21.3.10

o Calígula de Camus

A companhia teatral L'OM-IMPREBÍS, nascida em Valencia, está a apresentar em Madrid, no Teatro Fernán Gómez, a peça de Albert Camus “Calígula”. A peça, em que Camus tencionava representar ele próprio o papel principal, teve um primeiro manuscrito em 1939; aquando das primeiras representações, em 1945, foi entendida como uma fábula sobre os horrores do nazismo; continuou a ser significativamente reelaborada até 1958, sendo, para Camus, acerca de um problema mais geral do que qualquer horror historicamente localizado. Esta é uma reflexão sobre a procura do impossível. Nas palavras do próprio Camus, esta peça, junto com Le Malentendu, tratava de precisar o pensamento expresso em L’Étranger e em Le Mythe de Sisyphe. Pertence, pois, ao pensamento sobre o absurdo.
No princípio, Calígula queria a Lua, uma das (poucas) coisas que não possuía. Com o passar do tempo e uma mais aguda compreensão do seu lugar como imperador, querer o impossível torna-se um programa para o poder: “Acabo finalmente de compreender a utilidade do poder. Ele dá ao impossível a sua oportunidade. De hoje em diante, a liberdade não mais terá fronteiras” (Acto I, Cena IX). Em Calígula, que se declara “o único homem livre neste império” (Acto I, Cena XI), a tirania não é uma loucura. Como diz Cherea de Calígula: “Imperadores loucos, nós conhecemos disso. Mas este não é suficientemente louco. E o que detesto nele é que ele sabe o que quer” (Acto II, Cena II).

As ideias perigosas não são ideias peregrinas, repentinas, não vão de mãos dadas com o impulso. As ideias perigosas são grandes sistemas. Na peça, Cherea diz aos patrícios que vai colaborar no golpe de Estado contra o imperador, não pelas pequenas razões deles, que querem vingar-se de afrontas pessoais várias, mas antes “para lutar contra uma grande ideia cuja vitória significaria o fim do mundo”. Essa “grande ideia”, nascida na cabeça do poder que se quer suficientemente absoluto para obter o impossível, tem a sua própria lógica, é capaz de sistema filosófico. Não há-de ser por isso que devemos ceder: podemos ser esmagados pela retórica do sistema, mas temos de encontrar os nossos meios de lhe fazer frente. Como conclui Cherea: “Il faut bien frapper quand on ne peut réfuter” (Acto II, Cena II). Essa realidade política é muitas vezes ignorada: quantos estão tão convencidos da sua razão que esquecem que “vencido” e “convencido” são coisas distintas.
Às “grandes ideias”, à demanda do “impossível”, pode opor-se a gente “normal”, com ou sem aspas, com ou sem os desprezos que a qualificação por vezes acompanha. Cherea, respondendo a Calígula, que lhe perguntava por que quer ele matar o imperador, diz (Acto III, Cena VI): “Gosto e necessito de segurança. A maior parte dos homens são como eu. São incapazes de viver num universo onde o pensamento mais bizarro pode num segundo entrar na realidade – onde, a maioria das vezes, entra como uma faca num coração. Eu também não quero viver num tal universo.”


A versão que vimos desta peça, ontem em Madrid, tem uma força que assenta no próprio texto. Contudo, o desempenho de Sandro Cordero, no papel de Calígula, ajuda muito a tornar verosímil o que vemos e ouvimos. O comportamento do imperador parece, à nossa sensibilidade burguesa, tão bizarro – esquecidos que às vezes estamos da nossa capacidade de produzir horror e de pactuar com o horror – que o objecto teatral camusiano arrisca parecer-nos fantástico, uma fábula. Calígula, que não se contenta em ir mandando matar ou matando pelas suas próprias mãos os que o rodeiam, quer ser, para contrariar um consulado demasiado morno, quer ser a própria peste que a natureza não mandava. Manda fechar os celeiros para haver fome. Assume-se como um deus. É amante da irmã e de outras, que não se impede de estrangular. Organiza um “sistema de impostos” assente no assassinato. E por aí adiante, numa lista de crimes que exibem grande imaginação. O actor, mostrando a quase inocência juvenil com que vai amadurecendo a liberdade do tirano, dando a ver como a inteligência pode servir o puro desprezo por todos os outros seres, humanizando em carne e osso a infantilidade do experimentador com o poder, torna tudo aquilo acreditável. E esse é um feito necessário: temos de compreender que tudo aquilo é possível. Que a história não é menos absurda que a peça.
Camus escreveu desta peça que não se tratava de teatro filosófico – quando ela é, manifestamente, teatro filosófico. Tal como este Calígula diz que não é um tirano porque os tiranos matam por ideias e ele não tem ideias – quando ele tem a mais poderosa de todas as ideias, a ideia de querer a utopia.