Ilustração de Le maitre de peinture (Richaud & Makyo & Faure)
Volta e meia, a actualidade abre uma janela de oportunidade a ideias que andavam um pouco adocicadas e precisam voltar a mostrar o nervo para sabermos a quantas andamos. Assim, renovamos debates que, parecendo esquecidos, permanecem vitais. A recente "questão dos ricos" exemplifica bem tudo isso. O texto de opinião de Pedro Sousa Carvalho, subdirector do Diário Económico, na edição de hoje desse matutino, é conveniente para apreciar a questão.
A coluna, intitulada E por que não taxar os ricos, prostitutas e solteiros?, tem o propósito transparente de ridicularizar a ideia de fazer com que os muito ricos contribuam à sua medida para debelar a actual crise. Merece, por isso, um comentário.
A propaganda é, muitas vezes, toscamente simplista. Sim, muitos dos intervenientes neste debate são propagandistas: não estão apenas a defender ideias, estão a defender uma agenda, um grupo social, um tipo de interesses, uma linha política que interessa a quem paga bem. Este texto mostra isso logo na primeira frase: "De repente deu uma fúria a toda a gente de querer aumentar os impostos." O "de repente", mais do que estranho, é denunciador: será que só agora, com a onda gerada por Warren Buffett, é que percebeu que há aumentos de impostos? Quem ganha pouco mais do que o salário mínimo já tinha percebido isso antes, caramba! Quando o articulista pergunta "Estamos a aumentar os impostos para baixar a carga fiscal dos mais desfavorecidos?", até pergunta bem, porque seria bom que se fosse por aí - mas, na verdade, não perde uma linha a defender positivamente que se faça isso. Pela simples razão de que o expediente retórico é outro, e bem velho: para defender os que mais têm fala-se como se se defendesse toda a gente e como se toda a gente, independentemente da sua posição face à distribuição da riqueza, tivesse os mesmos interesses. É esse tipo de retórica enganadora que está por trás, por exemplo, da história do "dia da libertação dos impostos". Fazer de conta que as propostas para aumentar a contribuição dos muito ricos são propostas vazias, por quererem resolver um problema inexistente - é essa a retórica deste artigo - é uma manobra de pura desonestidade intelectual. Quando se tira cada vez mais a quem tem menos (e não apenas por via dos impostos), bradar que não se percebe a razão para tirar um pouco mais a quem tem mais, não é cegueira: é mesmo um sinal de proletarização do escriba.
Claro que o actual debate mostra bem as fraquezas tradicionais das esquerdas nestas questões. Abandonada a via da revolução, e a concomitante ilusão de que se pode mudar o mundo absolutamente, ficaram reformismos mais ou menos flácidos. Os reformismos flácidos, quando de repente lhes dá a vontade de corrigir pontualmente certas injustiças mais gritantes, verificam que não têm os meios apropriados para o efeito. Porquê? Porque o sistema capitalista é isso mesmo, um sistema. E um sistema é uma entidade complexa que não pode facilmente ser modificada com pequenas mexidas em certas peças deste ou daquele motor. Um sistema resiste, globalmente, assimilando alterações pontuais, de modo que tudo continue essencialmente na mesma. Se o sistema não fosse assim, não passaria de uma máquina mal enjorcada. Claro que os reformismos produziram alterações significativas nas condições de vida e no estatuto dos menos poderosos, um pouco por todo o mundo. Têm isso a seu crédito. Mas, e esse é o reverso da medalha, os reformismos não mudaram significativamente as dinâmicas essenciais do capitalismo. Se alguma coisa foi capaz de mudar o capitalismo, foram os próprios capitalistas. Por exemplo, a financeirização do capitalismo foi produzida pela própria lógica do capitalismo, de certos sectores do capitalismo apostando nas suas possibilidades intrínsecas. Essa é uma mudança significativa. Já os reformismos, quando querem mudar alguma coisa sem ferir globalmente "o capitalismo democrático", têm enormes dificuldades em apresentar propostas credíveis, que sejam mais do que cosméticas e dêem os resultados prometidos. É nesse ponto que, implicitamente, o artigo de Pedro Sousa Carvalho tem alguma razão: ele está a gozar com o carácter mais ou menos inconsequente das propostas para fazer com que os ricos também paguem a crise. Ele sabe que, no actual estado da "democracia capitalista", o sistema está blindado, de modo que os ricos escapam sempre, descontado o incómodo de andarem nos jornais a falar neles e nos seus milhões de milhões. É que, mesmo que paguem alguma coisa, a dor passará depressa e eles esperam que depois recuperarão tudo com compensações acrescidas. Pode achar-se que é um pouco pornográfico que um articulista escreva apenas para se rebolar de gozo com o facto de estar do lado dos que gostam disto - mas é isso que este articulista faz.
A certo ponto, Pedro Sousa Carvalho escreve: "O que estamos a fazer, nós que nos orgulhamos de dizer que vivemos num sistema capitalista e numa economia de mercado, é simplesmente a demonizar a riqueza e o capital." Quão longe estamos daqueles teóricos que tentavam dar uma justificação para a riqueza, mesmo a mais escandalosa: desde que a grande riqueza de alguns crie mais riqueza para todos, a riqueza dos grandes tem uma justificação social. O "orgulho capitalista", quando chega ao osso, dispensa justificações: quem pode, pode; quem não pode, aguenta. Claro: aquele tipo de explicação moral do capitalismo não é coisa que coexista facilmente na mesma cabeça com a luxúria do cinismo, bem ilustrada nesta pérola: "Aumentar ainda mais o IRS poderia ser inócuo. Os ricos têm inteligência e dinheiro suficientes para transformar salários em dividendos, capital e património." É bem certo. Há quem se rebole de gozo por isso, tal como há quem não queira desistir de pensar em como dar a volta a isso.