Entre o melhor que tiveram as despedidas públicas a Mário Soares estão os excertos de discursos que foram escolhidos para serem emitidos em vários momentos, que pudemos ouvir pela voz do próprio.
Já alguns notaram como foi impressionante estar no Largo do Rato a ver passar o fundador e, de repente, ouvir (no meu caso, atrás de nós) a voz de Mário Soares a gritar “Viva o Socialismo! Viva a Liberdade!”. Foi, simplesmente, esmagador. Surpreendente, a mostrar o vigor do Soares vivo que nos liderou. Foi mais um momento da impecável e digníssima participação do PS nestes dias de despedida, sob a batuta discreta mas poderosa da Ana Catarina Mendes, Secretária-Geral Adjunta do Partido.
Claro que o excerto do discurso na assinatura do Tratado de Adesão à CEE é de grande significado e peso histórico, mas é, provavelmente, das escolhas mais previsíveis, por se impor tão claramente àquele momento no claustro dos Jerónimos.
Não está nesta categoria, mas "Os dois sonetos de amor da Hora Triste", de Álvaro Feijó, ditos por Maria de Jesus Barroso, ecoando nos Jerónimos para Mário Soares, criaram um momento sublime e de inultrapassável comoção.
O último momento público, já no cemitério, deu-nos a ouvir aquela passagem de um discurso de campanha onde Mário Soares explica que a tolerância é um valor maior pela razão de que ninguém tem toda a verdade, ninguém tem a verdade em exclusivo. Essa ideia, tão simples, é o fundamento das escolhas essenciais que temos de fazer em democracia. Não é por condescendência que temos de dar voz aos que pensam diferente de nós. É porque, sem os outros, sem as outras visões, sem as ideais que não coincidem com as nossas, nenhum de nós teria mais do que uma visão parcial da realidade. Nenhum de nós teria tantas possibilidades só com a sua visão como as possibilidades que todos temos se contarmos também com as visões que nos contradizem. A democracia não é uma benesse aos demais. A democracia é uma necessidade para termos mais possibilidades no mundo.
Esta última ideia não a perceberam aqueles que tentaram fechar Mário Soares em caixas limitadas. Aqueles que tentarem reduzir Mário Soares a um ou outro momento do seu percurso político, esses não perceberam nada do que Soares significa. Eu tive variadas discordâncias com Mário Soares neste ou naquele momento da vida pública portuguesa desde a Revolução. Mas nunca perdi de vista que o direito à liberdade é o primeiro direito do cidadão numa comunidade política, sem o qual nenhum outro direito de cidadania pode ser possível. Tentar "cortar Soares às fatias" para separar o "Soares bom" do "Soares mau" segundo as conveniências do momento, é precisamente esquecer que Mário Soares foi essencialmente um homem livre. Depois de Mário Soares, ainda há quem não entenda isto. É bem certo que a sua obra precisa ser continuada.
11 de Janeiro de 2017