O debate sobre as propinas tem de ser enquadrado pela necessidade de continuar a alargar a base social de recrutamento de estudantes para o ensino superior.
Há muitas razões para vermos aí um desafio: a condição sócio-económica de partida ainda pesa excessivamente no acesso ao ensino superior; o mercado de trabalho absorve muitos jovens que deveriam continuar a sua qualificação, mas que são desencorajados pelo esforço financeiro associado e pela perda de rendimento imediato (apesar dos ganhos a prazo); o esforço financeiro principal recai sobre as famílias, num país onde os apoios do Estado têm um peso comparativamente modesto nos rendimentos dos estudantes; as dificuldades financeiras continuam associadas à interrupção de estudos no ensino superior.
Não podemos esquecer o enquadramento constitucional desta questão, pelo qual todos têm direito ao ensino, à igualdade de oportunidades de acesso e êxito escolar, incluindo no ensino superior, sendo incumbências do Estado garantir a todos os cidadãos, segundo as suas capacidades, o acesso aos graus mais elevados do ensino e da investigação científica, bem como estabelecer progressivamente a gratuitidade de todos os graus de ensino.
O acesso ao ensino superior qualifica-se, portanto, como um direito fundamental e cabe ao Estado trabalhar para que a ninguém ele seja negado por razões económicas. Não creio que se possa daqui deduzir o imperativo de eliminar imediatamente as propinas, dada a ponderação exigida pela finitude dos recursos e demais direitos constitucionalmente protegidos. Aliás, há quem defenda que a superação das desigualdades pode beneficiar da existência, pelo menos temporária, de propinas. O raciocínio é que, com o contributo daqueles que mais facilmente podem suportar esse custo, torna-se mais exequível, em ambiente de recursos escassos, apoiar os que mais dificuldades enfrentam para frequentar o ensino superior. Por vezes, o óptimo é inimigo do bom.
O que pretendo dizer com isto é que temos a responsabilidade de evitar a tentação de simplificar a equação complexa do financiamento do ensino superior. Devemos, desde já, prosseguir a meta de ter no ensino superior 6 de cada 10 jovens com 20 anos (hoje, 4 em 10), e trabalhar para que esse alargamento seja socialmente justo. Mas não podemos fazer da eliminação das propinas uma medida fetiche, usá-la para recobrir todos os outros problemas e descansar. Não podemos, porque eliminar agora as propinas não resolveria o problema de muitas famílias que continuariam a não poder custear a frequência do ensino superior.
É certo que o Estado Social não é só para os pobres, o Estado Social é para todos, a justiça relativa deve residir num sistema de impostos progressivos e não numa discriminação no acesso aos serviços públicos, sob pena de deslegitimar social e politicamente o próprio Estado Social. Mas não podemos adoptar soluções que deixem para segundo lugar aqueles com mais frágil condição sócio-económica. Entre esses estarão aqueles a quem nem se chega a colocar a questão de pagar propinas. Provavelmente, a forma de tratar primeiro dos problemas mais prementes e das pessoas com menos recursos, sem descurar as demais, será reforçar mais significativamente a acção social, directa (bolsas, incluindo as que cobrem as propinas) e indirecta (alojamento, cantinas, saúde, desporto, creches), até sermos capazes de garantir que ninguém deixa de aceder e ter sucesso no ensino superior por falta de financiamento. Aumentar o volume e a intensidade da ação social é, provavelmente, um caminho mais curto para diminuir as desigualdades do que agir principalmente sobre o valor das propinas.
Vir a eliminar, daqui a alguns anos, as propinas, pode fazer sentido – não apenas do ponto de vista dos indivíduos, mas até do ponto de vista do progresso social e económico e do posicionamento internacional do nosso sistema de ensino superior. Contudo, tentar reduzir o essencial da questão ao valor das propinas pode ser pouco coerente numa perspectiva de esquerda, se dermos forte prioridade à redução das desigualdades. Quem duvidará de que, aí, avançaremos mais agindo, por exemplo, como o governo está a fazer, na questão do alojamento estudantil?
(artigo publicado no Público, a 21-01-2019, subscrito como Deputado e Secretário Nacional do PS)
Porfírio Silva, 22 de Janeiro de 2019