8.11.15

"O PS é o partido moderado de que o país precisa neste momento."




A jornalista Liliana Valente, do Observador, entrevistou-me na passada quarta-feira (04/11/2015) sobre o actual momento político. O texto resultante foi publicado no Sábado, 7. Deixo-o aqui, para memória. A entrevista foi publicada com o título "Ninguém espera que desenhemos agora quatro orçamentos". Eu escolhi, para aqui, outro título, menos de actualidade e mais conforme com o que é permanente no meu pensamento.

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As negociações foram iguais com PCP e BE? Nunca houve uma reunião entre os três partidos…

Somos todos partidos diferentes, com culturas diferentes, histórias diferente, com programas diferentes que eram diferentes antes destas conversações e vão continuar a ser diferentes. Há assuntos que não são completamente coincidentes naquilo que tem de se trabalhar em cada um dos casos.

Portanto vamos conhecer acordos diferentes?

O que vai acontecer é que há uma base para um programa de governo em que todos aqueles que estão envolvidos nesse trabalho concordam que essa é a base para um programa de governo. O que está em causa é como é que se constrói um programa de governo. Sabemos desde o princípio que a base desse programa de governo é o programa eleitoral do PS, porque foi o programa que teve mais votos. Também sabemos desde o princípio que há pontos que são importantes para os outros partidos e condições sobre as quais não vamos estar de acordo, nem sequer vale a pena discutir. E, portanto, a geometria é variável. O que interessa é que temos de chegar a uma situação em que o programa do governo que seja apoiado pelos vários partidos seja coerente, do ponto de vista de todos, e seja satisfatório do ponto de vista de todos.

Como vai o PS garantir que o acordo responde às exigências do Presidente da República? É possível que Cavaco Silva não dê posse a um governo de esquerda?

Tenho tendência a pensar que quem tem responsabilidades institucionais exerce essas responsabilidades no melhor interesse do país. Julgamos que o melhor interesse do país é que haja uma solução de governo que seja sólida, seja consistente, seja duradoura e, obviamente, seja maioritária na Assembleia da República. Isso corresponde a um desafio lançado pelo Presidente na comunicação que fez ao país aquando da marcação das eleições. Seria estranho que, estando nós a fazer aquilo que é normal em democracia – procurar uma solução no Parlamento – e estando a corresponder ao desafio insistente do senhor Presidente da Republica de que ‘é tempo de compromisso’, que isso correspondesse a uma solução aceitável constitucionalmente e não o fosse no critério do senhor Presidente da República.

Mas o Presidente da República elencou uma série de pressupostos que têm de ser cumpridos, como o respeito pelo Tratado Orçamental, a NATO, as regras da União europeia, da união bancária. Como vai o PS blindar esse acordo?

Tenho uma certa resistência em falar da ação política do Presidente como se ele fosse adversário ou inimigo de algum partido. A partir do momento em que no PS estamos a trabalhar para uma base de estabilidade para a legislatura, entendemos que estamos a trabalhar numa base que é desejável para o Presidente da República.

PCP e BE aceitam esses pressupostos?

Nós temos pela frente a necessidade de satisfazer várias obrigações do Estado. Temos por exemplo que satisfazer as obrigações do Estado no que diz respeito a pensões e salários. Devemos cuidar, satisfazer as obrigações do Estado no que diz respeito aos serviços públicos essenciais, que as pessoas esperam que o Estado garanta. Temos de pensar nos compromissos europeus que o país assumiu, temos de pensar na necessidade de relançar o desenvolvimento em ciência, inovação, educação e cultura. E aquilo em que estamos a trabalhar é para desenhar uma trajetória orçamental, em termos de défice e de dívida que garanta o cumprimento dessas obrigações fundamentais do Estado. E que tenha o acordo dos partidos envolvidos.

Que trajetória será? Jerónimo de Sousa já falou na possibilidade de deixar o défice subir até aos 4%, 5%…

O que o secretário-geral do PCP disse tem muita racionalidade. Porque o que ele disse foi: porque é que é 3% e não é 4%? O que ele quer dizer: quando se definiram as regras, devia haver um racional para essa definição e isso podia ser discutido e a opção poderia ter sido outra. E é verdade. Podia ter sido outra. O que o secretário-geral do PCP disse é racional. As regras podiam ter sido outras, o desenho podia ter sido outro, nós próprios dizemos que continuaremos a participar no seio da UE e no quadro da Zona Euro em todas as discussões que se vão tendo acerca de como se podem melhorar as regras. Não há nada contra que nós continuemos a analisar criticamente o enquadramento que existe. Agora, o enquadramento que existe é aquele que existe e nós nunca fomos favoráveis a uma perspetiva quixotesca que seria ‘nós vamos lá e convencemos os outros todos de que é preciso mudar isso imediatamente’. Não temos essa perspetiva. Sabemos que, acerca do que se deve fazer a longo prazo, os vários partidos têm ideias diferentes acerca da estratégia, tática e fundamentos. Isso é perfeitamente assumido. Os partidos não mudaram todo o seu programa, nem toda a forma de estar na política portuguesa e europeia, de um momento para o outro – e isso está claro para nós.

Admite que o défice pode derrapar este ano e no próximo? Isso vai trazer problemas adicionais.

Boa pergunta para fazer ao governo. Há muitos sinais de que algumas perspetivas que foram avançadas do que iria acontecer no conjunto do ano talvez não sejam muito realistas. Não vou entrar nisso. Não devemos ser alarmistas, mas também não devemos ser ingénuos. O que acontece é que quem está a pensar assumir as responsabilidades de governar o país tem de estar preparado para as eventualidades. Não para aquilo que gostaríamos que acontecesse, mas para aquilo que realmente vier a acontecer. E portanto enfrentaremos as situações que houver a enfrentar.

O PS admite rever o défice de 2016?

Não vou falar sobre o conteúdo do acordo. Parto do principio de que é a melhor técnica negocial.

Mas há garantias gerais que podem ser dadas…

Isso está a ser discutido e não vou dizer como está a ser discutido. Será proposta uma trajetória orçamental que contenha uma estratégia para o conjunto da legislatura. O nosso horizonte é o horizonte de uma legislatura, o que significa que o acordo não contém nenhum prazo inferior à legislatura. Dizer ‘ah, é para um orçamento, dois orçamentos’. O que se pode dizer é que certamente ninguém espera que nós vamos agora desenhar quatro Orçamentos do Estado. Ninguém espera. O mundo não é uma máquina, a realidade política não é determinística e, portanto, governar não é seguir um plano muito detalhado, desenhado previamente. É ter rumo, objetivos, balizas e ter método para enfrentar as contingências e para enfrentar as circunstâncias inesperadas. É isso que o acordo terá. O PS disse antes das eleições quais eram as suas perspetivas acerca da estratégia de consolidação orçamental. Também dissemos e explicamos que não temos a visão das finanças públicas que a direita tem. Entendemos que as finanças públicas se tornam sustentáveis com uma boa economia, com rendimentos das pessoas e das famílias, com crescimento, capacidade para a empresas investirem. Esta é uma estratégia diferente. O que o acordo terá de conter é qual é a estratégia, a linha, a trajetória orçamental que os subscritores do acordo pretendem aplicar e terá o método para se conseguir.


Está garantido o compromisso do PCP e BE para as medidas que forem necessárias para assegurar essa trajetória?

O compromisso é o método. Se nós estivéssemos a discutir o programa de governo de direita penso que não seria muito difícil adivinhar que sempre que houvesse uma dificuldade a receita havia de ser ou cortar nas pensões ou nos salários ou aumentar os impostos. Não será esse o método que vamos adotar. Pelo contrário. Certamente que será parte desse método a questão de saber como teremos de resolver as circunstâncias supervenientes sem cortar nos salários, sem cortar nas pensões e sem ir logo aos impostos sobre o rendimento.

Essa é uma garantia dada ao Presidente?

Não é uma garantia dada a ninguém. É o acordo entre as partes. Não estamos a falar de imposições nem de exigências. Mas de partidos que de boa-fé têm determinados objetivos – sabem que alguns são comuns e que noutros há diferenças ou divergências. Têm de conseguir definir a maior base possível de convergência para que seja possível governar o país. Ou deixando para outras núpcias as divergências ou arranjando maneira de as resolver.

Deixar para outras núpcias quer dizer o quê? Vai ser uma negociação orçamento a orçamento?

Pode ser o reconhecer de que há certos problemas do país que não vamos resolver nesta legislatura e que se calhar terão de ser resolvidos noutra altura, noutro governo, de outra maneira e com outra maioria.

Pergunto de outra maneira: quais são as garantias que o PS vai dar de que o acordo é sólido? Vai determinar as linhas gerais ou vai dizer, à semelhança de outros acordos de governo de que se comprometem a votar em solidariedade moções de censura confiança, etc…

Não vamos desenhar agora quatro orçamentos. Haverá uma trajetória que nós acordaremos e haverá um método para respeitar essa trajetória num horizonte de uma legislatura. O método e a trajetória têm de compatibilizar várias coisas, várias obrigações do Estado. Esta ideia de que podemos pensar em algumas obrigações do Estado como se estas fossem as únicas, e esquecer as outras, está errada. Uma questão essencial que distingue o que aconteceu na última legislatura e o que queremos que aconteça nesta, passa por aí. Não podemos pensar que as únicas obrigações do Estado dizem respeito ao défice…

De quais está a falar?


Dos compromissos constitucionais, de pensões, da necessidade para as pessoas e para a economia de haver previsibilidade, de não estarmos permanentemente na incerteza de que pode mudar tudo num mês, de que se vai ter mais cortes. Isso é importante e marca uma mudança de estratégia.

Tendo em conta a radicalização atual, o PS põe de parte negociar no futuro com PSD e CDS?

O PS é o partido moderado de que o país precisa neste momento. Esta direção do PS, desde que o secretário-geral é António Costa, começou por dizer uma coisa muito simples, mas que aparentemente é muito difícil de perceber para muitas forças políticas: Portugal precisa de se focar em grandes convergências de fundo, a chamada agenda para a década, que diz que não podemos estar a mudar de políticas a cada quatro anos. Não conseguimos fazer nada de profundamente relevante se, em áreas como a ciência, educação e inovação, estivermos sempre a mudar as nossas políticas. Porque é preciso continuidade e, para haver continuidade, é preciso que os partidos de direita e de esquerda e os parceiros sociais sejam capazes de se focar em convergências de fundo de longa duração. As divergências que podemos ter só fazem sentido em termos de contribuição para o desenvolvimento do país se tiverem como pano de fundo convergências mais fundamentais. Esta forma crispada, esta forma radical, agressiva de alimentar o debate é contrária a isso e nós batemo-nos contra isso.

Marco António Costa disse que o PS fez uma escolha e isso fechou por completo a possibilidade de votar qualquer coisa que venha do governo de esquerda. Isto fecha porta por completo a negociações quer com PSD e CDS?

Um partido que é responsável não anuncia uma posição de bota-abaixo sistemático, de ‘connosco não contem’. Tenho dificuldade de perceber isso em democracia. E mais. Francamente, custa-me a compreender isso associado a um certo tipo de discurso que se acantonou no espetro político à direita, onde se fala de golpe de Estado, de ilegitimidade, de usurpação, de falta de respeito pelos resultados eleitorais, onde se fala disto tudo para falar de negociações dentro do Parlamento, onde se usam estes termos para falar de conversações entre partidos eleitos democraticamente, deputados e grupos parlamentares eleitos democraticamente que estão a responder à necessidade de compromisso que o Presidente da República enunciou. Estes partidos toleram no seu espaço político um discurso agressivo, radical, em que parece que se quer mobilizar a rua para desautorizar o Parlamento eleito democraticamente – e isso preocupa-me.

A opinião de Francisco Assis tem fragilizado este caminho de António Costa?

Sempre entendi e continuo a entender o PS como uma grande casa plural. Não é agora, por estar na direção, que vou mudar de opinião. Nunca me verá a fazer uma coisa que se fez anteriormente, que foi usar o lugar de membro da direção do partido, ou usar as escadarias do Rato, para chamar desleais ou traidores àqueles que discordavam. Posso discordar imenso de um camarada meu, mas nunca lhe chamarei desleal nem traidor por ter opinião diferente das minhas. Tenho de lembrar que a Comissão Política, sem votos contra e com duas abstenções, deu mandato ao secretário-geral para prosseguir as negociações e concluir um acordo com o BE, PCP, e PEV, para concluir um acordo de base para a governação. Não há aqui ninguém que tenha açambarcado a construção da linha política do partido. O partido continua a ter órgãos, nunca deixou de os reunir.

Dito isto, tenho pena de verificar que por vezes há alguma coincidência entre alguns argumentos de militantes do PS e de argumentos da direita. Percebo mal que veja a direita replicar argumentos que surgem de dentro do PS ou a dar ideias a camaradas meus para argumentarem.

Há uma pergunta que tem de ser feita - e sem lhe responder temos uma análise incompleta da situação: com que cara íamos nós apoiar o governo da direita, fazendo o contrário do que dissemos em campanha, que foi assegurar repetidamente que não iríamos suportar um governo da direita e que queríamos ser alternativa?

Assis defende um apoio ao governo PSD/CDS…

Francisco Assis, que conheço há muitos anos, é um político brilhante, pensador fantástico, às vezes entusiasma-se com a sua própria retórica, o que é normal. A lógica do brilho intelectual também é entusiasmarmo-nos com a nossa própria argumentação. Chama a atenção para pontos importantes, para o posicionamento do PS na sociedade portuguesa. É importante. Eu concordo que em todas as circunstâncias nós temos que preservar a autonomia do PS. Não somos nem a esquerda da direita nem a direita da esquerda.

Os três partidos, PS, PCP e BE, ganham com este acordo?

Com variações eleitorais, todos os partidos subiram e desceram mais ou menos ao longo do tempo, mas o sistema político português tem sido bastante estável. E o PS corresponde a um setor do eleitorado, diferente daqueles que responde a conduta tradicional do PCP e do BE. O país pode ganhar com essa solução. Se o país ganhar, ganharemos todos. Tenho a esperança de daqui a quatro anos já não haja ninguém que diga que isto é um golpe de Estado, que já não haja ninguém que diga que este governo era ilegítimo.

Também tem esperança de que possam ir os três coligados?

Não me parece. Acho que o PS tem a sua identidade. O PCP é um partido com muitas décadas, não vai ser consumido por nenhum outro partido; o BE é mais jovem, mas é um partido que tem sabido colocar algumas questões novas na sociedade portuguesa. Todos temos os nossos papéis. Não tenho a conceção hegemónica da vida política. Não aspiro a que o PS tenha 80% do eleitorado. Acho que isso até seria mau. O que é preciso é que haja partidos diferentes.

Os órgãos do PS reúnem-se este fim de semana. São suficientes para ratificar um acordo ou é preciso um referendo?

Os órgãos do partido estão em plenitude das suas funções. São expressão da pluralidade do partido e estão em condições de tomarem todas as decisões que devam tomar. E penso até que são a forma mais apropriada de discutir esse assunto. Não estamos só a discutir se o PS deve ou não aproximar-se deste ou daquele partido. Estamos a discutir qual a solução política em concreto, o que vamos acordar, não é ‘façam lá um acordo qualquer’. Esta análise e decisão faz-se dentro de um órgão de deliberação coletiva. Um referendo é um sim ou não, mas um sim ou não a quê? Estamos a falar de coisas muito mais profundas e sérias. Quando estamos a falar de um acordo que existe, de um texto que vai ter de ser analisado na sua profundidade, parece-me melhor que haja um órgão de decisão coletiva do partido que o analise, em lugar de o pôr ao voto sim ou não da generalidade dos militantes.


(original aqui)