Não é de agora, mas tem conquistado mais espaço nos últimos tempos, um certo fenómeno ligado ao parlamento. O fenómeno tem um aspecto local e um aspecto global. O aspecto local consiste em grupos de cidadãos, presentes nas galerias do parlamento, se manifestarem (que seja ruidosamente, é lateral) durante o decurso das sessões plenárias - e na consequente repressão dessas manifestações (evacuação das ditas galerias, nomeadamente). O aspecto global consiste no clamor, que logo se espalha, contra o suposto carácter anti-democrático dos actos legais e legítimos que visam impedir essas manifestações naquele sítio. Estou, nesta matéria, de alma, coração e razão contra essas manifestações na galeria e contra a sua defesa.
Não estou minimamente interessado em discutir aqui e agora se a actual presidente da Assembleia da República tem mais ou menos jeito para controlar esses acontecimentos, se diz mais ou menos disparates nessas ocasiões. Isso são pormenores (embora haja manifesto abuso na interpretação demasiado literal de certas citações de Assunção Esteves, que não se coíbe de usar o seu conhecimento e a sua inteligência, mesmo quando seria politicamente prudente ser menos rebuscada e mais terra-a-terra) . O que me interessa é a legalidade e legitimidade democrática da repressão dessas manifestações.
Desde logo, não há nenhuma dúvida quanto à legalidade: são proibidas essas manifestações naquele lugar e quem lá vai e desrespeita a proibição tem obrigação de saber disso e das consequências. Numa democracia (que não seja uma bandalheira) os direitos, para serem exercidos no seio da comunidade, são regulados. Também há os que confundem o direito constitucional à manifestação de rua com a tentativa de fazer manifestações de rua que não obedeçam aos critérios legais para fazer manifestações, designadamente, dar delas conhecimento atempado às autoridades. Tanto desrespeitam a Constituição aqueles que julgam que "a crise" justifica as derrogações aos direitos que mais lhes convêm orçamentalmente, como (também desrespeitam a Constituição) aqueles que a invocam mas querem atropelar os mecanismos legais, definidos no respeito pela Constituição, para a concretização desses direitos. O respeito pela lei não está, nem pode estar, à disposição do momento político. Aliás, o respeito pela lei é, antes de mais, uma garantia do Estado de Direito aos "de baixo", porque os "de baixo" precisam sempre mais de protecção contra a arbitrariedade do que os "de cima".
Falta argumentar a questão da legitimidade. Coloco-me, aí, no plano dos princípios.
O parlamento representa o povo. Deviam, aliás, gastar-se mais tiros a criticar os que não votam, ou os que votam de modo a tornar-se responsáveis pelo que se vê, do que os tiros que se gastam a defender os manifestantes de galeria. O parlamento representa o povo todo, não o povo que cabe nas galerias, ou quer ir às galerias, ou vive perto das galerias, ou tem tempo para ir às galerias. A rua também representa o povo: o direito de manifestação é importante - mas uns gritos nas galerias não são uma manifestação. Defender que "a rua" tem um lugar na democracia (também defendo isso) não é a mesma coisa que dizer que o método da rua se pode estender a todos os planos do regime democrático. Não pode. É da essência da representação que ela passa pela argumentação: quando defendo uma posição e ataco outras posições, tenho de explicar-me - e esse processo faz parte da construção do edifício democrático. A argumentação é um processo social e um processo histórico, que vive da sua continuidade e de uma certa coerência interna. Dar razões. Mostrar razoabilidade coerente. Ora, gritar nas galerias não é argumento. Gritar nas galerias é atacar o carácter argumentativo do mecanismo representativo. Não estou sequer a invocar a pressão física sobre os deputados, embora esse aspecto não possa ser descurado. Estou a invocar o enviesamento do mecanismo: trocar razões é essencial à democracia, sobrepor gritos a esse mecanismo não enriquece em nada a democracia. Portanto, a meu ver, as galerias devem ser mesmo para observar: para aprender como funciona o debate parlamentar, para sentir aquele aspecto da democracia a funcionar. As galerias não servem para misturar lógicas diferentes. A lógica do grito, enxertada no parlamento, é um ataque à democracia. No próprio plano dos princípios. Já para não explorar a "hipótese" de que as manifestações das galerias não sejam nada espontâneas (o que, no caso de uso colectivo e coordenado de artefactos próprios para a acção, é muito mais do que uma mera hipótese, multiplicando por mil todas as minhas críticas a tais actos e seus inspiradores).
E agora volto, para terminar, à distinção entre local e global. A democracia representativa é necessária para sociedades complexas, onde não podemos sentar-nos todos, aos milhões, numa mesma sala a decidir os nossos assuntos. Por isso, porque não podemos estar todos no mesmo local, arranjamos formas de estarmos, indirectamente, presentes numa instância de decisão. Para isso servem os parlamentos. O que se passa naquele momento naquele sítio ultrapassa aquele momento e aquele sítio: através dos que foram mandatados para ter em conta as minhas opiniões e as opiniões de alguém que está noutro sítio qualquer, mas fazendo parte da mesma comunidade política. Um parlamento é um mecanismo para tornar concreta (local) uma comunidade política dispersa (global). Querer sobrepor a galeria ao parlamento é não perceber isto. É que cada cidadão presente na galeria só se representa a si mesmo, mas cada deputado no hemiciclo representa muito mais do que isso. A lógica da intervenção da galeria é ignorar isso e desrespeitar isso. Quer dizer: atacar um mecanismo básico da democracia.
Revolta-me a demagogia de confundir as pessoas nas galerias do parlamento com o povo. O "povo" é grande demais para ser confundido com qualquer grupo instantâneo. A democracia não está nas galerias. Seria mais útil à democracia castigar pela opinião os que não votam, ou votam sem pinga de reflexão no que fazem, do que tecer elogios aos manifestantes das galerias. Mas isso estaria, decerto, menos na moda. Na moda está "aplanar" as instituições e reduzir tudo ao imediatismo da "acção directa".