24.7.14

O messias, a agenda da década e a agenda da espuma dos dias (ou "Costa e os imediatistas").




- I -

António Costa, a propósito da Convenção Nacional “Mobilizar Portugal” que se realiza este sábado em Aveiro, falou ontem com a imprensa sobre a Agenda para a Década. Explicou que o processo de “Mobilizar Portugal” tem várias etapas, vários níveis, sublinhando que não podemos esgotar todas as forças do País a pensar no imediato. E declarou que a “Agenda da Década” é uma peça fundamental do seu projecto para “Mobilizar Portugal”, já que ela deve permitir uma larga congregação de esforços em objectivos estratégicos de longo prazo que não estejam sempre a mudar quando muda o governo – ou, pior, quando muda o ministro, mesmo que seja no mesmo governo.
Reacção, bastante partilhada em vários meios, quer por jornalistas, quer por comentadores de vários feitios: António Costa (ou a Convenção) não quer falar dos temas prementes, como a dívida ou o défice, e quer empatar-nos falando de coisas distantes no tempo. O subentendido, que alguns explicitaram, é: António Costa está a querer enganar-nos, evitando falar dos temas difíceis, talvez por não ter nada para dizer. Merece reflexão esta reacção à proposta de António Costa. E merece reflexão porque estes “comentários” fazem parte do “estado a que isto chegou”, como teria dito Salgueiro Maia. O estado a que chegou o debate público nacional.


- II -

Quem duvida de que “o programa de recuperação do País não se pode esgotar na agenda de uma legislatura”?
Quem duvida de que precisamos de uma agenda que nos permita “olhar em frente e lançar as bases para um País mais próspero, mais eficiente, mais inovador, mais sustentável, mais coeso e solidário, mais culto, mais influente na União Europeia e no Mundo”?
Quem duvida de que “uma ambição desta dimensão precisa de mais tempo, de uma continuidade nas políticas, de objetivos claros e de linhas de rumo bem definidas” ?
Quem duvida de que “uma ambição desta dimensão” precisa de “uma Agenda estratégica para uma década, que mobilize fortemente o conjunto da sociedade em torno de objetivos nacionais comuns”?
Creio que ninguém, que tenha reflectido sobre o Portugal das últimas décadas, duvidará da necessidade desta “Agenda para a próxima Década” e da necessidade de um método político que comece pela estratégia, em vez de começar pelo imediato e pelo curto prazo.
Um exemplo simples. Qualquer análise ao problema das qualificações dos portugueses, e ao seu impacto nas nossas debilidades como economia, mostra que o País precisa de um sistema de formação de adultos, numa lógica de aprendizagem ao longo da vida. Como o problema das qualificações só pode ser resolvido no longo prazo, não faz sentido que cada governo que chega vire de pernas para o ar o que fez o governo anterior, só por uma questão de luta política imediata. Sem prejuízo de que qualquer linha de acção pode sempre sofrer correcções, mas as correcções podem ser incrementais, não têm de querer começar tudo de novo de cada vez. Em vez disso, para continuar no exemplo, usaram-se métodos terroristas para lidar com o programa Novas Oportunidades, confundindo destruição (que se paga cara) com melhorias mais ou menos pontuais (que são sempre necessárias em qualquer obra humana).


- III -

Este problema – vistas curtas do funcionamento do nosso sistema político – está identificado. O problema adicional é que ninguém conseguiu, até ao momento, mudar esta realidade no sentido desejado: dar profundidade estratégica à governação do País. A ideia de António Costa, com a Agenda da Década, é atacar nessa “questão de método” fundamental.
Algumas pessoas, que julgam que o trabalho dos políticos é responder às expectativas dos media, tiveram a atitude preguiçosa de nem tentarem perceber o que estava em causa no que disse AC.
Um dos aspectos mais curiosos dessa vaga reactiva tem a ver com uma afirmação de AC sobre a dívida, lembrando que a dívida não é a causa dos nossos problemas estruturais, mas, antes, foram os nossos problemas estruturais (ligados à produtividade e à nossa inserção no comércio internacional, por exemplo) que foram a causa do problema da dívida. Parece que algumas pessoas acharam bizarra essa declaração. Francamente, o que é bizarro é que ainda haja jornalistas e opinadores que ainda não tenham percebido quão fundamental é perceber precisamente aquilo que disse AC. Seria uma enorme tragédia que se resolvesse o problema da dívida só para, depois, recomeçar a esquecer quais são os estrangulamentos fundamentais que adiam sempre a nossa prosperidade económica e social. Seria uma enorme tragédia que, depois de tudo o que passámos, voltasse a acontecer no futuro que uma crise política interna gerada por mero egoísmo partidário, criada pela vontade de “ir ao pote” (expressão de PPC), nos fragilizasse num contexto de enorme exposição internacional. Seria gravíssimo que o País não se equipasse politicamente para ser capaz de se defender melhor, mais solidariamente, mais organizadamente, na resposta às dificuldades que enfrentamos. É preciso resolver o problema da dívida e do défice – mas é preciso saber para quê. Para mobilizar os portugueses para um percurso, entusiasmante mas exigente, não basta mandar marchar: é preciso saber para onde vamos. Temos de saber definir as metas. E, para isso, a questão fundamental é, exactamente, que País queremos ser daqui a dez anos.


- IV -

Tal como António Costa a apresentou, a “Agenda da Década” tem outra virtualidade política: combinar mudança com estabilidade no quadro de uma democracia madura. Vejamos.
Indiscutivelmente, depois da forma ideológica e insensível como a actual maioria lidou com a crise, precisamos de mudar de políticas, de métodos, de protagonistas. O PSD e o CDS precisam de uma licença sabática para se curarem de uma experiência governativa em que ignoraram a realidade dos portugueses e começaram a pensar, como “explicava” o líder parlamentar do PSD, que é possível o País estar melhor enquanto os portugueses estão pior. E o País também precisa dessa licença sabática, porque estamos cansados desta governação tanto mais agressiva quanto mais desnorteada. Precisamos de uma viragem. Nesse quadro, seria desejável que outros, à esquerda, deixassem de se focar exclusivamente na contestação e começassem a pensar no que poderiam ganhar, para os ideais que os guiam quando pensam no País, se aceitassem pensar em termos de desafios concretos da governação. Não é bom para a democracia que haja uma fatia do eleitorado à esquerda que, há décadas de democracia constitucional, nunca tenha sido envolvida numa solução para governar o País. Eu espero que essa mudança ocorra e tenha consequências no próximo ciclo político (e digo isto há muito tempo).
Contudo, ninguém pensa que a direita vai morrer para a democracia portuguesa. Parece que é tabu, hoje, ser de esquerda e assumir que o PSD não vai ser confinado a um campo de concentração nas Berlengas. A direita precisa da tal licença sabática (nós precisamos de colocar a direita em licença sabática), mas o PSD e o CDS vão voltar a ser alternativa de poder – e ainda bem, porque é disso que vive a democracia. E, portanto, os partidos da direita devem, como outros agentes políticos, e as mais diversas forças sociais, entrar num compromisso estratégico para a década. As reais escolhas, as reais divergências, fazem sentido sobre o pano de fundo de convergências essenciais que devem ser largamente partilhadas pela esmagadora maioria dos portugueses. Para que as divergências façam sentido, e os portugueses tenham alternativas e possam escolher entre elas, é útil que se desenhe primeiro (ou ao mesmo tempo) o pano de fundo das convergências. E, como é claro, no horizonte de uma década, essa convergência não pode ser só de esquerda, nem ser só de direita.
Ora, precisamente, para ser possível essa combinação produtiva entre prazo de uma legislatura e prazo mais longo, estratégico, precisamos da Agenda para a próxima Década proposta por António Costa. Aliás, o que António Costa propõe é um quadro para começar a construir essa Agenda, dizendo que esse processo continuará até, mesmo depois de ser governo, na Concertação Social, para continuar essa construção e lhe dar enraizamento na sociedade organizada, não sendo apenas coisas de partidos.


- V -

Parte essencial da abordagem de António Costa, em todos os “trabalhos” por onde passou, é questão de método. O método de um debate político a vários planos, com diferentes horizontes temporais, onde o curto prazo não obscurece o longo prazo, onde a divergência de hoje não impede a convergência de amanhã, é, a meu ver, parte essencial da proposta que António Costa está a apresentar ao País. É que “Mobilizar Portugal”, como ele se propõe, não é coisa que se faça em modo tecnocrático. “Mobilizar Portugal” não é só conteúdo das políticas, é também o modo de fazer as coisas: respeitas as pessoas, respeitar as instituições, respeitar as diferenças, esquecer o consenso oco e artificial e colocar em marcha a negociação séria, o compromisso nobre e que não apaga as diferenças. E tudo isso só é possível se soubermos levantar os olhos e olhar para a frente. Pelo menos, para o horizonte de uma década.
Se não percebermos isto, não percebemos nada do que António Costa está a propor ao País. O gosto pelos chavões, por títulos que entram facilmente no ouvido, causa estragos notáveis em certos opinadores mais cataventos. Primeiro, António Costa era acusado de aparecer como um “messias”, um “homem providencial” que apostava apenas na aura pessoal para efeitos políticos. Agora, como já se vê que a sua acção política é tudo o contrário de qualquer messianismo ou populismo, quando mostra a seriedade da sua abordagem, não prometendo milagres nem facilidades, mas oferecendo uma via democrática para sair da crise – Mobilizar Portugal –, agora lamentam-se porque o candidato não avança com soluções mágicas, rápidas e de efeito garantido. Eu continuo a preferir a Agenda da Década à “agenda da espuma dos dias”. E acho que a única maneira de conseguir, nesta política que temos, forçar este debate, é não começar pelos temas evidentes. Confio que António Costa não deixará de ir a todos os temas que os jornalistas queriam ouvir hoje – ou ontem. Mas segundo o seu próprio método.
Fico contente por isso.
Já vos disse que o método é, precisamente, uma das razões principais para eu apoiar António Costa?

22.7.14

Uma Agenda para a Próxima Década.


Participe. Clique na imagem para chegar sítio participativo onde pode dar a sua contribuição.

http://www.mobilizarportugal.pt/agenda/

21.7.14

à esquerda da indiferença.



"À esquerda da indiferença" foi o mote da "versão jovem" da Convenção da Esquerda Democrática, realizada em 1986, no quadro da profunda renovação programática realizada pelo Partido Socialista quando era secretário-geral Vítor Constâncio.

Este evento, que teve lugar numa tenda de circo montada na Praça de Espanha, contou com António Costa como um dos seus principais dinamizadores. Eu participava também da comissão organizadora, onde se juntava - em grande parte mobilizada por António Costa - muita gente que não encaixava no perfil do tradicional militante das juventudes partidárias. Por exemplo, a festa de encerramento contou com a animação dos Ena Pá 2000, que apresentaram uma versão "heterodoxa" da versão socialista da Internacional. Vários dos participantes na realização eram artistas do grupo dos Homeostéticos, a quem já alguém chamou "os artistas cáusticos dos anos 1980". O painel que se vê atrás da mesa da sessão, na foto, foi pintado por Pedro Proença ou por Pedro Portugal (ou por ambos, não estou certo), que integravam precisamente esse "grupo".

Por uma questão de memória, esta foto é significativa. Lembra, aos que sabem mas já esqueceram, que António Costa sempre trabalhou para a abertura do espaço do socialismo democrático em Portugal, abertura praticada, não apenas anunciada.

Na foto, António Costa está no uso da palavra. A seu lado está Joana Vicente. Eu estou na mesa, ao centro. Ao meu lado direito (à esquerda de quem olha) está o pintor Pedro Portugal. Do outro lado está o Rui (cujo apelido não me lembro).

19.7.14

metade de nós... estamos a mais ?




Avaliação da FCT definia à partida que metade dos centros de investigação ficaria pelo caminho.


Leio no Público (recortes, sublinhados meus):

A avaliação em curso pela FCT definia mesmo antes de arrancar que cerca de metade dos 322 centros de investigação portugueses seria afastada da fase seguinte do processo, onde vão estar em jogo a maior parte dos 50 milhões de euros anuais que os laboratórios vão ter para despesas correntes entre 2015 e 2020. É o que está escrito no contrato que a Fundação para a Ciência e Tecnologia (FCT) estabeleceu com a European Science Foundation (ESF), à qual delegou a organização da avaliação dos laboratórios, e que foi tornado público esta sexta-feira à tarde pela fundação portuguesa que financia a ciência.

Alguns avaliadores externos anónimos tinham deixado transparecer nos seus relatórios de avaliação, e que foram entregues aos centros, que receberam indicações para baixar certas notas por causa da existência de quotas. Esta acusação foi refutada pelo presidente da FCT, Miguel Seabra, na entrevista que deu ao PÚBLICO na quarta-feira (publicada agora nestas páginas), considerando-o “totalmente descabida”.
Esta sexta-feira, após a divulgação dos contratos, o PÚBLICO questionou novamente a FCT sobre a definição prévia de uma quota de sucesso. A fundação, através da sua porta-voz Ana Godinho, justifica que aquele valor dos 163 centros era apenas “uma estimativa” feita com base na avaliação de 2007: “[Nessa altura] cerca de 50% das unidades teve Mau, Razoável ou Bom.”

Gato escondido com rabo de fora?

Carlos Fiolhais [um dos que levaram Crato ao colo para o governo]: “Isto significa encerrar centros de investigação produtivos, apenas porque não cabem nas quotas arbitrariamente definidas. Significa uma ciência mais pequena, mais provinciana, com o poder mais concentrado, mais semelhante à ciência do Estado Novo. A investigação em Portugal ficará restrita a um clube mais reduzido.”

Arsélio Pato de Carvalho, fundador no final dos anos 1980 da instituição que hoje é o Centro de Neurociências e Biologia Celular de Coimbra: “O que se está atentar fazer é apoiar exclusivamente unidades de excelência. Sempre fui pela excelência, mas não podemos ter só excelência. “Imagine um cientista excelente, mas tudo à sua volta está seco. Tem um oásis num deserto”.

Espera-se pelo dia em que decidam que só metade do país vale a pena. E comecem a atirar a outra metade para a água. De preferêcnia começando pelos que não sabem nadar, porque a eficiência deve prezar-se acima de tudo.

18.7.14

F.C.T. passa a chamar-se A.C.T. (Agora a física.)



O Ministro Crato e a sua máquina de lagartas continua a missão de destruir a ciência em Portugal.

Passo a citar:

O LIBPHys, coordenado por Joaquim Santos, um dos físicos portugueses com mais publicações (tem trabalhado em Física Experimental com um Nobel alemão, tendo os seus trabalhos sobre o raio do protão chegado recentemente à capa da Nature) é o resultado da fusão do Centro de Física Atómica de Lisboa (Universidade de Lisboa e Universidade Nova de Lisboa) e do Centro de Instrumentação da Universidade de Coimbra. Dois centros pequenos e bem classificados juntaram-se para formar um maior, de acordo com as recomendações da FCT. A ele juntaram-se quase todos os restantes membros doutorados do Departamento de Física da UNL e os seis membros principais da UICOB - Unidade de Investigação em Ciências Orais e Biomédicas (da Faculdade de Medicina Dentária da Universidade de Lisboa).

Terão tido, portanto, uma excelente avaliação, certo?
Certo.
Volto a citar:

O primeiro painel da ESF - European Science Foundation deu as notas de 18, 16 e 20 (no total de 20 valores). A média é de 18 valores. Dos três especialistas anónimos, um deles deu o máximo possível, um caso muito raro.

História feliz, portanto. Justiça.
Não !

Pois não serviu para nada. O painel, onde a Física estava subrepresentada (estava não só pouco como mal representada) anulou aquelas notas e impediu aquele centro excelente ou talvez mesmo excepcional de passar à segunda fase. Deu-lhe "Bom", o que significa Péssimo na escala da FCT, com uma esmola de 20.000 euros (que não dá nem para apurar o raio do protão, no consórcio internacional, nem para participar nos outros projectos internacionais em que os investigadores estão envolvidos). O painel ignorou quase completamente o valor e sucesso do centro e menosprezou a sua evidente visibilidade internacional. Há erros grosseiros no que respeita à contagem do número de publicações: deve ter sido feita à pressa, pois o erro é de um factor de dois (2).

A história está contada no De Rerum Natura: Mais um caso escandaloso na Física.

A Fundação para a Ciência e a Tecnologia (FCT) deveria passar a chamar-se Afundação da Ciência e da Tecnologia (ACT).


17.7.14

os fundos europeus e a propaganda.



Escrevem os jornais que "o Governo português e a Comissão Europeia fecharam na tarde desta quarta-feira, em Bruxelas, o acordo de parceria sobre o novo quadro comunitário de apoio que vai vigorar até 2020, sucedendo ao actual Quadro de Referência Estratégica Nacional (QREN)". (O exemplo é do Público.)

As informações de que disponho (ainda sobrevivem alguns contactos do tempo em que trabalhei na máquina comunitária) é que isso é pura conversa política. A negociação não está fechada, está a decorrer (mais do que a correr); há ainda elementos que o governo português tem de transmitir à Comissão Europeia antes de que o acordo esteja fechado (antes de que a Comissão dê o seu OK).

Claro que, quando os interlocutores são políticos portugueses da mesma "família política" (neste caso, a família laranja) sentados em diferentes cadeiras rotativas, tanto do lado português como do lado da Comissão, é possível criar estas conversas para dar títulos de jornal convenientes. Mas, apesar do empenho dos sequazes de Durão Barroso para fazer à função pública europeia o que fizeram à função pública portuguesa, ainda não é fácil meter os serviços da Comissão a marchar à voz do ex-primeiro-ministro de Portugal mais conhecido por estar sempre num emprego à procura do emprego seguinte. Os procedimentos são os procedimentos. E não há acordo antes de estar tudo esclarecido. Neste caso, se o governo português fizer o seu trabalho de casa, talvez o processo esteja fechado lá para Setembro.

Francamente, não percebo porque é que eu posso fazer uns telefonemas para Bruxelas a fazer umas perguntas de verificação, a mim que ninguém me paga para isso - e os jornalistas se limitam a ouvir e a reproduzir aquilo que o governo quer que se diga num dado momento, por conveniência de calendário.

11.7.14

uma descida aos infernos.



O Teatro La Monnaie, de Bruxelas, oferece regularmente uma prenda aos amantes de teatro com música: terminada uma série de apresentações de uma dada encenação operática, ela pode ser vista em linha gratuitamente durante alguns dias.

Por estes dias pode ser visto um espectáculo que não devem perder. Hector Berlioz fez uma versão francesa do "Orfeu e Eurídice" de Christoph W. Gluck e, agora, Romeo Castellucci dá-lhe uma encenação que nos faz descer aos infernos de mão dada com os protagonistas clássicos.
É verdade que Stéphanie d'Oustrac faz um Orfeu emocionante, mas esta obra espantar-vos-á, mais do que pela beleza, pela crueza da descida aos infernos que nos propõe.

Liguem-se à internet, usem a ligação que vos deixo, mobilizem o melhor ecrã que esteja ao vosso alcance, escolham as legendas em francês ou em flamengo (embora as palavras cantadas sejam em francês, as legendas em ópera ajudam sempre), tomem atenção a cada aspecto da história que vos vai ser desvendada - e reservem 80 minutos para descer aos infernos no meio de grande beleza musical e humana.

Esta transmissão está disponível só até 29 de Julho. Vão aqui: Orphée et Eurydice.


10.7.14

os debates sobre a reestruturação da dívida como sinais da qualidade da democracia.




Em Março, o "Manifesto dos 74" reunia personalidades dos mais variados quadrantes ideológicos numa chamada de atenção para a necessidade de pensar numa eventual reestruturação da dívida pública portuguesa. Na minha leitura, o Manifesto dos 74 até era bastante cauteloso, na medida em que se colocava no perímetro do enquadramento institucional europeu e evitava abrir as portas a movimentos precipitados e/ou unilaterais da parte de Portugal.
Nessa altura, nem o governo PSD/CDS nem o PS entenderam dar grande crédito à iniciativa. As vozes mais governamentalistas usaram, em larga medida, tiros de distracção, do tipo "agora que estamos quase a sair do programa de ajustamento, devemos estar calados com estes temas que podem atrair a má atenção dos mercados". Não se notou perturbação nenhuma dos mercados (os mesmos que tinham reagido muito mal à crise irrevogável do actual vice-PM), mas o "argumento" serviu a habitual cortina de fumo dos que julgam poder evitar que se pense nos problemas. O PS, por seu lado, hesitou entre desprezar a iniciativa, como se ela não contivesse nenhum elemento interessante, ou, de forma arrogante, considerar-se dono da ideia, ao ponto de um dirigente muito próximo do SG ter mandado (publicamente) o recado ao subscritores de que podiam juntar-se ao partido.
As reacções das direcções partidárias do "arco da governação" foram, todas, demonstrativas de uma tara nacional: ninguém por aqueles lados foi capaz de perceber a importância de se ter conseguido juntar gente com opiniões políticas tão diferentes a pensar publicamente num assunto tão importante, convergindo num diagnóstico. É impossível mudar qualquer coisa a sério neste país sem eliminar esse vício de deitar fora qualquer oportunidade de pensar em conjunto.

Agora, um grupo de quatro economistas políticos, incluindo Francisco Louçã, líder emérito do Bloco, e Pedro Nuno Santos, dirigente do PS, apresentou uma proposta mais detalhada para uma possível reestruturação da dívida. Não sei que sorte terá o debate, mas algumas coisas parecem-me já certas.
Primeiro, como esta proposta é bastante concreta, vai ser fácil criticá-la. E ainda bem: defender propostas, avaliar propostas, criticar propostas, essa é a essência do debate democrático que seja capaz de alguma racionalidade.
Segundo, como esta proposta é bastante extensa e detalhada (umas dezenas de páginas densas), vai sempre aparecer quem atire pedras sem ter lido o documento, com a pressa da má política da conversa popularucha, como já aconteceu com um dirigente do PS que está sempre pronto para atirar pedradas a qualquer militante socialista que lhe pareça andar a mexer-se sem autorização do amado líder.
Terceiro, também do lado dos autores vai ceder-se à tentação de tentar atirar para debaixo do tapete alguns temas muitíssimo delicados, como a parte em que os pequenos aforradores vão também ser "reestruturados". Já li um dos autores dar sobre isso uma resposta claramente falaciosa, tendente a descansar os ditos pequenos aforradores, quando nem sequer há acordo entre os quatro autores sobre como lidar com esse assunto (aforradores com títulos até 100.000 euros). É importante que os debates não se façam escondendo as cartas - e os autores do estudo devem ser os primeiros a evitar cair nessa tentação.

Pelo meu lado, não tendo conhecimentos que me permitam produzir opinião própria sobre o assunto, este processo interessa-me como cidadão. Aplaudo aqueles que se chegam à frente com propostas, tão claras e detalhadas quanto possível, porque isto não é assunto para decisões secretas: os cidadãos precisam saber o que significa cada uma das perspectivas. Aplaudo aqueles que critiquem de forma clara e precisa essas propostas, porque saber fazer as boas perguntas é essencial. E abomino os pequenos truques retóricos que poluem estes debates, porque, em matérias que podem mexer tanto com a nossa vida, toda a demagogia é criminosa.

Este é um daqueles casos em que se esperaria mais sensatez da parte das instituições políticas formais. Provavelmente, não seria adequado que fosse o próprio governo a andar por aí a reivindicar publicamente uma reestruturação da dívida, já que isso poderia fazer com que o país pagasse um custo financeiro e político indesejável, independentemente do que viesse a acontecer a seguir. Essas coisas costumam correr melhor quando outros propõem aquilo que nós queremos, sem termos de ser nós a pagar o preço do pedido. Aqui, o contexto europeu é inescapável. Provavelmente, um partido de oposição, pelo menos se aspirar a ser governo, não deveria comprometer-se com soluções concretas, se esse compromisso limitar a sua margem de manobra negocial quando tiver de pegar no assunto em nome da República Portuguesa. Não obstante, tanto o governo como qualquer oposição responsável deveriam valorizar o surgimento de plataformas de convergência sobre o assunto, deveriam aplaudir o surgimento de propostas concretas e o seu debate aprofundado - e deveriam apelar aos cidadãos para se informarem, questionarem, debaterem. O que não podemos é ignorar o problema: com a dívida que temos, se nos limitarmos a seguir o caminho do "cumprimento" e do "castigo", Portugal vai penar décadas de empobrecimento, a menos que nos saia na rifa um desempenho económico tão maravilhoso que nunca aconteceu antes em lugar nenhum do mundo real em que vivemos.
E de pensamento mágico estamos fartos.

9.7.14

o exterminador implacável.


O artigo do físico Carlos Fiolhais (O pior do Crato), hoje no Público, tem três aspectos interessantes.

O primeiro é a estatística geral da exterminação:

Na semana passada, Crato, não contente com os cortes drásticos que efectuou nas bolsas de ciência, obrigando numerosos jovens a emigrar, resolveu liquidar de vez a ciência em Portugal. De um universo de 322 unidades de investigação, condenou à morte a curto prazo 154, cerca de metade. Destas, 83 tiveram Bom, num processo de avaliação que, na parte em que não é obscuro, está empestado de erros e omissões, e têm a morte anunciada. Terão um financiamento ridículo e ficarão impossibilitadas de obter recursos humanos ou equipamentos. Bom, numa escala que contempla ainda Muito Bom, Excelente e Excepcional, é péssimo. E 71 tiveram Razoável ou Insuficiente, o que significa a execução imediata. Foi tudo a eito: Matemática, Física, Engenharia, Sociologia, Filosofia, etc. As outras unidades (168) aguardam o seu destino: estão num limbo e poderão também ser condenadas. O número de investigadores já sentenciados à morte é de 5187 num total de 15.444. Entre eles estão alguns dos melhores cientistas portugueses, nomeadamente Nuno Peres, do Centro de Física do Porto e Minho, e Mário Figueiredo, do Instituto de Telecomunicações, que acabam de ser distinguidos internacionalmente como as mentes mais brilhantes.

O segundo é o discurso do método: como é que se procede à grande exterminação? Como é que se arranjou quem, em nome da ciência, aplicasse esta máquina de ceifar?
O ministro diz – quando diz alguma coisa, porque ficou embatucado quando uma jornalista lhe solicitou uma explicação – que não é nada com ele. Lava as mãos como Pilatos. E remete para os seus subalternos, em particular para a Fundação para a Ciência e Tecnologia – FCT. Esta já foi em tempos uma instituição em que os cientistas confiavam. Mas agora resolveu destruir um sistema de avaliação internacional, exigente e cuidadoso, que estava montado e tinha provas dadas, e experimentar outro, que se está a revelar frágil e tosco. Contratou, não se sabe como nem a que preço, a European Science Foundation – ESF, que está a desfazer a sua actividade em favor de uma nova organização, a Science Europe, e pediu-lhe uma avaliação à distância (isto é, sem ver nem falar com ninguém), com base apenas em papéis, entre os quais um estudo da produção científica. Os resultados são calamitosos para a reputação da ESF e, por salpico, para a FCT e para o ministro. Por um lado, há muitos erros grosseiros, que só por si deviam ser suficientes para denunciar o contrato. Mas, por outro, mesmo desculpando o indesculpável, em muitas disciplinas não bate a bota com a perdigota: por muito criticável que seja o método da folha Excel, esperar-se-ia alguma correlação entre a produtividade científica e a nota dada. Não há, porém, quase nenhuma. O ministro podia ter poupado o erário público se, em vez de contratar avaliadores da ESF, tivesse comprado uma roleta. Fui ver quem eram os avaliadores da minha área. Verifiquei com espanto que esta nem sequer existia. A Física estava amalgamada com a Química e com a Matemática, sendo todas elas avaliadas por um painel constituído por um engenheiro, três físicos, quatro químicos e três matemáticos (sem nenhuma mulher, isto é, sem ninguém pragmático). Este painel é muito pior do que os três, um por disciplina, da última avaliação, que envolveu 15 matemáticos, seis físicos e sete químicos. Um dos ramos maiores da Física – a Física da Matéria Condensada – foi agora praticamente encerrado em Portugal por um painel que só tinha um físico desse ramo. A matéria passou de condensada a condenada! Dantes os avaliadores eram conhecidos e respeitados, hoje são desconhecidos.

O terceiro aspecto interessante do artigo de Fiolhais é exterior ao próprio artigo, embora mencionado no texto: o autor confessa que foi um dos que levaram Crato ao colo e que estava motivado pela ideia de implosão do Ministério de Educação. Não vejo por que se queixa agora: Crato prometeu implosão, Crato está a implodir tudo o que tem à mão, por qual razão se queixam os que apoiaram a base ideológica da sua acção? A ideologia da implosão de tudo o que vinha dando frutos, por via da intervenção do Estado, deu nisto que estamos a ver. Criticar os frutos e dizer que a árvore é boa - dizer que a implosão era uma boa ideia - merecia uma explicação. Mas ninguém neste país se sente responsável por ter alimentado a fogueira com as suas ideologias incendiárias.


7.7.14

se investigas o que não interessa à direita, tiramos-te o financiamento.


É tão simples quanto isto: a avaliação que a Fundação para a Ciência e a Tecnologia está a fazer dos centros de investigação não é uma avaliação científica. É, em grande medida, uma operação política. Por várias razões, das quais hoje apontamos apenas uma: estão a penalizar centros de investigação porque investigam questões que não interessam à direita ideológica mais agressiva. Exemplo chocante: o CIES-ISCTE, um dos centros mais relevantes de investigação em sociologia, arrisca-se a deixar de ter financiamento por estudar as desigualdades sociais e as migrações - e porque os avaliadores angariados para não terem vergonha de fazer tal "avaliação" têm o descaramento de afirmar que já não há nada para estudar nesse domínio.

Se pensa que isto é apenas assunto dos investigadores, lembre-se daquele poema (erradamente atribuído a Brecht), que termina assim: «Agora levaram-me a mim / E quando percebi, / Já era tarde.» Tem por título "A Indiferença" e é sobre os perigos da mesma.

matar um mito de vez em quando (2).


Cito:
"A Alemanha é, do ponto de vista das leis, muito mais protecionista da força de trabalho, porque a empresa é entendida como uma entidade social, até comunitária, que pertence não só aos donos como aos trabalhadores. Há o entendimento social de que os trabalhadores são tão importantes como os patrões. O poder de comissões de trabalhadores e de sindicatos, de facto e no espírito da lei, é muito maior do que em Portugal. Os direitos legais protegem muito mais. Se eu quiser pôr um trabalhador a trabalhar num feriado ou ao domingo, tenho de justificar. Um funcionário público é que decide, com base na lei alemã, se as empresas podem ou não trabalhar ao domingo."

Além disso, garante, "as pessoas têm muito mais garantias sociais e muito mais apoio. O subsídio de desemprego é mais curto, mas a seguir chama-se outra coisa, passa a outros subsídios. O Estado paga a renda de casa, mais um rendimento por cada membro do agregado familiar... A Alemanha tem muito mais proteção laboral e social do que Portugal." Sorri. "E na Baviera, onde estou (vivo em Munique), temos 30 dias de férias, fora os feriados: é a zona com mais feriados na Europa."

Artigo completo aqui.

6.7.14

poesia e política.


Não acredito na poesia fora da cidade. Julgo que outras vozes poéticas também não julgavam tal exílio concebível. Veja-se o seguinte poema de Sophia:


O Rei de Ítaca


A civilização em que estamos é tão errada que
Nela o pensamento se desligou da mão

Ulisses rei de Ítaca carpinteirou seu barco
E gabava-se também de saber conduzir
Num campo a direito o sulco do arado


Sophia de Mello Breyner Andresen, in O Nome das coisas (1977)

Isso terei aprendido com alguns dos grandes. Aprendido à minha maneira, claro, que pode ser fiel ou não. No meu livro de poemas Monstros Antigos, por sempre me entender como parte da comunidade política, isso transparece. Deixo-vos um dos poemas em que toco mais directamente essa questão:



Contudo, que a minha poesia está, como eu, sempre dentro da cidade, é consubtancial a toda a minha escrita. Nuno Júdice, na apresentação do livro, explica, a meu ver bem, como é essa relação. Deixo, por isso, o pequeno vídeo onde o Prémio Rainha Sofia de Poesia Ibero-Americana 2013 resume tudo: "não é uma poesia política, crítica, de forma muito directa, mas..."



(Circunstância: Nuno Júdice apresenta "Monstros Antigos" {poesia} de Porfírio Silva, a 22 de Abril de 2014, no Centro Nacional de Cultura (Lisboa). Toda a crítica de Nuno Júdice aqui: http://youtu.be/ye8RlIBesD0 )

3.7.14

matar um mito de vez em quando.


Jeff Madrick escreveu para o The New York Review of Books. O Dinheiro Vivo publicou por cá. Vale a pena ler tudo, até ao fim sempre com a mesma atenção.

AFINAL O ESTADO É O MAIOR INOVADOR.

"Os grandes avanços da civilização", escreveu Milton Friedman em Capitalismo e Liberdade (1962), "na arquitetura ou na pintura, ciência ou literatura, indústria ou agricultura, nunca tiveram origem no governo". Não explicou onde é que inseria a arte patrocinada pelo Estado na Atenas de Péricles, nem os Médicis que, enquanto banqueiros dominantes e dirigentes florentinos, encomendaram e financiaram tanta da arte do Renascimento. Ou a corte espanhola, que nos deu Velázquez. Ou o Manhattan Project do governo norte-americano, que originou a produção da bomba atómica, ou os Institutos Nacionais de Saúde, cujas bolsas concedidas conduziram a muitas das mais importantes inovações farmacêuticas.

Talvez pudéssemos perdoar os comentários mal informados de Friedman como uma explosão de entusiasmo ideológico, se tantos economistas e executivos não aceitassem este mito como verdadeiro. Ouvimos repetidamente de quem não se esperaria que o governo é um obstáculo às inovações que produzem crescimento. Que devia sair do caminho. Lawrence Summers disse algo do género pouco depois do fim do seu mandato como ministro das Finanças de Clinton: "Há algo nesta época que atribui um valor preponderante aos incentivos, à descentralização, ao permitir que a pequena energia económica flua de baixo para cima, em vez de optar por uma abordagem mais direta, de cima para baixo. Mais recentemente, o economista Robert Gordon afirmou-se "extremamente cético em relação ao governo" como fonte de inovação. "Esse é o papel dos empreendedores. O governo não teve nada a ver com Bill Gates, Jobs, Zuckerberg."

Felizmente, um novo livro, The Entrepreneurial State, da economista da Universidade de Sussex Mariana Mazzucato, documenta enfaticamente o quanto essas afirmações estão erradas. A investigação vai muito além da história batida sobre como a internet foi desenvolvida no Departamento de Defesa dos Estados Unidos. Por exemplo, embora Steve Jobs tenha imaginado e concebido de maneira brilhante novos produtos, a pesquisa científica de base para o iPod, iPhone e iPad deveu-se a cientistas e engenheiros apoiados pelo governo, na Europa e na América. A tecnologia touch-screen baseou-se em pesquisas feitas em laboratórios financiados pelo governo nos anos de 1960 e 1970.

Gordon designou os Institutos Nacionais de Saúde um útil "apoio" governamental ao muito mais importante trabalho das farmacêuticas. Mas Mazzucato demonstra que estes Institutos foram responsáveis por 75% dos maiores avanços conhecidos, entre 1993 e 2004.

Marcia Angell, antiga editora do The New England Journal of Medicine, descobriu que as novas entidades moleculares que tinham prioridade como possivelmente conducentes a avanços significativos no tratamento médico eram sobretudo criadas pelo governo. Como refere em The Truth About the Drug Companies (2004), apenas três dos sete medicamentos de alta prioridade em 2002 tiveram origem em farmacêuticas: o Zelnorm foi desenvolvido pela Novartis para tratar a síndrome do intestino irritável, a Gilead Sciences criou o Hepsera para a hepatite B e o Eloxatin foi criado pela Sanofi-Synthélabo para o cancro do cólon. Isto está muito longe da afirmação de que é o sector privado que realiza quase todas as inovações.

A ascensão de Silicon Valley, o centro de alta-tecnologia americano em Palo Alto, Califórnia, é supostamente o exemplo por excelência de como as ideias empreendedoras tiveram sucesso sem a direção do governo. Como Summers descreve, as novas ideias económicas "nasceram das lições da experiência de sucesso da descentralização num local como Silicon Valley". De facto, foram os contratos militares para a investigação que deram o impulso inicial às empresas do Valley e a política de defesa nacional influenciou intensamente o seu desenvolvimento. Só 27 das 100 invenções mais importantes registadas pela R&D Magazine nos anos 2000 foram feitas por uma firma, em contraponto com as criadas só pelo governo ou por uma colaboração entre entidades financiadas pelo governo. Entre desenvolvimentos recentes dos laboratórios do governo encontra-se um programa de computador para acelerar significativamente a busca e processamento de dados, e o Babel, que traduz linguagens de programação.

Apesar de todos os aplausos dedicados ao capital de risco, diz Mazzucato, as empresas privadas muitas vezes só investem depois de as inovações terem percorrido um longo caminho sob a muito mais ousada pesquisa básica e paciente investimento de capital do Estado. Cada vez menos, a pesquisa básica é feita pelas empresas. Estas concentram-se no desenvolvimento comercial de pesquisas já feitas pelo governo.

O Facebook dificilmente era lucrativo quando entrou na Bolsa, em 2012, a um preço por ação que o fez valer mais de 100 mil milhões de dólares. No princípio deste ano, comprou, por 19 mil milhões, o serviço de mensagens WhatsApp, que chega aos 450 milhões de pessoas e tem apenas 55 empregados. A concorrência pode aniquilar a vantagem da WhatsApp. Ainda nem é claro se o próprio Facebook conseguirá manter a sua lucratividade. Só podemos imaginar os benefícios se esse dinheiro tivesse sido gasto mais cedo, no ciclo básico da pesquisa.

Investigação governamental e capital das empresas são duas condições necessárias ao avanço da inovação. Mas a resistência ao reconhecimento da contribuição fundamental do governo existe. Tornou-se especialmente vigorosa quando o projeto de energia solar estatal de Obama, o Solyndra, ao qual o governo emprestara mais de 500 milhões de dólares, foi à falência. A empresa foi aniquilada quando o alto preço do silicone, em que se baseava uma tecnologia alternativa ao Solyndra, caiu a pique, permitindo à concorrência praticar preços mais baixos do que a start-up americana. Mas os críticos viram o fracasso como prova de que o governo não podia investir nesses empreendimentos. "Os governos sempre foram desastrados a "escolher vencedores", e é provável que se tornem ainda mais, à medida que legiões de empreendedores e curiosos trocam desenhos online", escreveu a The Economist em 2012. Porém, incluindo o Solyndra, só 2% dos projetos parcialmente financiados pelo governo federal faliram.

O exemplo mais pertinente da importância do Estado é o quanto Steve Jobs estava dependente dele. Depois do declício dos laptops, nos anos 1990, o iPod (2001), que destronou o Sony Walkman, e os sistemas touch-screen do iPhone e iPad (2007) transformaram a empresa na força motriz eletrónica dos nossos tempos. A vendas quase quintuplicaram e o valor em bolsa subiu de cerca de 100 dólares para mais de 700 por ação. "Embora os produtos devam o design e integração hábil ao génio de Jobs", escreve Mazzucato, "praticamente toda a tecnologia avançada do iPod, iPhone e iPad é uma realização dos esforços de investigação e apoio financeiro do governo".

Uma importante descoberta realizada com fundos do governo, conhecida como magnetorresistência gigante, que deu aos seus dois inventores europeus um Prémio Nobel da Física, é um bom exemplo desse apoio. O processo aumenta a capacidade de armazenamento dos computadores e aparelhos eletrónicos. Foi o que tornou o iPod possível. Outros desenvolvimentos importantes da Apple tiveram também as suas "raízes" na investigação federal, entre eles o sistema de posicionamento global do iPhone e o Siri, o assistente pessoal ativado pela voz.

A Apple é apenas uma de muitas. No princípio dos anos 1980, o governo federal constituiu o muitas vezes esquecido Sematech, o consórcio Semiconductor Manufacturing Technology, uma parceria de empresas de semicondutores americana concebida para combater a crescente liderança japonesa nas tecnologias chip. Os Estados Unidos forneceram 100 milhões de dólares por ano para incentivar as empresas privadas a unir-se ao esforço, incluindo a gigante da inovação Intel. Praticamente todos os especialistas reconheceram que o Sematech restabelecia a competitividade dos EUA na área dos processadores e chips de memória, levando a uma enorme redução de custos e a uma miniaturização radical. Os minúsculos circuitos com enormes memórias que daí resultaram são fundamentais à maioria dos produtos eletrónicos atuais, explorados por empresas como a Microsoft e a Apple.

Mazzucato não diz que os empresários e o capital de risco não tenham feito contribuições fundamentais, mas sim que são, de modo geral, mais avessos ao risco que os investigadores do governo. O gestor de capital de risco William Janeway reconhece as contribuições fundamentais do governo em Doing Capitalism in the Innovation Economy. "O sucesso em "libertar" a economia de mercado da intrusão do Estado tem consequências nefastas para a Economia da Inovação."

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na noite passada, num certo sítio da cidade.


À noite, despedidos os convidados, fechadas as portas e com uma lua quase nova, o presidente levantou-se da arca tumular e, com uma autoridade desusada, bateu as palmas sonoramente, convocando a trupe de imortais à praça central, onde, reunidos, enfim, lhes disse: Já não era sem tempo, creio que todos os pecados nos terão sido perdoados. Não conheço o motivo, nem entendo a escolha do momento e, verdadeiramente, estava desprevenido. Contudo o sinal é seguro. Chegou Sophia. Sophia, levanta-te e lê-nos palavras das tuas. Não poupes no tom, ninguém lá fora na cidade poderá suspeitar da festa imensa e luminosa que vai ora na obscuridade do Panteão. Afinal, não sabíamos nada de teologia: não se sobe aos céus; apenas se espera que surja entre nós a certa e límpida voz. Sophia, que alegria, afinal a redenção existe e está agora entre nós.

1.7.14

ciência ? política ? ideologia ?


Por falta de tempo para escrever sobre o assunto, reproduzo um apontamento de Augusto Santos Silva, que recolhi no FB.

Acabo de saber que o CIES (Centro de Investigações e Estudos de Sociologia) do ISCTE não passou na primeira fase de avaliação da FCT (isto é, foi excluído do financiamento base). E estou completamente aparvalhado:

1. Não tenho a certeza de que o CIES seja o melhor centro de investigação em sociologia em Portugal. É sempre difícil e, na minha opinião, sem muito sentido, fazer rankings de um a N de coisas que são complexas, dinâmicas e não inteiramente comparáveis umas com as outras. Mas tenho a certeza de que é dos melhores, de que está no primeiro nível de todos os que existem (por exemplo, bem acima do centro a que pessoalmente pertenço, e que passou nessa primeira fase).

2. Estão no CIES muitos dos melhores investigadores, é no CIES que têm lugar muitos dos melhores projetos, a revista e a editora ligadas ao CIES são das melhores que temos, o seu programa de doutoramento está ao melhor nível. O CIES tem sido pioneiro e líder na internacionalização das ciências sociais que se praticam em Portugal.

3. É impossível não perceber isto olhando para a história e o presente do CIES.

4. Portanto, ou os avaliadores são de uma ignorância absoluta, ou os avaliadores receberam explícita ou implicitamente alguma diretiva para ceifar (ceifar sim, é disso que se trata) a sociologia teoricamente pluralista em e sobre Portugal.

5. Ou ambas as coisas. Ou a ignorância absoluta dos avaliadores foi instrumental para a operação montada. Não sei, não sei ainda. Mas precisamos de saber, ou não, caras e caros Colegas? Vamos mexer-nos? Vamos indignar-nos? Vamos perguntar, em voz alta, sem medo, coletivamente?

Eles andam a ceifar a ciência que não lhes convém. Ainda voltaremos a falar disso.