22.1.09

O racionalismo da acção enganou a humanista?


Lídia Jorge publicou no passado dia 9 de Janeiro, no Público, um artigo intitulado “Educação: os critérios da excelência”, que tem sido muito referido (mas muitas vezes mal citado) como espécime de fina análise ao actual momento vivido nas escolas portuguesas (ensino não superior). O respeito que a escritora nos merece sugere que não deixemos por considerar as suas palavras.

1. A escritora nunca se coloca no plano da oposição substantiva às reformas da Educação que estão em causa. Faz até o elenco parcial de alguns créditos deste governo nessa matéria: “iniciou reformas aguardadas há décadas, (…) conseguiu que o país discutisse a instrução como assunto de primeira grandeza, fez habitar as escolas a tempo inteiro, fez ver aos professores que o magistério não era mais uma profissão de part-time, arrancou crianças de espaços pedagógicos inóspitos”. Aceita a necessidade de distinguir a excelência entre os professores, nem sequer critica o princípio da titularização em si – critica a forma como foi aplicado. Não critica o princípio da avaliação docente, que considera, a par do anterior, outro “instrumento ao serviço da excelência”. Escreve mesmo que “Era preciso inaugurar nas escolas uma cultura de responsabilidade que até agora fora relegada para determinismos de vária ordem, menos os estritamente pedagógicos”. O que critica é o modelo que foi proposto. Portanto, a escritora denuncia fortemente vícios na aplicação de duas linhas de reformas fundamentais, mas fá-lo em nome dessas reformas. O que se estranha é que escreva como se ignorasse que muitos dos que lutam contra esta concreta forma de aplicar as reformas só tacticamente aceitam os princípios. Por exemplo, a maioria, quando diz que não está contra a avaliação, mas contra esta avaliação, está num exercício táctico. A maioria, quando critica as injustiças cometidas no processo de titularização, visa mais longe: está contra aquilo a que chamam “a divisão da classe”. Como é que podemos saber que isto é verdade? Não vou invocar o que ouço a professores, nem o que leio na blogosfera, nem o que vejo nas manifestações. Invoco o que os representantes dos professores propõem à mesa das negociações: o que realmente mostram aí, explicitamente, é que estão contra o próprio princípio de uma carreira diferenciada, que estão contra o princípio de uma avaliação com consequências relevantes. Uma parte do problema é essa “dupla linguagem”. Um equívoco fundamental do texto de Lídia Jorge é ignorar esse problema. Ignorar que ao ME faltaram os parceiros certos no terreno, é um grave erro de análise. Faltaram ao Ministério parceiros para uma negociação séria, parceiros que aceitassem responsavelmente que cabia ao Parlamento e ao governo definir os objectivos políticos centrais das reformas – e que usassem de boa fé na procura de soluções ajustadas à sua concretização.

2. No que toca à titularização, a escritora critica vários aspectos da sua concretização. Considera que foi um erro criá-lo de um momento para o outro – mas, quando escreveu antes que um dos méritos desta equipa foi iniciar reformas aguardadas há décadas, não percebe porque foi (e é) necessário andar depressa? Entende que a escola não estava preparada para esta diferenciação dual – mas nada sugere quanto à forma de preparar a escola para a mudança: não mudando? Ou mudando e corrigindo os erros? Ou o problema será o carácter dual da diferenciação – já seria melhor se houvesse três categorias em lugar de duas? Diz que se aplicaram critérios aleatórios: parece-me simplesmente falso – alguns critérios serão errados, não aleatórios. Acusar o ME de aplicar critérios aleatórios é pesado e grave; uma acusação dessas teria de ser substanciada, e não foi. Sugere que se aplicaram critérios administrativos e não se aplicaram critérios pedagógicos nem científicos (“em vez de”), o que, mais uma vez, carece de explicação. Cumulativamente, a acusação de que se usaram critérios aleatórios e a acusação de que não se usaram critérios pedagógicos ou científicos, que foram excluídos para se usarem critérios administrativos, constituem um libelo pesado – para quem, sendo escritora, sabe o que valem as palavras, a carecer de melhor fundamento.
Ainda no que toca à titularização, diz que ela foi negada a professores competentes. Suponho que sim. Quer porque nem todos os professores competentes serão excelentes, quer porque erros graves no processo impediram professores excelentes de serem titularizados. Essa é também a minha convicção. Contudo, a escritora diz mais: diz que foram titularizados professores maus e muito maus, e que “basta visitar algumas escolas” para se perceber isso. Lídia Jorge avalia professores por “visitas”? Acho estranho. Dos anos em que fui professor e tive responsabilidades de direcção pedagógica, lembro-me de pelo menos dois ou três casos de professores em que andei meses (anos?) para tentar perceber se eram excelentes ou péssimos, se eram extraordinários revolucionários ou perigosos desestabilizadores. E, comigo, outros hesitavam e se dividiam: depois de analisar detalhada e detidamente os seus métodos. Mas a escritora visita a escola e fica logo a saber. Acho estranho. E acho até perigosa a pretensão. Ou a ingenuidade.

3. Quanto à avaliação de desempenho, Lídia Jorge não avança muito contra o que o ME tem feito. Centra-se num argumento de infantilização dos professores, o qual aliás não é novo. Daniel Sampaio já escreveu que “a avaliação fomenta problemas interpessoais entre professores” (Pública, 16/11/08), como se eles fossem incapazes de fazer da avaliação um exercício profissional (como fazem tantos outros profissionais altamente qualificados) e só pudessem cair na armadilha de fazer da avaliação profissional uma questão de conflito pessoal. Lídia Jorge vai por caminho idêntico, acusando este modelo de avaliação de ser “um sistema que transforma cada profissional num polícia de todos os seus gestos, e dos gestos de todos os outros”. A confusão perniciosa entre relações profissionais e relações pessoais, misturada com uma concepção paternalista das relações de trabalho, alimenta o medo da avaliação rigorosa. Estamos no mesmo: os professores, apesar de constituírem uma classe altamente qualificada, e uma das que mais estão preparadas para avaliar, são ditos incapazes de uma cultura colectiva de avaliação exigente. O que me parece um insuportável atestado de menoridade aos professores.

4. O resto, lamento dizê-lo, não anda muito longe do insulto. Misturar a Ministra com a brincadeira do “Papá, sou ministro!”, e outros mimos, mostra falta de equidade no exercício. A escritora, cidadã, ao olhar para um problema público sem considerar a questão da partilha das responsabilidades, está a faltar às suas próprias responsabilidades. Não olha para os parceiros que faltaram neste processo (os professores que recusam mudanças substanciais necessárias na sua carreira, os sindicatos que confundem o seu papel com o papel do poder político mandatado para cumprir um programa de governo aprovado pelo parlamento), não olha para a história (quais os mecanismos que foram usados, ME após ME, para deixar ficar o essencial sempre na mesma) – e fundamentalmente não olha para as alternativas. Emparceira, assim, no grande exército dos críticos sem visão: a sua grande ideia é parar. Desistir. Se desistirmos agora, desistimos por quantos anos? Décadas, como até agora – como sublinha a própria Lídia Jorge.

5. Afinal, o artigo da escritora enferma de um erro tão grande como a boa vontade que estamos certos a move: o hiper-racionalismo da acção.
Quem boicotou as estruturas de acompanhamento da concretização, quem evitou apresentar as dificuldades concretas de terreno nas estruturas vocacionadas para as resolver, quem impediu que implementação e revisão de processos andassem a par – fê-lo apoiando-se num mito. O mito hiper-racionalista da acção. De acordo com esse mito, primeiro analisamos exaustivamente a situação, elaboramos um detalhado modelo do mundo, definimos metas precisas, desenhamos planos e sub-planos de vária ordem até ao detalhe exacto – e, depois do planeamento, executamos. Executar seria, nesse mito, apenas aplicar o plano, se possível rigorosamente até ao movimento corporal mais básico. E se a coisa não funcionar impecavelmente, é porque o planeamento racional falhou em algum lado. A maior parte das críticas à avaliação de desempenho dos professores, pelo menos as que fazem as delícias da maioria, assentam implicitamente neste mito. Também a de Lídia Jorge.
Só que, uma vez que nenhum modelo é perfeito, tentar eliminar um modelo por ele não ser perfeito equivale a tentar matar antecipadamente todos os modelos que venham a ser tentados. Nenhum modelo pode ser aperfeiçoado apenas em teoria; é na prática que vão encontrar-se os ajustamentos necessários; nunca passando à prática, nunca chegamos a apurar nenhum modelo. (“Faz-se caminho caminhando.”) Não compreender isto é cair numa armadilha. A armadilha que Lídia Jorge projecta no passado (“reformas aguardadas há décadas”), mas em que volta a cair no presente. O seu texto é uma cedência de fundo ao errado e perigoso mito do hiper-racionalismo da acção. Com a infeliz consequência de levantar a sua respeitada voz para defender a desistência – por mais quantas décadas?

(Este texto publica-se aqui, e não em qualquer outra parte, porque às páginas nobres do Público só se tem acesso em condições que nós, normalmente, não reunimos.)