Agora que toda a gente anda a investigar a pré-história da Geringonça (em exercícios sem dúvida interessantes, mas em alguns casos revelando uma táctica memória selectiva, não sei se das fontes se dos investigadores), vale a pena fazer um paralelo com Espanha, o PSOE e a repetição sucessiva de eleições sem saída evidente. E a pergunta pode ser: o que falta lá que tenha havido cá?
Bom, vários elementos de resposta podem ser legitimamente apontados. A profundidade estratégica e política de António Costa explica que cá se tenham feito certas coisas que não se fazem noutras latitudes. A preponderância do PODEMOS na esquerda espanhola e a distância que vai entre a sua realidade concreta e a "esquerda da esquerda" que temos por cá, contribui também para explicar a diferença de processos. Mas... Há sempre um "mas"...
Há um elemento crucial no processo português que claramente o líder do PSOE nunca pôs em funcionamento e cuja falta faz toda a diferença. É que, por cá, a rejeição do governo de Direita, a recusa de um potencial segundo governo Passos/Portas, esteve clara e explicitamente ligada à construção da maioria de esquerda capaz de garantir uma solução de governo que não deixasse o país em suspenso. O PS só votou o chumbo do programa de governo PSD/CDS, e o seu consequente derrube, depois de estarem firmes as "posições comuns" com PCP, BE e PEV, acordos esses que traduziam a possibilidade concreta de uma alternativa real e viável de governo. O PS nunca se colocou na posição de bloquear a Direita sem estar em condições de apresentar pela positiva uma solução.
Isso é o que não acontece em Espanha: o PSOE deixou-se colocar numa posição em que parece infinitamente disposto a bloquear uma fórmula de governo, mesmo sem ser capaz de oferecer concretamente uma alternativa.
Note-se que, em Portugal como em Espanha, essa ligação entre "recusar uma solução" (de Direita) e "construir uma alternativa" (de Esquerda), seria (como foi cá) essencial para os socialistas nunca serem apanhados numa posição inconsequente de mera rejeição de uma governação sem proposta alternativa.
Foi, aliás, esta lógica de "moção de censura construtiva" que António Costa enunciou logo na noite das eleições (assumindo que não poria em causa a governabilidade nem contribuiria para um vazio) e que permitiu ao PS conduzir o período de negociações em plena autonomia estratégica, deixando a Direita sem capacidade de reacção adequada (porque o PSD e o CDS, embora temendo que Costa não estivesse para eles virado, não encontraram maneira de se desenvencilhar do laço, já que corriam o risco de serem responsabilizados pela ruptura com o PS). E, no que toca à relação com a Esquerda, o PS apresentava aos seus potenciais parceiros a obrigação de resultados: se falhasse o acordo, estariam a oferecer a salvação a Passos e Portas, algo que nenhum dos eleitorados à esquerda compreenderia.
Diga-se. de passagem, que esta ligação entre os processos de recusar a Direita e de avançar para a Esquerda, sendo processos simultâneos, deu a António Costa o tempo e a margem suficientes para fazer a necessária pedagogia dentro do próprio PS, mostrando passo a passo que era possível algo que simplesmente assustava muitos dirigentes. Está aí, em ser ou não ser capaz de fazer essa pedagogia dentro do próprio partido, outra especificidade do caso português na comparação que estamos a fazer.
Há, portanto, razões estratégicas muito claras para haver Geringonça em Portugal e não haver em Espanha. Mas, sejamos claros, essas razões estratégicas assentam em razões políticas profundas. É que, convém não esquecer, este problema esteve claramente equacionado desde a moção que António Costa apresentou às Primárias do PS, com reafirmação na moção ao congresso nacional que se seguiu, quando a recusa do "arco da governação" e a equação das responsabilidades das outras esquerdas ficou escrita preto no branco. Hoje compreendemos que, apesar de alguns (muitos) distraídos terem demorado a perceber, não se vai longe sem se vir de longe.
27 de Setembro de 2016