"Tão triste as coisas durarem mais que as pessoas", diz a personagem Aline, pela voz da actriz Aline Filócomo. E a Paula (personagem e actriz) acrescenta: "As coisas são a memória da gente."
Sim, aproveitámos a passagem pela Cidade Maravilhosa para ir ver o mais recente espectáculo da Companhia Hiato, de São Paulo, "O Jardim", a estrear a passagem pelo Rio no passado 28 de Outubro. Texto original da companhia dirigida por Leonardo Moreira, apanhou-me logo que percebi que andava pelo tema da memória. A perturbação da memória é hoje um problema de saúde trágico para muitas famílias. Além disso, a abordagem da memória como processo que envolve as interacções com os outros e com as coisas é uma linha de ataque que me diz muito, eu que ando ainda e sempre no projecto de "voltar a juntar cérebro, corpo e mundo" (Andy Clark) - e, já agora, os outros.
A situação de base da peça é uma família, em momentos diferentes, ligados pela memória. Ou pela falta de memória. Ou pelas memórias incertas. Ou pelas memórias dolorosas. Ou pela luta pelo lembrar-se. Ou pela luta para impor as suas próprias recordações como as recordações certas. Supostamente estamos num jardim, no jardim da casa da família, mas o cenário é uma movediça estrutura de caixas de cartão onde se guardam memórias, onde se perdem memórias, onde as memórias ficam fora do sítio, porque as caixas andam sempre a ser movidas, reconfiguradas, abertas e fechadas. Uma bela forma de criticar a concepção computacional de memória, que encara as memórias como registos tendencialmente firmes guardados em certos sítios de um certo armazém, de tal modo que podemos ir lá, a esse sítio, consultar os registos e recuperar a "memória". Uma encenação que é uma bela metáfora para o modo como a vida das pessoas rearranja as memórias, próprias e alheias - porque ao mexer nas caixas das memórias se modifica o espaço e a relação entre as várias cenas do conjunto. É que, formalmente, o texto é um conjunto de três textos, para três subconjuntos de personagens, apresentados separadamente e à vez a cada uma das terças partes do público, que assim têm peças diferentes quanto à sua recepção concreta, tudo a acontecer no mesmo palco ao mesmo tempo, com uma separação nítida embora haja sempre momentos em que a nossa percepção capta o que se está a passar nos outros sectores. O cume da memória em estilhaços e das memórias amalgamadas acontece no fim, quando as três épocas convergem num mesmo espaço e os tempos se baralham completamente. Não por acaso, o foco dessa confluência final é o homem mais velho, mais claramente com a memória em perda, que viaja no tempo para nos fazer compreender os fios da meada, se alguma dúvida nos restasse. Mas não restava.
Um espectáculo belíssimo, triste e poético ao mesmo tempo, que não deixa de ser triste nem poético mesmo quando faz rir, que prova como é possível um espectáculo tratar com imensa sensibilidade uma questão que é um real problema social e, sem perder a mão, estudar essa questão com um olhar filosófico.
O programa do espectáculo abre com uma citação de Gilles Deleuze: «Há, pois, uma outra língua, que não remete mais a linguagem a objectos enumeráveis e combináveis, nem a vozes emissoras, mas a limites imanentes que não cessam de se deslocar, hiatos, buracos, escuros ou fendas, dos quais não se daria conta, sendo atribuídos ao simples cansaço, se eles não aumentassem de uma só vez, de maneira a acolher alguma coisa que vem de fora ou de algum outro lugar. Hiatos para quando as palavras se forem.»
O vídeo abaixo, produzido pela Cia Hiato, dá um cheiro do espectáculo. Mais informação aqui.