desde o tempo em que o seu cinema era quase marginal, levou-me antes a chamar-lhe "o filósofo Cronenberg".
E agora?
Estamos, claramente, muito longe dos viscerais “A Ninhada” (1979), “Videodrome” (1983) ou “Crash” (1996), do narcótico “eXistenZ” (1999), mas também do mais "espiritual" “Spider” (2002) ou dos mais indirectos e depurados “Uma história de violência” (2005) e “Promessas Perigosas” (2007). Não vou ao ponto de dizer, como outros já fazem desde filmes anteriores, que este Cronenberg já não é um Cronenberg. A questão das relações tortuosas entre o corpo e a mente não fugiu completamente de cena. Contudo, na aparência, este filme trata essa questão num nível superior de abstracção, falando dos cientistas que estudam tal coisa e focando-se a maior parte do tempo nessa observação de cientistas. Admito que este filme pode ser visto apenas como uma história bem contada, ainda por cima sobre factos históricos, misturando um pouco de amores proibidos com investigação - mas, no conjunto, parecendo tudo bem comportado e relativamente domesticado (sim, o "doméstico" parece levar a melhor, pelo menos no caso de Jung).
Só que há outro buraco da fechadura por onde espreitar. Cherchez la femme. Estranhamente, alguns críticos de cinema falam do filme como se ele fosse acerca das relações entre Freud e Jung. Entre dois grandes do estudo do inconsciente. Quase esquecendo Sabina Spielrein, reduzindo-a quase a uma aprendiz que por ali anda no oceano de tensões entre os dois homens cientistas. Acho que essa centragem em Freud e Jung é um erro, por ser uma leitura historicista do filme, quase uma tentativa de leitura realista. Só que Cronenberg não pode ser lido assim. A mulher, Sabina Spielrein, é a personagem que encarna tudo o que há de permanente em Cronenberg. É ela que transporta a grande metamorfose que acontece no filme: é ela que passa de "doente", de "doida", de paciente, a psicanalista, a cientista ao mesmo título de Freud e dos outros. É ela que dá corpo ao duplo aspecto da metamorfose: a continuidade convive com a mudança. Peça perfeita de um puzzle sobre a psicanálise, o elemento de continuidade é o facto de Sabina se excitar com a dor e a humilhação. Esse é traço vincado da "doença" pela qual a hospitalizam, mas esse traço permanece depois de ela passar para o lado dos analistas. Mesmo a cientista, operada essa grande mudança, continua a procurar o mesmo tipo de prazer.
Afinal, este Cronenberg, que parecia ter intelectualizado o seu tema de sempre, passa uma ideia muito mais radical: evitam de tentar fugir aos recantos da vossa mente e do vosso corpo, evitam de tentar fugir pelo caminho da intelectualização, porque mesmo na intelectualização o que é fundador permanece.

Post Scriptum. Houve quem tratasse de Sabina Spielrein sem a reduzir a amante. Por exemplo, o documentário My Name was Sabina Spielrein, de que deixo um momento.