Dois planos permanentes da metafísica dos filmes de Cronenberg são: o corpo como lugar do espírito e de todas as suas (e nossas) vicissitudes; a metamorfose, ou melhor, as múltiplas metamorfoses que conformam tudo o que percebemos (ou deixamos por perceber). Ora, a meu ver, esses dois temas continuam a fazer a trama mais profunda (também) deste filme.
Quanto ao corpo, está tudo às claras. A personagem nuclear de toda a história tem gravado no seu corpo, em tatuagens, o que é supostamente toda a história verdadeira da sua vida.
É o corpo tatuado que o grupo dirigente daquela instituição mafiosa analisa quando se trata de avaliar as credenciais daquele candidato a entrar para a organização.
E quando a decisão positiva é tomada, essa decisão vai inscrever-se no corpo do homem. São as estrelas tatuadas que acrescentam credenciais naquele corpo. O corpo é, assim, marcado institucionalmente. É preciso que o corpo tenha escrita uma certa história para que o homem que existe com esse corpo possa aceder a uma determinada instituição. O acesso institucional, passar a ser membro daquela organização, passa por um novo acto de escrita no corpo.
Há aqui um aspecto que é essencial sublinhar. Importa ver que essa "escrita institucional no corpo" tem um peso próprio, que aquelas tatuagens não são meros adereços, não são apenas um derivado da pertença institucional. O candidato foi proposto para, sendo aceite e passando a ser portador daquelas tatuagens, ser assassinado por quem procurava essas marcas. Havia, portanto, no acto do homem que propôs aquele candidato, uma fraude institucional: propunha a admissão daquele homem, não por o achar recomendável para essa pertença, mas apenas para ele ostentar os sinais físicos correspondentes e, assim, ficar marcado para morrer. Ora, acontece que, mesmo falhando essa conspiração, as consequências institucionais das tatuagens permanecem: agora que aquele corpo tem as tatuagens adequadas, mesmo tendo chegado a esse estado por caminhos ínvios, a pertença institucional que lhes está associada permanece. E isso virá, num futuro para além do fim do filme, a custar caro ao promotor da fraude institucional, que terá de suportar no seio da sua organização um corpo que ele quis que ficasse marcado para essa pertença, mas apenas para que isso o conduzisse à morte. Não tendo essa morte ocorrido, no entanto, a pertença permanece. O que se marca no corpo permanece.
E assim, digo eu, o tema do corpo, que sempre está no centro dos filmes de Cronenberg, volta a estar no cerne de Eastern Promises. Falta justificar porque entendo que o tema da metamorfose também é central, mais uma vez, neste filme.
Tal como a borboleta irá mais tarde emergir do casulo, depois da sua transformação tão peculiar, também, num futuro que não cabe no tempo do filme mas fica anunciado explicitamente, vai emergir daquele homem (o recém-admitido, o recém-tatuado) um ser totalmente surpreendente para aquela organização.
Aquele homem esconde já uma realidade outra para aquela instituição: aquela instituição vai ser o casulo de um ser que nada se parece, no presente, com o que se mostrará ser depois de consumada a metamorfose. O que aquele homem é, já hoje em estado larvar, anuncia-se como um grande acontecimento para aquela organização, acontecimento que tomará lugar na história daquele grupo humano depois da metamorfose. O bandido-larva vai chegar a chefe da organização criminosa para realizar uma metamorfose que só ao fim de uma longa maturação o mostrará como borboleta-polícia.
(Aproveitando a onda, um destes dias voltaremos aqui ao cinema de Cronenberg.)