Os humanos são grandes caçadores.
O animal mais fácil de ferir é o amigo.
É o que se chega mais perto:
aninha-se nas sombras frescas
à espera de uma ceia de palavras
e aí fica ao alcance das pedras.
É o que vem de peito nu
banhar-se nas águas correntes
acreditando na bondade dos ciclos naturais,
das rotinas familiares,
até acabar com a cabeça mergulhada
tempo de mais, até ao sufoco, no sangue
das partilhas entre irmãos.
É o que se aproxima sem armas
não porque as não possua
mas por não lhe ocorrer a utilidade do incómodo
vindo tão-somente ao comer do pão.
O amigo é um animal ingénuo,
que pensa que os outros só podem ver
o que existe.
É um animal de purgatório,
que nunca calcorreou uma ínfima porção sequer
dos tortuosos caminhos
nem dos escuros pecados
que os seus próximos, de ciência certa
sabem e afiançam que acometeu
em algum recanto escuro do universo.
Mais do que a águia ou o leão ou o urso polar
o amigo é a presa real do predador humano
o troféu dos deuses terrenos
o prémio primeiro dos vencedores
porque só ele morre pelas armas da espécie:
ele é a única vítima possível da palavra insensata,
(coisa que o animal da selva ou do gelo não sofre),
a única vítima possível da folia da imaginação,
da sensibilidade desatinada,
a única vítima possível
daquele grão de narrador que todos escondem
e defendem como dom divino quando o esgrimem
queimando com sangue o peito dos próximos
num gesto belo de pura insensatez metálica,
ferindo e despedaçando uma planície plena
de amigos desprevenidos.
Ou apenas um só.
São grandes caçadores, os humanos.
Porfírio Silva, in Horas do Tempo Comum
O animal mais fácil de ferir é o amigo.
É o que se chega mais perto:
aninha-se nas sombras frescas
à espera de uma ceia de palavras
e aí fica ao alcance das pedras.
É o que vem de peito nu
banhar-se nas águas correntes
acreditando na bondade dos ciclos naturais,
das rotinas familiares,
até acabar com a cabeça mergulhada
tempo de mais, até ao sufoco, no sangue
das partilhas entre irmãos.
É o que se aproxima sem armas
não porque as não possua
mas por não lhe ocorrer a utilidade do incómodo
vindo tão-somente ao comer do pão.
O amigo é um animal ingénuo,
que pensa que os outros só podem ver
o que existe.
É um animal de purgatório,
que nunca calcorreou uma ínfima porção sequer
dos tortuosos caminhos
nem dos escuros pecados
que os seus próximos, de ciência certa
sabem e afiançam que acometeu
em algum recanto escuro do universo.
Mais do que a águia ou o leão ou o urso polar
o amigo é a presa real do predador humano
o troféu dos deuses terrenos
o prémio primeiro dos vencedores
porque só ele morre pelas armas da espécie:
ele é a única vítima possível da palavra insensata,
(coisa que o animal da selva ou do gelo não sofre),
a única vítima possível da folia da imaginação,
da sensibilidade desatinada,
a única vítima possível
daquele grão de narrador que todos escondem
e defendem como dom divino quando o esgrimem
queimando com sangue o peito dos próximos
num gesto belo de pura insensatez metálica,
ferindo e despedaçando uma planície plena
de amigos desprevenidos.
Ou apenas um só.
São grandes caçadores, os humanos.
Porfírio Silva, in Horas do Tempo Comum
(Horas do Tempo Comum foi o trabalho vencedor da edição de 2007 do Prémio Literário Políbio Gomes dos Santos, instituído pela Câmara Municipal de Ansião em colaboração com a Associação Portuguesa de Escritores)