O jurista Pedro Lomba escreve hoje na última página do Público para defender o ministro Crato, por este, supostamente, "continuar a partir muita falsa porcelana do nosso ensino". Ares do tempo: a qualidade dos governantes, na cabeça de alguns, mede-se pela quantidade de louça partida. Fraca medida da boa governação, diria eu, que parto facilmente copos e terrinas e, contudo, sou péssimo cozinheiro. Mas, enfim, há quem se sinta na obrigação de defender os correlegionários com qualquer arma (retórica).
O tópico de Pedro Lomba hoje é o ensino "fora da via única": profissional, vocacional, "artes e ofícios", como ele diz em título. Já ontem aqui escrevi que só a ignorância permite falar de via única no nosso sistema educativo. Discutir se a diferenciação deve ser antes ou depois do 9º ano, e em que moldes, é um outro debate. Tentar misturar as questões é tentar enganar o pagode.
Contudo, os passes de ilusionismo retórico de Pedro Lomba ultrapassam, neste caso, o aceitável - mesmo que, em vez de estar a discutir assuntos de grande impacte na vida das pessoas e do país, estivesse apenas a fazer literatura. É que Pedro Lomba quer falar da "via única até ao 9º ano" e, para isso, usa metade do artigo a invocar o exemplo de Matthew Crawford, que foi muito feliz na América com uma oficina de reparação de motas - exemplo, segundo o nosso articulista, das maravilhas "do trabalho com as mãos", do "conhecimento real das coisas", da "aprendizagem de ofícios", do "ensino prático". E Crawford ainda hoje "divide o seu tempo entre a filosofia e as motas".
Entre a filosofia e as motas?! Filosofia?! Então, mas isto não era tudo sobre mandar os meninos antes do 9º ano para vias castigadoras do respectivo insucesso, chamadas, sem mais nem quê, vocacionais ou profissionais?!
É que Matthew Crawford fez um doutoramento em filosofia em Chicago, fez investigação durante algum tempo... e depois não gostou do trabalho e dedicou-se às motas. Matthew Crawford não foi ganhar a vida a reparar motas aos doze ou treze ou quatorze anos; Matthew Crawford doutorou-se em filosofia, começou a fazer investigação e depois decidiu arejar - e pensar filosoficamente sobre a relação entre teoria e prática na nossa vida de humanos. E escreve sobre isso. E publica sobre isso. Matthew Crawford não é exemplo nenhum para argumentar acerca da suposta uniformidade do ensino não superior em Portugal, nem é argumento a favor de castigar os meninos com vias vocacionais, nem deveria servir para arroubos mal informados acerca da uniformidade da nossa escola.
Se Pedro Lomba quer abrir janelas aos nossos jovens, acho muito bem. Sugestões para aumentar a pluralidade dos mundos acessíveis aos jovens antes do 9º ano: deixem-nos aprender música a sério; deixem-nos fazer desporto a sério; dêem-lhes reais oportunidades de se dedicarem às artes: à pintura, à escultura, ao teatro, à dança. Ou essa pluralidade de mundos, Pedro Lomba, só é boa para doutorados em filosofia, como Matthew Crawford?
Em assuntos sérios, que têm a ver com a qualidade da vida das pessoas, e com a qualidade da democracia, misturar alhos com bugalhos é litigância de má-fé. Gastar meio artigo a falar do doutorado em filosofia Matthew Crawford para servir como ilustração e defesa das vias profissionais ou vocacionais antes do 9º ano cabe, a meu ver, nessa categoria: litigância de má-fé.
Se Matthew Crawford pode ver a maravilha que é a prática, isso não resulta de o terem enterrado desde menino e para toda a vida numa oficina de reparação de motas. Isso resulta de lhe terem dado janelas variadas para ver o mundo. Quem não perceba isso, não percebeu mesmo nada.