Vasco Pulido Valente usa a sua coluna de hoje no Público para defender o corte de um milhão de euros no orçamento do Teatro Nacional D. Maria II. A estratégia argumentativa escolhida consiste em tentar mostrar que o teatro português é uma porcaria e une uma catrefa de chupistas à sombra da bananeira.
Acho que haveria formas mais apropriadas de discutir a distribuição de sacrifícios pelos vários sectores da vida nacional. É defensável (não quer dizer que eu concorde que é isso que está em causa), dizia eu, é defensável que "a cultura" não pode alcandorar-se a um poiso para intocáveis e fazer de conta que não consta da paisagem. É justificável recusar a pessoalização da questão na figura do Secretário de Estado da Cultura. Diogo Infante não é um santo, não quero sequer comentar agora as circunstâncias em que chegou a director do D. Maria, e pode argumentar-se que ele estava a fazer política e não gestão quando soprou no trombone com a suspensão da programação para 2012. Francamente, são pontos de ataque ao problema que têm de ser considerados numa discussão razoável. Entretanto, VPV, que tem dias, e em alguns dias é brilhante a ver e a escrever, também tem dias em que vai direito ao que lhe apetece defender sem curar da exactidão do que afirma nem do senso dos seus pressupostos. Está no caso negro o texto de hoje.
Falando de público de teatro, escreve que "uma noite no D. Maria é uma noite soturna". VPV, por favor informe-se antes de dizer disparates: isso mudou muito, antes de Diogo Infante chegar ao Nacional e depois de ele chegar também. Não sei qual a experiência empírica directa que tem da coisa, não sei se tem paciência para ir ao Nacional e conviver com o "povo" que por lá anda, mas, pelo menos, vá consultar os dados e deixe de lavrar na paranóia nacional de dizer mal como primeiro princípio de movimento no universo.
VPV escreve que "desde o princípio do regime", em Portugal, "não apareceu uma única peça digna desse nome". Claro, não podia ao escriba faltar a presunção de julgar se são boas ou más as peças escritas em português de Portugal que têm aparecido. Tem de ser isso, porque, havendo peças, que há, e têm sido encenadas, esta sentença de deserto só pode ser uma opinião estética: querer impôr a sua apreciação estética como base de um argumento político parece-me inaceitável. E coisa demasiado vista.
Além do mais, teatro não é só escrita de peças. Grandes encenações e grandes representações, que as há em Portugal, não contam? Para quem não vá ao teatro, talvez não contem; para quem vai, têm mesmo de contar.
Finalmente, a proliferação de "teatros de província", com o apoio do Estado, é reduzida, na pena de VPV, ao ninho de um grupo de pressão. A conveniência de fazer alguma coisa para não deixar definhar as actividades culturais espalhadas pelo país, isso não (lhe) interessa nada: no fundo, o Estado só deve ter polícias e juízes, para defender a propriedade dos articulistas, e não se meter nessas coisas de promover a coesão territorial. Há ainda outro "argumento do costume": qualquer grupo de pessoas, unidas por uma actividade, um objectivo, um sonho, é tomado por um bando de malfeitores. Isso, um "grupo de pressão". Bom é que cada um vá por si, não ligue nada aos outros, coma as papas na cabeça do vizinho, espete facas nas costas dos parceiros. Se há actividades organizadas, colaboração, concertação, apoio mútuo, é um grupo de pressão e deve ser estigmatizado. Num país onde falta muitissimo organização, onde é preciso mais e mais que as pessoas se agreguem em torno de interesses comuns, que teçam redes, se associem - há sempre quem prefira os individualismos, os atomismos, e rotule de "grupo de pressão" quem quer que saia do escuro da sua toca.
Em resumo, VPV, que, na sua própria expressão, "passou" pela Secretaria de Estado da Cultura em 1980, pode, com este seu texto, ter feito um exercício de solidariedade política com o seu longínquo sucessor de turno. É bonita, a solidariedade. Mas, além disso, este texto de VPV é apenas presunção, ignorância e preconceito. Que teatro andará a ver VPV?