13.3.11

É precisa uma pedrada no charco


A crise do país é profunda. Financeira, económica, política, social, cultural.

Há uma crise financeira, porque não produzimos à medida do que gastamos. Bem sei que há hoje muita gente a passar mal, mas há anos que vejo a quantidade de roupas, brinquedos, electrónica de entretenimento, acessórios de embelezamento, et cetera, em aquisição glutona por quem não tem sequer dinheiro para comer bem ou educar-se e educar os seus filhos. E que se endivida para comprar porcarias ou para pagar bens e serviços que, sendo valiosos em si mesmos, não devem tomar o lugar das primeiras necessidades. Por trás dessa crise financeira há, em parte, uma crise económica, até certo ponto devida ao domínio do financeiro sobre o económico, mas também devida a agentes económicos irresponsáveis do ponto de vista social: todos achamos que a culpa é do outro. Entre os “empresários”, ainda dominam largamente os “patrões”, que se estão nas tintas para o interesse do país, para os direitos e a qualidade de vida dos trabalhadores que lhes dão a vida a ganhar. Ao nível do país, a qualificação média dos empregadores continua a ser inferior à qualificação média dos empregados, mas isso está legitimado por um discurso social que valoriza mais comprar uma playstation do que concluir uma formação profissional e académica sólida. Entre os assalariados, é grande a massa dos que pensam que aquilo que a empresa lhes deve pagar não tem nada a ver com aquilo que eles produzem. A vozearia dos que pedem subsídios ou isenções para qualquer empresa, sem demonstração de que essa empresa é económica e socialmente responsável, junta-se amiúde à vozearia dos que clamam por intensa fiscalização a quaisquer dez euros que o Estado dê a uma família carenciada.

Há uma crise política, porque vivemos num permanente jogo de sombras. Uma certa esquerda, que sempre foi anti-europeia, tem agora imensas ideias acerca de como a Europa nos deve ajudar. Uma certa direita clama contra a austeridade, ao mesmo tempo que vai lançando quase-programas de governo que implicam mais austeridade e mais salve-se quem puder e mais cada um por si. Há umas vozes que, clamando contra os mercados sem especificar como nos podemos livrar deles, vendem a ilusão de que podemos simplesmente deixar de pagar as nossas dívidas - faltando-lhes, contudo, a coragem para explicar como viveríamos só com o que produzimos actualmente (deveriam dizer que, só com o dinheiro que é nosso, teríamos de voltar para o campo e produzir a nossa própria alimentação).

Há uma crise social, porque o “passa culpas” é generalizado. Só um exemplo: quantas famílias vêem os seus filhos abandonar precocemente a escola, ou arrastar percursos escolares de insucesso arrasador, e acusam o resto do mundo pelo facto, não se questionando um segundo acerca do que deveriam fazer melhor para desenhar as coisas de outro modo? A sociedade da desresponsabilização – alimentada pelo apontar do dedo “aos políticos” como os primeiros ou únicos culpados – é uma sociedade infantilizada, por isso incapaz de tomar em mãos o seu próprio caminho. É uma sociedade que espera um pai, um messias… ou um ditador. Uma sociedade doente, portanto. Há uma crise social, porque a sociedade está mobilizada para criticar, mas não para resolver. Há centenas de milhares que saem à rua (com toda a legitimidade) para criticar a avassaladora precariedade que inunda a sociedade portuguesa, precariedade que é um verdadeiro atentado à liberdade e dignidade individual, mas a maioria dos manifestantes acham que o governo é o principal, único, grande responsável por isso. Não lhe passa pela cabeça que deveriam exigir às associações patronais e aos sindicatos que se deixem de rodriguinhos e concluam verdadeiros acordos sociais para organizar o mercado de trabalho de outra maneira, com mais produtividade e mais segurança, com mais justiça e melhores resultados económicos. Uma “geração” que não percebe que isso passa por uma luta social mais micro, e menos contra os alvos políticos fáceis e mediáticos, não é uma geração rasca nem à rasca: é uma “geração” atomizada, onde a solidariedade e o combate deixaram de ser concretos e se ficam pela vozearia e pela rua (sem que, de algum modo, eu lhes queira negar o direito à rua). Os sindicatos e o patronato funcionam como uma espécie de partidos políticos disfarçados, que falam do que lhes não cabe na mesma linguagem dos políticos, e as gerações aflitas nem se apercebem de que isso lhes retira o verdadeiro plano da luta social e económica que deveria valer a pena. A luta social, transformada numa luta a favor ou contra o governo, convém às oposições incapazes de falar verdade, mas manieta a própria luta social, retirando-lhe horizontes e possibilidades.

Há uma crise cultural, porque se tornaram hegemónicos os discursos simplistas, os discursos que separam os diagnósticos das propostas alternativas. A união das forças políticas e mediáticas faz-se em torno do “isto está péssimo” – e esse é o discurso que ganha festivais da canção tal como ganha um coro de oposições no parlamento, tal como ganha as conversas de café ou os bitaites de intelectuais encartados. Que, depois, essa união seja impossível de traduzir em programas, em caminhos, em alternativas, parece não afligir ninguém. Quando esse deveria ser o ponto central da aflição: o não estar a emergir uma via de saída alternativa, mas apenas discursos com pressupostos contraditórios, incapazes de produzir outra governação, é o abrigo da demagogia irresponsável. Essa não é já uma questão política. Em política desenham-se caminhos diferentes e os cidadãos escolhem que caminho seguir. Estamos a um nível mais profundo de degradação: a ética do debate apodreceu. O assumir da responsabilidade pelas próprias propostas, o colocar no espaço público os dados da discussão para ela poder acontecer – são factores prévios ao próprio exercício político, que estão ausentes.

Face a isto, é preciso um sobressalto. O governo está a tentar a porta estreita: obter dos parceiros europeus a possibilidade de uma ajuda que nos retire das mãos do homem do fraque (ou do dono do “prego”) e nos dê algum tempo. As receitas da Grécia e da Irlanda não estão a resolver problema nenhum, pelo que a esperança de Passos Coelho (que venha uma intervenção externa para o PSD poder governar com o programa do FMI) é fútil. Sócrates, que continua com a atitude do combatente – fazer tudo o que pode para contrariar a maré – tem de saber que, do ponto de vista estrutural, nada pode estar substancialmente melhor nos próximos dez anos. E, certamente, o PS não pode aspirar a ficar no governo até “isto mudar”: o PS já está no governo há tempo demais, se contarmos desde 1995 e descontarmos a dinastia Barroso-Santana. E, em boa verdade, o governo do PS está a ser manietado pela direita europeia, dominante nos governos da UE, na Comissão Europeia, no BCE e sei lá onde mais - direita europeia essa que está a impor as suas políticas de destruição do Estado Social aos países aflitos em troca de uma eventual possível futura ajuda.

Está, pois, na hora, de obrigar cada um a assumir as suas responsabilidades. Não vale a pena conversar com o PSD, porque o PSD não existe. Existe Passos Coelho, que quer qualquer coisa que evite a descida de Rui Rio à capital, e cujo principal exercício político é disfarçar. Disfarçar as políticas que quer tentar, resumidas no “salve-se quem puder”. Existe Rui Rio e os que querem um PSD “credível” para tomar conta da intendência, mas que ainda não acabaram de ultimar o plano de assalto ao palácio de inverno. E existe o chefe da oposição, que reside oficialmente em Belém.

Assim sendo, Sócrates, como PM e SG do PS, deve ir a Belém e dizer a Cavaco Silva: “o senhor Presidente acha que os portugueses não podem fazer mais sacrifícios; os seus aliados nas instituições europeias passam os dias a exigir-me que peça mais sacrifícios aos portugueses; os seus aliados nos partidos portugueses concordam consigo que isto vai lá sem mais sacrifícios – e eu não estou a ver como; o senhor Presidente teve a sua manifestação da maioria silenciosa, que ajudou a convocar no seu discurso de tomada de posse, na sua habitual abrangência política alimentada pela crítica sem alternativa, porque a alternativa é onde a porca torce o rabo; portanto, senhor Presidente, eu vou-me embora, o PS vai para a oposição, que já se esforçou o suficiente, e o senhor Presidente assuma as consequências do seu activismo e arranje uma solução”.

É preciso saber sair a tempo. Sócrates não quer deixar a sua obra por mãos alheias, compreendo – mas o julgamento de Sócrates não terá lugar agora, mas daqui a dez anos, quando as estatísticas mostrarem o que mudou radicalmente por consequência da sua governação. E o grande sobressalto de que o país precisa é ser confrontado com as responsabilidades próprias dos cobardes que falam para não serem entendidos. O chefe de orquestra, que está em Belém, que trate do concerto. Única objecção razoável: o país não suporta uma crise política. A minha resposta: crise ou mudança, como lhe queiram chamar, terá sempre de acontecer antes de o país voltar a entrar nos eixos; assim sendo, que não tarde. O país precisa de uma pedrada no charco do faz de conta. Sócrates pode ser o autor de mais esse serviço ao país, habituado como está a fazer os lances decisivos.