Foi pela mão de J. Nascimento Rodrigues que cheguei a este perfil de Paulo Guedes, que deverá ser o futuro superministro de Bolsonaro para uma série de áreas do domínio económico e financeiro. E também foi pela pena desse distinto jornalista que fui alertado para a seguinte informação, constante da peça: Guedes serviu o Chile de Pinochet na universidade, visivelmente despreocupado com o facto de a universidade ser dirigida por um general e, ao mesmo tempo, despreocupado com a sangrenta ditadura que aquele generalato impunha ao seu país. E Guedes “explica-se” assim: “Eu sabia zero do regime político. Eu sabia que tinha uma ditadura, mas para mim isso era irrelevante do ponto de vista intelectual.”
Os “intelectuais” que tomam como irrelevante o mundo concreto em que vivem, que tomam como irrelevantes as condições concretas das pessoas e das sociedades que, teoricamente, são objecto dos seus estudos (os economistas não são teólogos, pois não?), são perigosos para as nossas vidas pessoais e para as nossas comunidades. Em termos epistemológicos, isto já foi muito discutido: o desprezo pelo realismo, típico dos seguidores de Milton Friedman, transforma-se facilmente num desprezo pelas pessoas reais. Mas, em geral, os membros desta escola evitam dizer as coisas tão cruamente como Guedes o faz, mesmo estando já com os dois pés na política activa. Para ele, a ditadura não constava dos seus modelos económicos e, portanto, ela era irrelevante para as suas contas. Quer dizer: apesar de ele dizer que sabia “zero” do regime político, a ditadura valia, na sua equação, menos que zero. E as suas vítimas, o mesmo.
Há, contudo, nesta história, mais pontos a considerar, que encontramos continuando a ler o perfil. Primeiro, quase meramente anedótico, Guedes deixou o Chile de Pinochet “quando encontrou agentes da polícia secreta vasculhando o apartamento onde morava”. Caramba, afinal a realidade pode entrar pela porta dentro mesmo de um intelectual distraído!
Há mais, contudo. De volta ao Brasil, parece que nem todos os recantos universitários acolheram de braços abertos o “rapaz de Chicago” que se sentia bem no Chile de Pinochet até o Chile de Pinochet lhe entrar em casa. Guedes queixa-se: “Percebi que havia uma mancha terrível sobre mim. Aí eu comecei a ver que a política é uma ferramenta suja nas mãos dos menos aptos.” Ah, como são limpas as mãos destes “intelectuais” que sabem “zero” das ditaduras que servem – ou, mais geralmente, como são limpas as mãos destes intelectuais cujos modelos teóricos não se incomodam com a realidade. Sujas são as mãos dos outros, sujas são as mãos dos que não gostam dos que servem ditadores e ditaduras – pregam eles.
Importa sublinhar isto: a prática de não se importar com as mais ferozes ditaduras tem figuras concretas relevantes. Um exemplo bem definido é Margaret Thatcher, amiga e apoiante de Pinochet – primeira-ministra britânica que é, por sua vez, muito admirada por muitos dos radicais de direita que pululam entre nós. Sabemos, se dermos atenção aos exemplos, que esse vírus anti-democrático toma, por vezes, a forma de uma violenta hipocrisia: anti-democráticos são os outros, para quem essas coisas contam.
Cuidem-se. Quero dizer: cuidemo-nos.
Porfírio Silva, 5 de Novembro de 2018