6.11.11

Os Evangelhos segundo José Rodrigues dos Santos.


O Público de ontem (P2, pp. 4 e 5) trazia um trabalho muito interessante (“Os Evangelhos segundo José Rodrigues dos Santos”, por Natália Faria) sobre a polémica teológica em torno do último livro do apresentador. Vários teólogos mostram à-vontade em admitir que nada do que JRS escreve é novidade, que são coisas que os teólogos discutem há séculos. Ao mesmo tempo repudiam a pretensão de certeza e de infalibilidade com que JRS se apresenta à discussão, bem como o truque, indesejável numa discussão séria, de misturar teses científicas com um texto de ficção, protegendo-se assim do contraditório. Anselmo Borges espeta mesmo o dedo nessa ferida ao desafiar JRS a escrever um artigo científico, ou uma tese, sobre o assunto, aceitando assim o método consagrado para ser escrutinado pela comunidade científica. Concordo genericamente com tudo isto, já que, desde Saramago, me irrita a sobranceria de autores que, necessitados de vender livros, como é natural, se metem a teólogos de pacotilha, cheios de certezas mal-amanhadas, e falam com voz grossa de coisas que apenas conhecem pela rama, da leitura de dúzia e meia de livros. Todos precisamos de ganhar a vida, mas nem todos atropelamos a honestidade intelectual por causa disso.
Contudo, o que os tais teólogos escamoteiam, pelo menos no que é dado ler no trabalho jornalístico mencionado, é de outra ordem. Se é certo que eles discutem muitas coisas nas faculdades de teologia, também é certo que as igrejas a que pertencem propõem dogmas de fé onde não há espaço nenhum para essa discussão. Um exemplo. José Tolentino Mendonça refere que se deverá a um erro de tradução da profecia de Isaías a tese de que Maria, a mãe de Jesus, seria virgem. O que se lê no hebraico é que a mãe do Messias seria uma “mulher jovem”, mas o tradutor para grego colocou “virgem” e foi essa versão que os evangelistas Lucas e Mateus compraram por boa, já que não sabiam ler o original hebraico. Segundo este responsável pela pastoral da cultura, é uma questão conhecida. Outros estudiosos da Bíblia, como o padre Carreira das Neves, dão outras leituras possíveis. Está, portanto, em aberto uma discussão histórica sobre como se chegou à ideia da virgindade de uma certa mãe (além, claro, de uma discussão ideológica sobre o interesse de acreditar que seria preciso fazer intervir uma monstruosidade biológica na pureza de um deus-homem). Só que – pormenor! – para os crentes católicos nada disso está em discussão, porque são “obrigados” a acreditar no dogma da virgindade da mãe de Jesus. Para que precisa uma religião, ou uma igreja, de ter dogmas como este? Eu até acho que isso tem uma explicação, uma explicação baseada no carácter institucional da história humana, na historicidade das comunidades humanas, mas parece-me errado que se insista em tradições autoritárias que se mostram incapazes de revisitar o passado das suas crenças e, quando aconselhável, na respectiva revisão.
Em resumo, este é um debate muito interessante, embora, mais uma vez, condenado a ficar pela rama. JRS tem explorado, de forma bastante primária, um nicho de mercado que é o revisionismo das grandes religiões do Livro. Mas essa estratégia de vendas só funciona por certas igrejas das religiões do Livro, designadamente a Igreja Católica, continuarem a viver excessivamente de dogmas – e cada vez menos da sua pertença à história viva dos povos.