16.6.25

Portugueses vírgula




Está nas salas o mais recente filme de Vicente Alves do Ó, “Portugueses”. É um musical, e eu não costumo gostar de musicais. Mas fui ver e quero dizer-vos algo sobre o filme, a ver se vos convenço a ir ver, enquanto não “desaparece” … algo que acontece muito aos filmes portugueses.

“Portugueses” é uma sequência de cenas da história contemporânea de Portugal, nos aspetos relacionados com o facto de termos vivido sob uma ditadura e de nos termos livrado dela. E, também, relacionados com o facto de que nem todos viviam igualmente cómodos – nem todos igualmente esmagados – pela repressão. Havia quem vivesse quentinho à sombra da conjuntura. E havia quem pagasse as favas com língua de palmo. Havia, também, os desgraçados que lambiam as migalhas da miséria como quem estivesse à mesa do senhor. É dessa matéria que se alimenta o filme – e digo “sequência de cenas” por o filme não conter, exatamente, uma história que se lhe seja propriamente exclusiva. A história está contada e recontada mil vezes: é a história do 25 de Abril de 1974, das razões que o tornaram necessário, de algumas coisas que se fizeram no imediato depois.

Sendo um musical, facilmente chega a ser visto como uma sequência de cenas, com o seu quê de descosido. Como habitual nos musicais. Acontece isto e aquilo e, às tantas, uma personagem desata a cantar uma canção que conhecemos bem e que fala com clareza naquele momento e naquela situação. Aqui, esse carácter fragmentário dos musicais não me doeu tanto como costuma doer nos musicais em geral, porque, em vários desses momentos de colocar a música a contar a história, conseguiu-se não matar o ritmo, conseguiu-se que a canção fizesse parte do enredo, que a canção acrescentasse mais alguma coisa. Não se conseguiu sempre – e foi-se conseguindo menos com o avançar do filme. Podiam ter-se sacrificado alguns “quadros”, evitado quinze minutos finais perto do meramente decorativo (ou, vá lá, comemorativo), conseguido uma economia mais enxuta e manter o conjunto mais perto de uma narrativa. Não se conseguiu sempre, mas conseguiu-se vezes suficientes para o conjunto valer a pena.

O filme não tem a sua história própria por viver da história que temos na cabeça. A dificuldade está em que nem todos temos essa história na cabeça. Ou a história não é a mesma em todas as cabeças. Quando “Portugueses” renuncia a ter a sua própria história, entrega-se nas mãos das histórias que cada um de nós tem na sua cabeça. Não será assim mesmo que tudo se passa sempre quando oferecemos uma história a um público? A questão é saber qual é a obra mais verdadeiramente aberta: será a obra que aparenta ser mais aberta ou será a obra que se apresenta como mais fechada? Umberto Eco dir-vos-ia. 

De qualquer modo, e com todos estes “ses”, “Portugueses” tem, para mim, um valor incalculável, neste tempo que é meu e que é vosso. É que o filme “Portugueses” permite desesteticizar uma série de canções que traduziam realidades brutais da repressão da ditadura e que acabam, com a distância temporal, por se tornar objetos estéticos onde o que mais facilmente captamos é a beleza da sua expressão. Ouvimos cantar sobre Catarina Eufémia e aquilo é bonito: o poema e a música. Mas aquilo é sobre o assassinato estúpido e gratuito de uma mulher jovem, de uma trabalhadora rural. Um assassinato real. Ouvimos cantar sobre o soldadinho que volta dentro de uma caixa de pinho e, mais uma vez, é bonito o poema e a letra é bem servida pela música. Mas aquilo é sobre a realidade brutal de que se morria jovem, aos milhares, numa guerra imposta ao povo português em nome de um império que era uma ficção atroz. Quer dizer: canções que nasceram para lutar contra brutalidades absurdas que nos eram impostas tornaram-se, com o tempo, objetos estéticos cuja esteticidade ameaça esvaziar o seu sentido germinal. O filme “Portugueses”, para quem tenha caído nessa armadilha (inevitável?) da esteticização da canção de luta, lembra, quer dizer, mostra aspetos do que foi a referência direta dessas canções. Esta foi, para mim, a principal interrogação que o filme me deixou: como funcionam estas marés de esteticização e desesteticização dos objetos de luta. 

No princípio do filme, há uma linha prometedora que assoma, mas depois é abandonada. Em paralelo com as músicas, de intervenção, que são o fio condutor da obra, aparecem músicas de fundo, fragmentos, vindos de outros horizontes de sentido: uma cançoneta na rádio (é identificável, mas não me lembro qual seja) e, depois, uma canção de igreja. São música, mas estão fora do plano de sentido que nos é proposto pelas canções assumidas por personagens. Fiquei à espera dessa luta de canções, as de dentro e as de fora da leitura assumida pelo realizador, mas esse desenvolvimento não aconteceu. Sabe-se lá onde poderia levar…

A cena onde cabe a interpretação d’A Tourada é de antologia: tão disruptiva como poderia ser lida a estupidez de uma censura prévia que não percebia o que estava a deixar passar, a deixar cantar. No conjunto, vale a pena ir ver “Portugueses”.

Digo “Portugueses vírgula”, ou “Portugueses,” por o realizador explicar que é uma espécie de arranque de um discurso aos portugueses, solene, como quando o Presidente se dirige à nação em comunicação formal. Então, Vicente Alves do Ó diz “Portugueses,” e arranca para um discurso que nos faz. E que vale a pena ir ouvir.


Porfírio Silva, 16 de Junho de 2025
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